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O Imposto sobre Bens e Serviços e a “extrafiscalidade”

-Ricardo Antonio Lucas Camargo-


A qualificação, correta, do tributo como principal fonte de recursos para o custeio de atividades públicas põe em questão a função extrafiscal respectiva a que não foi indiferente a Emenda 132.


Podem-se verificar algumas tentativas de, a partir de diálogos com a jurisprudência, reduzir o campo litigioso e tornar menor a pressão da carga fiscal sobre o contribuinte, como é o caso da exclusão da possibilidade de o Imposto sobre Bens e Serviços integrar sua própria base de cálculo, ao contrário do que ocorre com o ICMS (Constituição Federal, artigo 156-A, § 1º, IX), e busca-se combater a concessão de incentivos e benefícios fiscais a ele concernentes, bem como os regimes diferenciados, salvo os autorizados constitucionalmente (Constituição Federal, artigo 156-A, § 1º, X), buscando reforçar o combate ao que se chamou de “guerra fiscal”, ou o “leilão de favores fiscais” – expressão colhida em Sacha Calmon Navarro Coelho [COELHO, 1990, p. 400] -, e reduzir as possibilidades de utilização “extrafiscal” da exação [CARDOSO, 2010, p 140], observando-se as vicissitudes documentadas na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre esta circunstância apta a promover o desequilíbrio federativo e a corromper o exercício de funções econômicas estatais definidas no artigo 174 da Constituição Federal, quais sejam, a normação e o fomento. Entretanto, isso não quer dizer que a função extrafiscal do IBS esteja banida totalmente.


Procura-se evitar a sua utilização para fins de incentivos. O inciso X do parágrafo primeiro do artigo 156-A da Constituição é expresso na interdição da sua utilização para concessão de incentivos e outros benefícios fiscais, as agevolazioni fiscali do direito italiano. Mas, nas hipóteses previstas na Constituição admite-se a sua utilização extrafiscal, por exemplo, para os fins de promover uma atividade desenvolvida de modo sustentável ambientalmente. Isso é um dos exemplos que mostram que a extrafiscalidade não está exatamente proscrita em relação ao IBS; está, em realidade, mitigada.

 

Claro que a extrafiscalidade, em si mesma, não é um tema novo, nem é uma nota distintiva do “Estado Social”, dito “intervencionista”, já que mesmo nos nascentes EUA foi defendido seu emprego por Alexander Hamilton como forma de proteger a indústria nascente em face da já industrializada metrópole.

 

Em 1949 na Universidade Federal de Minas Gerais o tema do concurso de ciência das finanças foi justamente a função extrafiscal do imposto, teses apresentadas pelo professor Alberto Deodato Maia Barreto e pelo professor Rui de Souza, 1949.


A extrafiscalidade tem sido objeto de alguns debates na União Europeia porque ela num certo sentido entra como uma derrogação da chamada capacidade contributiva [CAMARGO, 2024, p. 236-7].


Por quê? Porque a capacidade contributiva implica tomar como critério para o ônus justamente a aptidão do devedor do tributo, suportar patrimonialmente a exação. Já a extrafiscalidade implica a utilização do ônus tributário para atingir um objetivo que transcende a pura arrecadação [ÁVILA, 2009, p. 83; CARDOSO, 2010, p. 106-7; MOISÉS, 2019, p. 53; MORAES, 1978, p. 332; BALEEIRO, 1976, p. 314-5; BECKER, 1963, p. 536].

 

Exemplo típico é o IPTU progressivo no tempo para compelir o proprietário urbano a dar o imóvel o uso socialmente útil, definido pelo plano diretor. Função extrafiscal, com certeza [COSTA, 2014, p. 402; ZILVETTI, 2004, p. 174-5].




Por Marcos Elias de Oliveira Júnior - Obra do próprio, Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=12927138
Por Marcos Elias de Oliveira Júnior - Obra do próprio, Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=12927138

Demoremo-nos um pouco mais sobre o leilão de favores fiscais, que também ganhou a alcunha de guerra fiscal, justamente aqueles benefícios concedidos pelos estados membros sem a anuência dos demais e que se mostravam aptos a promover a fragmentação econômica do país [FALCÃO, 1981, p. 279; MARQUES, 2010, p. 127; FERRAZ JÚNIOR, 1998, p. 278-9; SCHOUERI, 2013, p. 346; BEVILACQUA, 2013, p. 83-4], sobretudo porque protege, mediante a eliminação ou mitigação de custos, agentes econômicos situados em determinadas partes do país, em detrimento de outras partes, desestimulando, nestas últimas, o investimento [MELO, 2023, p. 366; ABRAHAM, 2009, p. 194-5; CARDOSO, 2010, p. 147; COSTA, 2014, p. 391].

 

Vale observar que, no âmbito de um Estado unitário, a “guerra de tarifas” se apresenta como uma noção mais própria dos gravames impostos na circulação internacional de mercadorias [BOUCARD & JÈZE, 1902, p. 949], enquanto a guerra fiscal se apresenta como um problema típico do Estado federal [SCHOUERI, 2013, p. 367-8].


Até que ponto a nova sistemática do IBS vai contribuir para o encerramento da guerra fiscal? É uma questão que se põe, justamente porque na faixa admitida para viabilizar a sua utilização extrafiscal pode estar embutido um conflito que envolva justamente o abuso na concessão desses benefícios ou no estabelecimento desses tratamentos privilegiados.

 

A própria ideia dos benefícios, em si mesma, não é deletéria: ela se apresenta inclusive, como uma das formas por que se concilia a atuação do Estado em promover o desenvolvimento equilibrado, e o desenvolvimento equilibrado não tem como ser promovido sem a atuação do Estado [DERZI, 2007, p. 130; FERRAZ JÚNIOR, 1998, p. 280; MORAES, 1978, p. 333]. E por que ele não tem como ser promovido sem a atuação do Estado? Simplesmente porque o particular, quando vai atuar, olha principalmente para o lugar que vai dar o retorno mais rápido [FALCÃO, 1981, p. 136; CAMARGO, 2024, p. 104-5]. Isso não é uma questão de perversidade isso é uma questão de sobrevivência. Por quê? Porque quando ele vai investir, ele tem que lembrar que não é só o empregado que ele vai ter que pagar, não é só o tributo que ele também vai ter que pagar. Ele vai ter que pagar também os financiadores. O banco não vai dizer a ele: “fica tranquilo, eu espero você começar a ter retorno e aí então eu vou cobrar”. Eis o que o banco vai dizer: “venceu a fatura, eu quero o pagamento agora! Eu quero o pagamento agora”. Então, se não houver a mão do Estado, não adianta o sujeito ser todo cheio de boa vontade e investir em uma região mais pobre:  ele não vai ter retorno. Ele vai precisar ter um reforço para poder atuar naquele campo e não ser obrigado a fechar as portas depois [PERROUX, 1981, p. 194; LIMA, 1954, p. 474; BERCOVICI, 2003, p. 158-9; GOMES & VARELA, 1977, p. 50-1; MOLON JÚNIOR, 2018, p. 82].


Muito bem. Então, esses benefícios na realidade vão se apresentar como um instrumento do Estado viabilizar o desenvolvimento equilibrado por um lado, e por outro não aniquilar o caráter livre do exercício da atividade econômica, porque ninguém pode ser compelido e exercer a atividade econômica.


É “livre iniciativa” porque o sujeito é livre para desenvolver a atividade e é livre para não a desenvolver. Ele não pode ser obrigado a continuar desenvolvendo a atividade, por isso que ela é livre. Então através dos benefícios fiscais e outros benefícios, creditícios, por exemplo, é que nós vamos estabelecer esta forma de balanceamento entre um interesse público em que haja um desenvolvimento equilibrado das regiões e o interesse privado em empreender a atividade econômica sem ser compelido a fazê-lo [SOUZA, 2002, p. 464; DÓRIA, 1978, p. 451; GRAU, 2017, p. 143; CLARK & CORREA, 2011, p. 43-4; FONSECA, 2017, p. 21-2].

 

A Constituição de 88 afastou um instituto que existia na vigência da Constituição anterior, que era um meio muito eficiente de quebrar a resistência dos governos que eventualmente se pusessem em desacordo com o poder Central: a possibilidade da União mediante lei complementar conceder isenções de tributos locais [BALEEIRO, 1976, p. 537-8; MORAES, 1978, p. 326]. Por isso veio a proibição da isenção heterônoma no inciso III do 151 [COELHO, 1990, p. 390; COSTA, 2014, p. 98; DENARI, 1998, p. 161; TORRES, 2013, p. 81]. Claro que eram mais difíceis essas ocorrências quando os governadores não eram eleitos, mas, ainda assim, era uma forma de os militares se assegurarem da lealdade dos seus aliados.


Há uma outra questão que também se coloca, de alguns Estados que concederam incentivos a agrotóxicos, que costumam ser compreendidos como um dos aspectos do fomento econômico à agricultura, a despeito dos conhecidos e irreversíveis efeitos que têm em relação ao solo, à água e, eventualmente, ao ar.


Quanto a esses produtos danosos ao ambiente, o primeiro caso ainda pende de julgamento, é uma ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo PSOL, sob a relatoria do Min. Edson Fachin.

 

Normalmente o Supremo Tribunal Federal não examina o objeto do benefício; limita-se a aspectos mais formais. A discussão sobre ser juridicamente válido tal ou qual objeto para o benefício, entretanto, não é estranha à Corte Constitucional italiana, como se pôde constatar em debate travado nas vias eletrônicas entre os Professores Thomas Tassani, da Universidade de Bologna, Misabel de Abreu Machado Derzi, da Universidade Federal de Minas Gerais e Cassiano Menke, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul [TASSANI, DERZI, MENKE, 2025].


Tem-se, antes, lembrança do Supremo Tribunal Federal ter muitas vezes invalidado leis ambientais de estados membros que eram menos permissivas do que a legislação federal: o caso do amianto, no qual houve muitas idas e vindas, até que chegou em um determinado momento em que eles declararam inconstitucional a própria lei federal. Mas até declararem inconstitucional a lei federal, eles tinham declarado inconstitucionais várias leis estaduais mais restritivas que aquela.


A Lei Complementar 214, de 2025, que veicula as normas gerais referentes ao IBS, disciplina as condições para que os setores que devem ser tratados como alvo de benefícios sejam contemplados com a tributação mais branda, como é o caso da importação de insumos para aperfeiçoamento e posterior exportação (artigo. 90), do incentivo à modernização e ampliação da estrutura portuária (artigo 105), dos incentivos para o desenvolvimento da infraestrutura (artigo 106), dos incentivos para a atividade naval (artigo 107), do crédito integral e imediato do IBS na aquisição de bens de capital (artigo 108), a redução a zero das alíquotas incidentes sobre os produtos componentes da cesta básica (artigo 125), exemplificativamente, já que não há como tratar cada uma dessas formas de emprego extrafiscal do IBS em pormenor nas dimensões exigíveis para publicação.


Referências bibliográficas

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RICARDO ANTONIO LUCAS CAMARGO é Professor nos cursos de Graduação e Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Professor Visitante da Università degli Studi di Firenze – Integrante do Centro de Pesquisa JusGov, junto à Faculdade de Direito da Universidade do Minho, Braga, Portugal – ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP.





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