-CARLOS MARÉS-
O Teatro Guaíra começou a ser edificado em 1952, naqueles raros momentos em que os governos conservadores pensam em cultura. Bento Munhoz da Rocha queria que o Estado tivesse um grande Teatro e uma imponente Biblioteca, por isso o Teatro Guaíra e a Biblioteca Pública do Paraná foram projetados e construídos. Seriam dois grandes edifícios de Curitiba, marcos da arquitetura e guardiões da cultura no Paraná. A Biblioteca foi construída em pouco tempo e inaugurada em 1954. O Teatro Guaíra, porém, levaria mais de 20 anos em lenta agonia construtiva, comprovando a relutância em investir em cultura. Mas Curitiba não ficou sem teatro, no mesmo ano que se inaugurava Biblioteca, inaugurou-se uma a primeira parte do Guaíra, com um pequeno auditório de 500 lugares, o Guairinha, que integrava os fundos do complexo arquitetônico e se mantém ativo guardando, ele mesmo, boas histórias de beleza, liberdade e resistência.
Mas foi só em 1974 que o Teatro Guaíra, completo, foi inaugurado. O auditório principal, que homenageia o governador que o idealizou, é grandioso e ostenta as dimensões de sua grandiosidade com um palco de quase 55 metros por 20 de profundidade. Pode abrigar qualquer espetáculo, por grande que seja, para uma plateia de mais de 2.000 pessoas. A boca de cena se abre em 16 metros por 7,5 de altura. Com dimensões suficientes para um elefante aparecer de corpo inteiro, podendo ser visto de cima, de perfil ou de frente sem roubar a cena.
projeto do arquiteto Rubens Meister, entre os muitos corredores, coxias, guardas roupas, camarins diversos, previa um espaço interno para ser o camarim de elefante. Ainda que não sejam muitas as obras cênicas não circenses que se utilizam de elefantes, mas, pensando na possibilidade de montar Aída, de Verdi, não hesitou em projetar o comarim especial. É claro que se há um camarim de elefantes, a entrada dos artistas, os corredores, e o próprio palco tem que ter condições de trânsito e sustentação para ele. E assim o é, porque o arquiteto pensaria em cada detalhe. Aliás, justiça seja feita, cada detalhe é tão delicadamente pensado que uma conversa informal no palco pode ser ouvida na última fileira do último balcão.
Como não são muito os elefantes contratados pelas companhias de teatro e os Circos preferem os espaços abertos sob coloridas e simbólicas lonas que podem ir e voltar no encantamento do povo, os administradores, logo depois da inauguração, consideraram que talvez fosse mais razoável fazer do camarim de elefante mais um auditório, pequeno é verdade, com modestos 68 lugares e chamado de mini auditório que foi inaugurado em agosto de 1975. O Teatro Guaíra já não dispunha, então, de um camarim de elefante, mas de três espaços cênicos.
A vida seguiu com grandes montagens, brilhos e luzes. Até que, em 1994, a direção resolver encenar Aída e o elefante seria de carne e osso. O elefante contratado como ator era uma fêmea, Mila e, dócil, nos ensaios cumprimentava as pessoas com balanços de tromba e desajeitados movimentos de corpo, entrava e saía do imponente edifício como se fosse sua casa, mas não tinha um camarim próprio, embora pudesse se exibir de corpo inteiro no palco. Quem a viu representando garante que estava feliz.

Fora de cena o domador estava sempre ao lado de Mila e entre um amendoim e outro lhe acariciava a face com delicadeza. Os ensaios foram duros e o tenor tinha que se acostumar com Mila, entraria no palco em seu imenso dorso e de lá soltaria a potente voz, o domador ficaria na coxia e, diante de duas mil pessoas, o tenor teria que dominar a voz e controlar Mila. Tudo corria bem e a estreia se aproximava. O Teatro iluminaria as noites da Praça Santos Andrade.
Tudo preparado para a estreia quando, quase seis horas da tarde, o telefone da sala do Procurador-Geral do Estado toca e do outro lado da linha o diretor-geral do Teatro Guaíra, indignado e aos berros, dizia que um juiz, acrescido de vários adjetivos, havia trocado o tenor. Como trocado o tenor? E o que um juiz tem a ver com isso? Calma, calma! Foi então que o diretor, com a voz empostada como cabia ao momento, leu a ordem judicial. Inacreditável, era uma liminar em Mandado de Segurança impetrado por um segundo tenor do Teatro Guaíra que afirmava ter ele o direito líquido e certo de se apresentar na estreia de Aída sobre o dorso de Mila. Faltavam três horas para as cortinas se abrirem e o diretor garantia que não ia permitir o espetáculo com um tenor sem ensaio, que nunca tinha subido num elefante embora, talvez, já tivesse participado da Aída. E a culpa seria do Poder Judiciário, gritava.
O juiz era conhecido por suas decisões contra o Estado e o Teatro Guaíra é público, talvez tenha dado a decisão para estragar espetáculo, mas pode ter havido outros inconfessáveis motivos, o que nunca foi apurado. Naquele momento o que importava não eram os motivos do juiz mas qual tenor subiria ao dorso de Mila. O quê fazer? A primeira providência foi telefonar ao gabinete do Presidente do Tribunal de Justiça, único com competência legal para suspender ordens judicias tão rapidamente. Por sorte, às dezoito horas de sexta feira ele ainda estava lá. A inusitada situação não foi fácil de ser relatada, ninguém podia acreditar nessa história, é verdade que um tenor tem direito de cantar, mas subir num elefante sem nenhum ensaio? e deixar a um juiz a escolha do tenor? E se Mila não gostasse da troca? e se ele levasse uma orelhada e caísse? e se pela novidade, desafinasse? Pensando bem, esses não eram argumentos jurídicos que pudessem comover um sisudo Desembargador Presidente. Mas comoveu! Nem precisou argumentar ausência de direito líquido e certo, bastou dizer que tinha gente, juiz inclusive, que queria estragar o brilho do espetáculo.
O procurador-geral escreveu uma petição às pressas para que a liminar fosse suspensa em nome da ordem pública enquanto o Presidente esperava pacientemente e mobilizava seus assessores para proferir a decisão. Naquele tempo tudo era físico e tinha que ter protocolo, carimbo, papel timbrado, procuração e assinatura em tinta azul. Tudo pronto e conforme o combinado, era correr ao gabinete do Presidente, mas uma assustada assessora lembrou: procurador, o senhor precisa pegar seu paletó e sua gravata senão não entra no Tribunal, o porteiro não deixa! Na sexta feira à tarde o relapso procurador não portava as vestes adequadas, nem as mantinha em gavetas ou espaldar de cadeiras. Não era possível que por falta de uns panos convencionais a estreia não ocorresse. Alguém, diligentemente, correu as salas da Procuradoria e encontrou um retardatário que foi imediatamente e sem opor grande resistência, expropriado das peças e a comitiva correu para a garagem. No carro, depois de apertar o nó da gravata, ao vestir o paletó, que não combinava nem com a camisa nem com a calça, o procurador percebeu que o retardatário era muitos números menores que ele, a manga chegava um pouco abaixo do cotovelo e faltariam pelo menos 30 centímetros para os botões se fecharem. Paciência, a fantasia era só para entrar no Tribunal e a elegância não constava do protocolo do porteiro.
Passava das sete quando, afinal o Presidente assinou a decisão que logo foi carimbada, oficializada e enviada às pressas ao Teatro. Habemus spectaculum! Na sala do Presidente do Tribunal de Justiça, o procurador-geral fez um gesto brusco de agradecimento e o paletó descosturou atrás, de cima a baixo. O procurador retardatário, como compensação a sua generosidade, ganhou dois ingressos para assistir Aída e ver de perto a arte de Mila.
Foi a primeira e última temporada de elefantes no Teatro Guaíra, mas os tenores voltaram muitas vezes à cena e nem precisaram de ordem judicial.
Carlos Frederico Marés de Souza Filho, professor de Direito Socioambiental da PUC-PR, é Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública - IBAP.
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