-CARLOS MARÉS-
Uruguai era um bom destino para brasileiros perseguidos pela ditadura. Montevidéu, com teatros de qualidade, livrarias fartas, lançamentos literários, editava mais exemplares diários de jornais que o Brasil todo, o que parece inimaginável para um país com uma população 30 vezes menor. Mas era assim.
Exilados notáveis, João Goulart, Brizola, Amauri Silva, Paulo Schilling, Neiva Moreira e muitos outros podiam ser encontrados nas ruas e bares da cidade. Brizola era mais difícil, vivia confinado em Atlântida, a pedido e bancado pela ditadura brasileira. Destaque especial para o Prefeito de Natal, Djalma Maranhão, que em 1961 lançara um projeto freiriano anterior a Paulo Freire, “De pés descalços também se aprende a ler”. De fato, Paulo Freire faria o grande experimento de alfabetização em Angico em 1963, dois anos depois e no mesmo Estado.
Exilado, o ex-prefeito mantinha na Praça da Independência um negócio que incluía a venda de jornais e revistas do Brasil. A pequena loja dividia espaço com uma casa de câmbio e uma agência de turismo, os brasileiros que iam pelos jornais se juntavam na calçada ou num café ao lado. Todos os dias chegavam os jornais devidamente censurados pela ditadura brasileira. Todos os dias brasileiros exilados se juntavam para comprar, ler e comentar os jornais.
Ocorre que o Presidente eleito, Pacheco Areco, não resistiu à pressão dos EEUU e, para não sofrer um golpe, passou a ser figurativo, entregando o poder real aos militares. Começava uma estranha ditadura com presidente civil e mando militar. Em pouco tempo se estabeleceu censura tão feroz quanto a brasileira, afinal, para isso tinham tomado o poder. Pacheco Areco fazia pose, muita pose. E só! Era um fantoche e poucos sabiam os nomes dos que efetivamente mandavam.
A censura passou a proibir certos assuntos e palavras, entre elas a mais temida era ‘tupamaros’ como eram chamados os integrantes da mais famosa guerrilha urbana das Américas. Na época os tupamaros faziam façanhas memoráveis em Montevidéu e atordoavam a repressão, por isso tanto temor à palavra. A imprensa local os chamava de ‘innombrables’, em obediência à proibição do termo, mas no Brasil eram chamados de tupamaros mesmo, sempre acompanhado de um adjetivo depreciativo. Assim, o serviço de censura do Uruguai resolveu, por ordem superior ou para mostrar serviço, ler os jornais e revistas brasileiros antes da distribuição. Como não podiam censurar no prelo, na origem, e os censores brasileiros não se dispunham a incluir as proibições uruguaias em suas listas, veio a ordem inapelável a Djalma Maranhão para que a partir do dia seguinte, antes de serem postos à venda, os jornais e revistas deveriam passar pelo visto do censor.
Grande transtorno. Maranhão não queria parar de distribuir os jornais, mas tinha dificuldade de cumprir a tarefa diária e perder horas esperando a leitura do censor com a loja fechada, pediu a outro asilado, mais jovem e desempregado, que levasse diariamente os jornais ao departamento competente. Assim foi feito, o diminuto lucro com os jornais se desfez no ar, mas os jornais continuaram a ser distribuídos.
Todos os dias os jornais eram levados à leitura do censor, mas não um exemplar de cada, todos os jornais. Afinal, justificava o censor, a proibição poderia ser total e os jornais teriam que ser apreendidos. As matérias censuradas sempre diziam respeito ao Uruguai e, principalmente, à palavra ‘tupamaros’, não importava quão ofensivos fossem os adjetivos. Os editores brasileiros não levavam muito a sério a política uruguaia e só de vez em quando aparecia uma notícia num canto de página, sempre censurada. Mesmo na época em que esteve sequestrado Dam Mitrioni, acusado de ensinar formas de tortura e o Consul brasileiro Aloysio Gomide, as matérias não tinham grande extensão.
Provavelmente o censor não sabia muito bem português e na dúvida ou preguiça, censurava qualquer matéria sobre o Uruguai, apesar da argumentação e tradução feitas pelo enviado de Maranhão dizendo que se tratava de um elogio. Não tinha conversa, o censor, com um risinho cínico, afirmava que era capaz de entender até as entrelinhas, e censurava. Ás vezes o elogio era a Pacheco Areco ou a algum militar, não importava, o censor era implacável. O encontro dos brasileiros no ponto de venda passou a ter horário incerto, mas continuou com um ingrediente a mais, a conversa sobre o que havia sido censurado.
As notícias sempre eram curtas e a censura consistia em retirar a página que continha a referência. É claro que a extração tinha que ser de todos os exemplares, sob o olhar vigilante da autoridade. A página ficava apreendida. Depois de um tempo o censor, era sempre o mesmo, foi convencido de que bastava recortar a notícia com uma tesoura, o que dava mais trabalho, cortar jornal por jornal e provar ao censor que tinha sido extirpada a matéria proibida de todos exemplares. Maranhão vendia o jornal recortado, e sentia prazer em contar a cada comprador interessado o absurdo do corte. O problema não era a notícia recortada, os leitores não estavam interessados nas pequenas notícias sobre o Uruguai, mas o verso da folha que só por muita sorte calhava ser uma propaganda. A matéria do verso era censurada por efeito colateral, diziam.
A censura era diária, mas o maior problema era domingo e o volumoso Estadão. O jornal era imenso, com infinitos cadernos de classificados. Um exilado ia todos os domingos a Plaza de la Independencia esperar o Estadão chegar da censura, comprava um exemplar e ia passear de ônibus. O seu prazer era exibir o calhamaço aos uruguaios que tinham o costume de ler jornais nos ônibus e praças. O Uruguai tinha grande variedade de jornais, de todas as tendências, censurados e sem estampar a palavra tupamaros, mas eram em geral de poucas folhas ou tabloides, já o Estadão era aquele volume descomunal. O brasileiro adorava fazer a comparação. Jornal brasileiro não dá pra ler numa viagem só, dizia alto num portunhol forçado, e ria de sincero contentamento. Não eram muitos os prazeres no exílio.
Na sala do censor o Estadão de domingo era sempre um drama. O censor folheava página por página, caderno por caderno, sem entender o que eram os classificados. Chegou a censurar alguns por confundir o nome do bairro do apartamento ofertado, talvez mais por raiva do que por razão de ofício, mas palavra de censor não volta atrás, na dúvida, tesoura. Sugeriram a Maranhão deixar os cadernos de classificados na censura, mas ele se negava a vender os jornais incompletos, se negava a exercer auto censura, dizia. Podia ser que simplesmente quisesse dar mais trabalho ao censor e não frustrar o prazer semanal do amigo.
Maranhão era uma dessas lideranças políticas autênticas, que lideram porque sim, que sabe o nome e conhece os problemas de cada um, então o ponto de venda dos jornais brasileiros era o ponto de encontro de exilados. Os jornais propriamente não informavam muito, a censura brasileira não permitia, mas as conversas, sim. Aquele ponto de encontro de exilados era um reconforto diário que servia para atualizar divergências, saber novidades da revolução e renovar esperança, e as vezes resolver problemas de vida, esse era o trabalho de Maranhão, desempenhado com a eficácia de um líder, os jornais eram um pretexto, mas a censura não podia chegar nas conversas, ficava na palavra escrita. Maranhão amava o Nordeste e dizia guardar o seu calor de forma a não precisar de agasalhos naquela gelada e ventosa Plaza de la Independência, todos os dias, com vento, sol ou chuva, animava a conversa de novos e velhos exilados e distribuía os jornais. No fim da tarde, recortava o cabeçalho do encalhe para devolver aos editores como não vendido e os distribuía gratuitamente aos exilados sem dinheiro, que eram muitos. A maior parte não lia os jornais para informar-se, mas pelo prazer de ler em português, as livrarias não vendiam livros em português.
Na madrugada fria de 30 de julho de 1971, a três quarteirões do ponto de vendas em Montevidéu, em seu apartamento, morreu de mal súbito Djalma Maranhão sem ter podido voltar à terra natal, Natal. Morria o ponto de vendas da Plaza de la Independencia, no coração de Montevidéu. Da censura à tortura, a ditadura uruguaia fechou o cerco aos exilados. Já não havia razão, nem clima, para viver em Montevidéu.
Carlos Frederico Marés de Souza Filho é presidente do IBAP, Professor de Direito Socioambiental da PUC-PR. Foi Procurador Geral do Estado do Paraná por duas vezes.
Como sempre, o texto do professor Marés contém informações históricas importantes, muitas inéditas, reunidas em clima de lirismo. Obrigada!