-CARLOS MARÉS-
A arrogância dominante não gosta de outros povos. Talvez porque sempre que olham os outros se envergonham dos próprios defeitos e ridículas atitudes e, por gostarem tanto de si ou ter que afirmar sempre que gostam, odeiam ver reveladas suas maldades, inconsistências e contradições. Não importa as razões, o fato é que um ódio surdo, corrosivo, sem limites, se estabelece na arrogância dominante cada vez que um coletivo fraterno expressa um sorriso pacífico, um olhar de devoção ou um singelo sinal de inteligência humana.
É verdade que a ganância se associa à arrogância, mas a ganância só explica parte desse ódio mortal a outros povos, ou explica o começo, ou a razão última, a ignorância também se associa, e com força. O ódio arrogante está necessariamente em quem lucra com a morte ou despojamento dos povos, os dominantes senhores do capital. Mas está, também, nos que querem ser iguais aos dominantes, nos que imitam e nos que sonham ser identificados com a supremacia. O colonizado querendo ser colonizador, se identificando com ele apesar do desprezo com que é recebido, diria Frantz Fanon.
A arrogância que nega a existência de outros povos começa por negar o direito a um território, um espaço onde possam sobreviver como gente, como coletivo de gente.
As vezes a arrogância dominante consegue se esconder um pouco e os imitadores ficam menos agressivos, outras vezes se exacerba e os imitadores se tornam radiciais, os dominantes gostam dos imitadores, os incentivam. Os usam e os desprezam. Vivemos tempos assim, de arrogância exacerbada. Tempos confusos, difíceis de entender, difícil de identificar que corações são imersos em ódios verdadeiros movidos por interesses inconfessáveis ou ódios forjados na desinformação ou no erro. Confusos ou não, tempos tristes, nebulosos, instáveis, tempos de guerra. Talvez indicando um final de tempo.
A arrogância que nega a existência de outros povos começa por negar o direito a um território, um espaço onde possam sobreviver como gente, como coletivo de gente. Todo coletivo de gente, todo povo, precisa de um espaço físico onde possam conviver com a lembrança de seus ancestrais, encontrando seus encantados, anjos, demônios e a poética mistura dos dois e a promoção da vida e de seu modo de viver. Os povos carecem de território.
É difícil para a arrogância afirmar que um povo não existe, ainda assim, muitas vezes afirma e proclama. É mais fácil negar o território. Embora pareça diferente negar a existência ou um lugar para existir, é a mesma coisa. Reparem a Faixa de Gaza, ninguém tem coragem de dizer que o povo palestino não existe, mas lhe negam um lugar para viver em paz e em paz enterrar seus mortos, há mais de setenta anos vêm negando esse direito ainda que o reconheçam como povo e com direito à autodeterminação. As vezes negar o direito a um lugar não é bastante e a arrogância precisa exterminar quem reivindica o lugar. A bala, fogo e bomba. Faixa de Gaza é o exemplo de hoje.
Tantas vezes esse estratagema foi repetido na história recente da humanidade, e do colonialismo, que o ser humano deveria estar acostumado. Mas, felizmente, não se acostuma com tanta maldade e um resto de dignidade sempre ressurge no coração dos homens e mulheres que derramam lágrimas pela mortandade e a indignação supera o costume. Não são só os povos injustiçados que reagem, a humanidade o faz. Fuente Ovejuna lo hizo, proclamava Lope de Vega.
Mas nem é necessário atravessar o oceano para ver como a arrogância dominante age na tentativa de destruir os povos promovendo o continuado genocídio da modernidade. O Congresso Nacional aprovou uma “tese” chamada de marco temporal, para reconhecer o lugar de existência dos povos indígenas, visivelmente inconstitucional por anular direitos expressos na constituição e criminosa por gerar, manter e continuar o surdo genocídio de nosso tempo. A “tese” foi vetada pelo Poder Executivo, mas o Congresso Nacional supriu o veto com a determinação de diminuir direitos à vida indígena. A “tese” nega território a povos que existem. É o mesmo ódio que mata palestinos em Gaza. A matança está autorizada. É claro que haverá resistência, os povos aqui e lá, sempre resistem.
Mas a pergunta que fica aqui e lá é por quê? Por que o ódio à existência de outros povos? Usurpar território, seria a primeira resposta. Embora verdadeira é incompleta. É verdadeira para os usurpadores, grileiros, garimpeiros clandestinos, mineradoras irresponsáveis (haverá mineradoras responsáveis? Difícil dizer ao olhar para Brasken, Brumadino e Mariana). Mas nem todos que apoiam, votam e defendem o genocídio se beneficiam dele. Ao contrário, a devastação que o ódio provoca impacta nos que tiram proveito e nos seguidores de máscara branca (mais uma vez Fanon) que perdem tudo na seca e na enchente e não recolhem sequer um dividendo ao ano.
O marco temporal, ao contrário do que alegam, não trata de tempo, trata de reconhecer a existência do povo. Se o povo existe, tem que ter um lugar para existir. Se existe, tem uma cultura de existir diferente da cultura hegemônica e, por isso, precisa de um lugar diferente, não demarcado segundo as regras do Código Civil, mas segundo as exigências da vida coletiva.
O marco temporal é uma invenção engenhosa. Sempre há intelectuais de máscara branca para inventar essas coisas, quem pode esquecer os critérios de indianidade ou a emancipação decretada pela engenhosidade repressiva da ditadura? É sempre assim, o primeiro movimento é imaginar meios de não reconhecer os direitos à existência, sem dizer que não reconhece os direitos à existência, imaginar uma fórmula, uma tese jurídica ou sociológica, de preferência com um nome pomposo, enigmático, sujeito à interpretações e correlação com outras teorias. Eis a engenhosidade. Daí, é só ser repetida por gente togada, engravatada ou de microfone nas mãos e câmera instalada. Pronto, as máscaras brancas votarão a favor e dirão que estão defendendo a sociedade, a família e a segurança jurídica. Segurança jurídica de quem? Certamente não é a dos povos que tem o jurídico direito de existir.
O marco temporal, ao contrário do que alegam, não trata de tempo, trata de reconhecer a existência do povo. Se o povo existe, tem que ter um lugar para existir. Se existe, tem uma cultura de existir diferente da cultura hegemônica e, por isso, precisa de um lugar diferente, não demarcado segundo as regras do Código Civil, mas segundo as exigências da vida coletiva. Se trata de vida, que inclui a terra. Se o direito reconhecido fosse o de moradia de cada pessoa integrante do povo, qualquer terreno de periferia serviria, mas não, trata-se do direito de existir, coletivo, é o direito de ser povo. Para ser povo é necessário um território que o mantenha física e culturalmente. Disso se trata. Assim como o marco temporal não trata de tempo, na Palestina não se trata de guerra, ambos podem tomar o nome de genocídio.
Negar o direito à territorialidade de um povo é matá-lo. É genocídio, ou etnocídio se for o caso de manter vivos e separados os integrantes de um povo. E o que a humanidade ganha com isso? Uma dose cada vez maior de desumanidade, um planeta cada vez pior para viver, uma convivência cada mais difícil. No caso do marco temporal se aprofunda junto com a negação dos direitos das culturas, a destruição da natureza. E a destruição da natureza afeta o clima, a água, as chuvas, afeta a vida da humanidade. Por isso, ações como a destruição do povo da Palestina e dos povos indígenas brasileiros com o marco temporal são passos de negação de humanidade e retumbante grito de suicídio universal. Uns são mortos pelo ódio dos outros e os outros morrem pelo próprio veneno que destilam pelo ódio.
Carlos Frederico Marés de Souza Filho é presidente do IBAP, Professor de Direito Socioambiental da PUC-PR. Foi Procurador Geral do Estado do Paraná por duas vezes.
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