- Ricardo Antonio Lucas Camargo -
Sempre vale observar que a obtenção de receitas para o Estado não se governa pela mesma lógica da obtenção de lucros pelo particular, porquanto o fato de aquele ter a si atribuído, em caráter exclusivo, o exercício legítimo da força, é para o fim de obter recursos para a prestação das atividades de interesse da coletividade, e não para o proveito puramente pessoal de quem administra.
As atribuições que se lançam sobre os ombros do Poder Público, das quais ele não se pode demitir e que ele não pode deixar de exercer, todas elas, impõem a realização de gastos, que, por seu turno, são rigorosamente delimitados pela legislação financeira, e é por este enfoque que se há de entender o sentido das fontes coativas (derivadas) de receita [RIBEIRO, 2003, p. 35].
O ônus tributário normalmente – no caso dos impostos - se faz sentir no momento em que se materializa o fato econômico fundamental denominado “repartição”, isto é, no momento em que se dá a participação do devedor no resultado da atividade econômica, à exceção que têm como fato gerador a condição pura e simples de proprietário, como é o caso do IPTU, do IPVA e do ITR.
Para estes últimos, incide o ônus a cada ano em que se verifica a manutenção do devedor na condição de proprietário de imóvel urbano, de automóvel ou de imóvel rural; para os demais, é no momento em que se verifica o incremento de patrimônio do devedor, em razão de algum título – contrato de prestação de serviços, contrato de compra e venda, trabalho para terceiros, sucessão hereditária.
Não confundir, aliás, o momento em que se realiza o cálculo do ônus com o “fato gerador” do imposto: este pode ser a própria operação que antecede a realização do incremento de patrimônio – por exemplo, a industrialização, no caso do IPI, correspondente ao fato econômico fundamental “produção” -, mas somente quando ocorre o aludido incremento é que se pode, efetivamente, ter a respectiva “base de cálculo”, sobre a qual irá incidir o percentual estabelecido em lei para indicar o quanto deve ir para os cofres públicos, se a partir de subtração direta do patrimônio do devedor ou de subtração do montante repassado a quem contrata com o devedor.
Não é de hoje que se polemiza em torno da distinção entre tributos “diretos” e “indiretos”, que na macroeconomia assume certa importância em razão de conceitos como “renda nacional” e “renda disponível”, mas no Direito tem sido sempre objeto de grandes debates.
Embora, no plano doutrinário, haja controvérsia em torno da utilidade de tal distinção, o fato é que ela teve consagração legislativa no artigo 166 do Código Tributário Nacional, e na jurisprudência é a base das Súmulas 71 e 546 do Supremo Tribunal Federal.
Criticada como “carecedora de base científica” [BOUCARD & JÈZE, 1902, p. 625; BECKER, 1963, p. 491; CARRAZZA, 2009, P. 476; ATALIBA, 1978, p. 79], é vista tal distinção muito mais em função da percepção do contribuinte em relação à possibilidade de transferir, ou não, o ônus a terceiro, e foi com base nisto que se firmou como pressuposto para a respectiva restituição a prova de não ter sido realizada tal transferência [BALEEIRO, 1976, p. 516; MORSCHBACHER, 1984, p. 63-4; CASTELLO, 2021, p. 13; DENARI, 1998, p. 76; TORRES, 2013, p. 262-3].
Os tributos cujo ônus é passível de transferência a terceiros, também conhecidos como “incidentes sobre o consumo”, teriam surgido ao final da Idade Média, com a formação dos Estados Nacionais, com o objetivo de alcançar as classes privilegiadas no dever de contribuírem para o erário [NOGUEIRA, 1998, p. 266].
O grau de litigiosidade gerado pelos tributos indiretos adotados no Brasil desde 1966 – falando do IPI, do antes ICM, hoje, ICMS, e do ISSQN – foi o que rendeu o ensejo a que entrasse em debate a proposta de emenda constitucional que se acabou convertendo na emenda número 132 de 2023.
Uma emenda que, a rigor, não vai extinguir o IPI totalmente, até porque existe a própria questão da Zona Franca de Manaus, mas vai extinguir em 2033 o ICMS e o ISSQN, a serem substituídos pelo Imposto sobre Bens e Serviços – IBS, que será atribuído tanto aos Estados Membros quanto aos Municípios, para que não fiquem privados de uma fonte substanciosa de receita, mediante um sistema especial de gestão da arrecadação e da repartição dos recursos.
A maior parte da receita dos estados membros provém do ICMS, do município até que não tanto do ISSQN, porque o município arrecada muito do IPTU. De qualquer modo, sugeriu-se então a criação do imposto sobre bens e serviços em substituição a esses dois impostos, o ICMS e o ISSQN.
Na sua formulação constitucional, em alguns pontos, o IBS até vem dialogar com a jurisprudência que se construiu em torno do ICMS. Por exemplo, o Supremo Tribunal Federal sacramentou o cômputo do ICMS na sua própria base de cálculo, o IBS não será computado na sua própria base de cálculo. É expresso isso no texto da emenda 132. Então, já vemos aqui um diálogo com a jurisprudência que se formou em torno do ICMS.
Não há muito a ser decalcado da experiência do ICMS e do ISSQN, da discussão se é caso de ICMS, se é caso de ISSQN, porque o IBS, ao aglutiná-los, visaria fazer desaparecer a própria questão base do conflito, embora isso não queira dizer que nós não tenhamos muito a aprender dessa experiência, no sentido de saber por que se chegou a esta nova disciplina.
O presente texto corresponde a parte de conferência pronunciada pelo autor na Faculdade de Direito do Ministério Público, em Porto Alegre/RS, no segundo semestre de 2024.
Bibliografia consultada:
ATALIBA, Geraldo. Classificação científica dos tributos – regime jurídico das espécies tributárias. In: ATALIBA, Geraldo [org.]. Elementos de Direito Tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978, pp. 73-120.
BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário brasileiro. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976.
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1963.
BOUCARD, Max & JÈZE, Gaston. Éléments de science des finances et de la législation financière. 2me. éd. Paris: V. Girard & E. Brière, 1902, t. 2.
CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
CASTELLO, Melissa Guimarães. Um novo IVA? Os tributos sobre consumo e a economia digital. São Paulo: Noeses, 2021.
DENARI, Zelmo. Curso de Direito Tributário. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998.
MORSCHBACHER, José. Repetição do indébito tributário indireto. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984.
NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Imposto sobre Produtos Industrializados: as inconstitucionalidades, ilegalidades e invalidades das disposições que criaram três alíquotas em relação a um mesmo fato gerador: açúcar. In: SCHOUERI, Luís Eduardo & ZILVETTI, Fernando Aurelio [org.]. Direito Tributário – estudos em homenagem a Brandão Machado. São Paulo: Dialética, 1998, pp. 266-274.
RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, interpretação e elisão tributária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 19ª e. Rio de Janeiro: Renovar, 2013.
RICARDO ANTONIO LUCAS CAMARGO é Professor nos cursos de Graduação e Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Professor Visitante da Università degli Studi di Firenze – Integrante do Centro de Pesquisa JusGov, junto à Faculdade de Direito da Universidade do Minho, Braga, Portugal – ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP.
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