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CRITÉRIOS DA INDIANIDADE: COMO EXTERMINAR OS POVOS

Atualizado: 5 de dez. de 2023

-CARLOS FREDERICO MARÉS DE SOUZA FILHO-



No final dos anos ‘70 a FUNAI, então dirigida por coronéis, propôs a criação de dois institutos jurídicos capazes de desestruturar não só os movimentos indígenas, mas os próprios povos. O sentido da proposta era culminar uma perseguição atroz, ilegal e genocida que compreendia prisões, deslocamentos, desterritorializações de povos inteiros como os Krenak, Pataxó hã hã hãe, Panará, Nambiquara, Guarani e o assassinato de mais de oito mil indígenas, conforme contabilidade da Comissão da Verdade. Era para concluir a ação de extermínio. Os dois institutos tinham nomes solenes e se articulavam entre si: a emancipação e os critérios de indianidade. Em 2021, a Funai, agora dirigida por um delegado de polícia em governo saudoso da ditadura, tenta retomar o trabalho inacabado dos ‘70.


A generosa palavra emancipação, no dicionário da necropolítica passava a significar o fim da tutela ou do apoio do Estado aos indígenas, a sua negação. É que na época esse apoio, proteção ou reconhecimento atendia pelo nome de tutela. Então, a ideia dos coronéis era emancipar, retirar a tutela, de toda aquele que vestisse calça e camisa. Mas, para completar essa emancipação deveriam ser estabelecidos critérios de indianidade, fenótipos lombrosianos, encontrados também nos adereços e vestimentas. Falar bom português ou usar relógio seria demonstração evidente da não indianidade.


É claro que não só os indígenas se rebelaram contra essa abominável tentativa. Foram publicados vários artigos e inúmeras manifestações públicas de intelectuais e indígenas consagrando que a única forma de reconhecimento identitário é o autorreconhecimento, a consciência de ser coletivo diferente do conjunto restante. Qualquer critério estabelecido pelo Estado é autoritário, limitador e cientificamente ultrapassado e equivocado. E, claro que a identidade individual se faz, também, por autorreconhecimento, mas associada ao reconhecimento do grupo a que se diz pertencer.


Portanto, não importa a aparência do indivíduo nem o estágio de contato que o grupo se encontre com a sociedade hegemônica e envolvente, os povos continuam sendo povos e as pessoas integrantes devem ser reconhecidas pelos seus povos. Estas ideias ficaram muito patentes nos textos dos antropólogos, juristas e outros cientistas que escreveram sobre o tema na época, e que continuam escrevendo hoje.


Para o Direito, o autorreconhecimento já estava consagrado em 1973 na Lei 6.001, chamada de Estatuto do Índio. Embora a velha lei de 1973 estivesse voltada ao indivíduo, como revela seu nome, não concebia existência de índio, indivíduo, sem existência de comunidade indígena, isto é, o que determina a existência e os direitos dos indivíduos indígenas é a comunidade a que pertencem. Este conceito, claro na Lei e na teoria antropológica, histórica, jurídica, sociológica, etc. foi reforçado mais tarde na Constituição de 1988, na Convenção 169 da OIT, 1989, e nas Declarações de Direitos Indígenas da ONU, 2007, e da OEA, 2016.


Quando se poderia achar que estavam superados os nefastos critérios de indianidade, a presidência da Funai emite uma resolução definindo “novos critérios específicos de heteroidentificação” (Resolução FUNAI Nº 4, de 22 de janeiro de 2021). Sempre há uma palavra pseudocientífica para dar uma aparência de seriedade: emancipação, indianidade, heteroidentificação. O maior problema não está exatamente nos critérios estabelecidos, que não são fenótipos pelo menos, mas na sua generalidade e na própria ideia, superada, de identificação pelo Estado. Se a Funai estabelece seus próprios critérios gerais para identificação poderá negar direitos a quem se autoidentificou.


Ao Estado não complete identificar administrativamente quem são os povos e que direito têm. Os povos e seus os direitos estão estabelecidos na Lei, na Constituição, na Convenção, nas Declarações Internacionais. Portanto, para saber a que povos e integrantes de povos correspondem direitos, há que buscá-los na lei, é lá que estão os critérios. E o critério é autoidentificação.


Por isso há indígenas, quilombolas e muitos outros povos e comunidades tradicionais, com direitos semelhantes, mas aplicados por órgãos estatais diferentes. Quando um povo se identifica como tal excluiu todos os outros de seu pertencimento e, portanto, está reconhecendo que os outros não são. Mas não pode o Estado arvorar-se administrativamente no poder de decidir abstratamente quem é e quem não é povo. Por duas razões óbvias. Primeiro, o povo existe, independentemente do reconhecimento de direitos do Estado, de qualquer Estado. Segundo, no Direito Moderno, o estabelecimento de direitos se dá por lei, especialmente se são coletivos. O Estado pode ou não reconhecer direitos coletivos, mas o fará por lei. No caso do Brasil está reconhecido. O resto é aplicação concreta da Lei. A Funai pode negar um pedido de alguém ou de algum grupo sob fundamento de que aquele grupo ou indivíduo não é indígena? Certamente que sim, mas no caso concreto e fundamentando a negação, não com base em uma resolução com critérios de indianidade genérico. Portanto, compete à Funai agir no caso concreto.


Assim como nos anos ‘70, a Funai está pensando no indivíduo, não no coletivo. Se alguém se apresenta como indígena, a forma mais fácil de saber se é verdade será perguntando ao povo a que diz pertencer, porque não existem índios, existem povos formados por indivíduos. Por isso o autorreconhecimento é do grupo, do coletivo, e o indivíduo se reconhece e é reconhecido como tal pelo seu povo, e não por outros. Não pode haver heteroidentificação de um indivíduo indígena que não seja autoidentificado e reconhecido por seu grupo, portanto, a Funai só pode heteroidentificar um indígena depois de perguntar para seu povo se o reconhece, isto é, com base na autoidentificação.


Se o Estado brasileiro não deseja reconhecer um povo ou parte de um povo como povo, comunidade ou grupo, tem que dizê-lo concretamente porque aquele grupo não é reconhecido e seus indivíduos não podem receber as políticas públicas destinadas aos indígenas e aplicadas pela Funai. Mas tem que haver o caso concreto e não uma norma abstrata. Porque terá que fundamentar as razões legais para negar, as razões existentes na Lei e que implicam no não enquadramento concreto daquele grupo que se diz indígena, não na simples afirmação de que não se enquadram na Resolução nº 4.


Por que será tão difícil perguntar ao povo? É difícil ouvir, é muito mais fácil impor! Mas, o mais curioso é que a Convenção 169 da OIT estabelece a necessidade de ouvir, consultar, ter o consentimento dos povos, indígenas ou não, para os atos administrativos e legislativos que os afete. A Resolução se autoproclama destinada a “aprimorar a proteção dos povos e indivíduos indígenas, (e) para execução de políticas públicas”. Realmente a Funai precisa aprimorar, e muito, mas isso não será feito sem ouvir os povos, mesmo porque é uma obrigação legal. A própria resolução deveria ter passado por uma consulta prévia, livre, informada e de boa fé, como exige a Convenção.


A Funai de 2021 deve estar preocupada com não índios que querem se passar por índios para receber políticas públicas de educação, saúde, atendimentos gerais e vacinação contra o COVID-19, cuja política, aliás, vem sendo desastrosa. Mas a forma de evitar fraudes é fazer exercer o controle social, perguntar à comunidade, ao povo. É próprio dos autoritários imaginar que os problemas se resolvem por ato de força. A resolução é um ato de força. O Estado não pode flexibilizar a autoidentificação porque isto seria a abertura para a negação de identidades, que, exasperada, chega nos critérios fenótipos de indianidade, ao extermínio.


A Funai deveria cumprir as leis referentes aos povos indígenas. Se o fizesse não baixaria esta resolução sem uma consulta prévia aos povos. Aliás, em 2006 foi criado uma Comissão Nacional de Política Indigenista, em 2015 transformada em Conselho Nacional de Política Indigenista, juridicamente em vigor, que não se reúne desde agosto de 2016. É momento do Presidente da Funai convocar o Conselho e ouvir os povos e conhecê-los de perto. Então, quem sabe? aprenderá que povos podem se identificar e identificar aos outros. E aprenderá que o Estado quando estabelece critérios de indianidade o faz para excluir, nunca para aprimorar, nem para aplicar políticas públicas com nomes pseudocientíficos como heteroidentificação.


Para encerrar, o Estado, a Funai, os órgãos aplicadores de políticas públicas devem ouvir os povos e as pessoas identificadas pelos povos, exatamente para afastar falsos representantes, renegados, traidores ou oportunistas. Mas conversar com os destinatários das politicas públicas só faz quem realmente está preocupado com o aprimoramento e com bem-estar dos povos. Critérios de indianidade, quais que sejam, se parecem com fórmulas de extermínio.

 

Carlos Frederico Marés de Souza Filho, professor de Direito da PUC-PR, é escritor e associado da APRODAB e do IBAP.




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3 Comments


Madeleine Hutyra
Madeleine Hutyra
Feb 02, 2021

Não consegui chegar ao término do livro de Dee Brown, "Enterrem meu coração na curva do rio", diante da descrição das inúmeras atrocidades cometidas contra os povos indígenas que habitavam os Estados Unidos da América. O Brasil vive situação real semelhante disfarçada por decisões governamentais em forma de "leis" ou por omissões diversas. No caso apontado na ótima denúncia no texto do prof. Marés, trata-se de Resolução da FUNAI, uma inversão jurídica que reprovaria qualquer aluno iniciante de Direito. Revoltante!

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Elizabeth Harkot De LaTaille
Elizabeth Harkot De LaTaille
Feb 01, 2021

Importantíssimo texto de Carlos Marés sobre os direitos dos e as ameaças sobre os povos indígenas.

Por que tanta resistência da FUNAI a perguntar? Quem é autoritário acha que não tem perguntas a fazer, mas respostas e ordens a dar.

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Ricardo Antônio Lucas Camargo
Ricardo Antônio Lucas Camargo
Feb 01, 2021

O Professor Marés, aqui, demonstra o quanto o Marechal Rondon tende a ser substituído, enquanto modelo para os militares que estão na testa da FUNAI, no presente, por Julio Roca ou, mesmo, George Armstrong Custer no que toca à compreensão da presença do ser humano autóctone neste território. Dolorosamente atual a narrativa de Hector Babenco em seu "Brincando nos campos do Senhor". Denúncia precisa e primorosa em forma de artigo.

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