-CARLOS MARÉS-
O pensador e político chileno Manuel Jacques Parraguez afirmou, em um seminário recente na PUCPR, que um dos principais temas a serem discutidos na nova Constituição chilena será o da água. Explicava que a feroz ditadura de Pinochet havia aplicado integralmente o ideário neoliberal de privatizar a água, a tal ponto e tão profundamente que deixou de existir água pública, comum ou de todos. Cada gota d’água passou a ter seu dono que certamente não teria apenas uma gota mas toda a água de uma região, local ou rio. Como a água boa é a que não fica parada, o beneficiário recebeu a propriedade da água que estava ali, da que estava indo embora e da que viria. Pinochet não apenas privatizou a água, também deixaram de ser públicos o ensino, a saúde, a seguridade social e tudo o que pudesse dar algum tipo de lucro para um capital difuso e impessoal, ainda que fosse rua, caminho, remédio ou comida. Tudo segundo leis bem amarradas, culminando com um nó apertado dado pela Constituição de 1980. Com os nós atados no texto constitucional Pinochet não só privatizou a nação, mas estabeleceu regras em nome da liberdade para que o povo do Chile não pudesse dispor livremente de seu destino. Os nós foram apertados em princípios e regras que impedem interpretação diversa, em uma técnica de fazer leis que torna o sistema jurídico incapaz de desatá-los, mesmo hoje, quarenta anos depois. Exatamente o que o liberalismo, o velho, fez quando criou o direito de propriedade individual da terra, ainda antes do século XIX. Mas o povo chileno tentará.
Os donos da água, como qualquer dono de mercadoria, a tem em estoque e vendem quando e para quem melhor lhe convier, pelo preço que desejar. Mas estes donos não são seres humanos com corações, mentes e fígados, capazes de amar, sorrir e sonhar, são números em bolsa de valores, cujos humanos, muito distantes, pouco ou nada sabem das mazelas, maldades ou benefícios de venda, compra ou doação, só sabem ler gráficos de lucros. São capitais ou grupos de capitais na maior parte com nomes de fantasia que invariavelmente revelam apenas uma verdade sobre sua identidade: são sociedades anônimas. Os chamados investidores sabem apenas dos dividendos e lucros. Olham e analisam o balanço, e tem que gostar. Com isso, os camponeses das regiões secas do norte do Chile, sem acesso às águas, não conseguiram mais plantar sequer o alimento da família. Mas não só isso, viram suas terras valiosas, porque produziam, perderem completamente o valor. Então os donos das águas, que as ganharam da complacente Ditatura Pinochet, complacente ao conceder as riquezas do povo, feroz na repressão às reclamações que o mesmo povo fazia, compraram por preço nenhum as terras que, irrigadas, passaram a produzir e valer muito. Ganharam a água e ganharam a terra e ganharam os acionistas. Mas atenção, alertam os novos proprietários em coro com juristas bem pagos: tudo dentro da lei e legitimado pelo contrato livre, de partes iguais e consensuais. Será?
Triste teorema de injustiça. Antes o camponês e os indígenas tinham a terra e usavam a água com parcimônia para sobrar aos outros. Por força do Direito e do Estado coloniais corriam o risco de perder a terra para a velha propriedade individual e as perdiam constantemente, mas a luta os movia e as recuperavam aqui ou ali, era uma luta permanente e duríssima, histórica, heroica, com avanços e retrocessos, as vezes chamando de terras ancestrais, as vezes de Reforma Agrária. O Chile já foi exemplo de reforma Agrária, mas isso foi no começo dos anos ‘70. Com a terra e um pouco de água generosamente fornecida para cordilheira e por poços profundos, as gentes viam nascer alimentos, remédios e enfeites. Enquanto há luta há esperança e vida, bastava recuperar um pedaço de terra, porque quem tinha terra, tinha água. Mas os juristas, num passe de mágica, com o poder do processo legislativo e a força das armas, criaram uma lei inovadora, separando em duas propriedades distintas e privadas, a terra e a água. Os que tinham a terra, mas não as queriam vender, dar ou trocar se viram de uma hora para outra sem água, sendo obrigados a pagar por seu uso a novos proprietários distantes e desconhecidos, anônimos, a Companhia. Pagar pela água significava uma sangria em sua renda, passaram a ter que vender parte da própria comida muitas vezes. Conseguir o suado dinheiro era só o começo do problema, os cobradores eram distantes e ávidos e deixaram de ter interesse em vender. No começo relutavam e vendiam cada vez mais caro, depois, deixaram de vender, simplesmente não vendiam, alegando que teriam outro uso, certamente cumprindo a regulamentação estabelecida. O proprietário sabia como não vender e cumprir a lei, afinal ele mesmo a havia concebido e por isso culpava o camponês pela própria sede, alegando a vistosa e enganosa aura de legitimidade que a lei lhe proporcionava. Mas nem eram os proprietários, anônimos, que alegava a culpa do camponês, eram os políticos, economistas, juristas,jornalistas assalariados de Companhias Anônimas irmãs. Passou a sangrar não a comida, mas a vida dos camponeses e indígenas. À luta pela terra se somou a luta pela água, à fome se somou a sede. Ainda há luta, mas agora duplicada, porque já não adianta a terra sem a água, nem a água sem a terra. Mas o povo chileno tentará!
A história, ainda que real, é absurda, mais absurda ainda é a dificuldade de revertê-la, os donos da água, das terras, dos negócios, das minas, da produção, das fábricas são sócios dos governos, dos parlamentares, dos juízes, dos juristas. Todos são sócios no anonimato das empresas e os que não são sócios são funcionários.
A história, ainda que real, é absurda, mais absurda ainda é a dificuldade de revertê-la, os donos da água, das terras, dos negócios, das minas, da produção, das fábricas são sócios dos governos, dos parlamentares, dos juízes, dos juristas. Todos são sócios no anonimato das empresas e os que não são sócios são funcionários. Só não são sócios das multidões que estão nas ruas reclamando de fome e sede. Além disso, basta reverter a propriedade privada da água? Melhora, mas continua a propriedade das sementes, das terras férteis, das escolas, dos hospitais, da previdência. É muita coisa para ser reformada e os donos da vida e seus sócios não estão dispostos a ceder. Afinal, como explicariam a perda desses direitos aos circunspectos acionistas da Bolsa de Nova Iorque? Os economistas farão contas e afirmarão que a perda no valor das ações será de milhões de milhões de dólares. Nenhum deles acrescentará que será perda contábil, escritural, fictícia e repetirão com o senho franzido e a voz grave: “não podemos deixar o Chile perder tanta riqueza e ficar mais pobre”. Completarão dizendo que para acabar com a fome e a sede é preciso ainda mais cifras, privatizações e garantias de dividendos na Bolsa. Não dirão que não havia nem fome nem sede antes, porque isto seria pensar no passado e esses homens e seus anônimos olham para o futuro. Curioso conceito de riqueza, mas vale a cifra contábil, que nada mais compra do que um pedaço de pão e um copo d’água na mesa.
No Brasil, em 1988, a Constituição conseguiu impedir que as águas fossem privadas. Mas não a terra, nem as sementes, nem o conhecimento. Então, o esforço dos amigos da Bolsa tem sido para flexibilizar esse domínio comum das águas. Sempre há uma palavra certa para dizer sem dizer, flexibilizar, no léxico da devastação significa anular os direitos, tão simplesmente. O berço das águas no Brasil, o Cerrado, assolado pela monocultura nos Grandes Sertões e Veredas, queimado até dentro da toca do tatu, começa a sentir sede e, para que a produção não pare e a Bolsa não caia, o caminho encontrado pelos anônimos tem sido destruir mais, afastando as gentes, os bichos e as plantas que vivem por que sim, sem se importar com a dança das Bolsas. Não por acaso o governo genocida admira a obra destruidora de Pinochet e tenta imitá-lo, na água, nas universidades, na previdência, na saúde, na repressão.
A água, necessária, tem que ser comum a todos. Mas, atenção, que fique claro: todos não significa homem branco, viril e proprietário, não é o “macho de pelo em pecho”. É o gênero humano de todos os gêneros.
O esforço do povo chileno em mudar os rumos do país ou para ter um país de volta é enorme neste momento, mas encontra barreiras de intransponível aparência. Algo mudará, mas o que mais intensamente será mudado é a possibilidade de mudar mais. Se a mudança antes era impossível, hoje é improvável, amanhã será só difícil. Dará tempo?
A água, necessária, tem que ser comum a todos. Mas, atenção, que fique claro: todos não significa homem branco, viril e proprietário, não é o “macho de pelo em pecho”. É o gênero humano de todos os gêneros. E não só, é bicho, planta, seres, todos os seres. Nem precisa dizer por quê, a vida dos seres é necessária à vida dos outros seres, inclusive dos humanos, então, todos os seres. Mas que fique claro também que a absurda privatização da água não é diferente da absurda privatização da terra, das sementes, dos alimentos, do conhecimento, da vacina, da vida.
Dizer hoje que a humanidade está enferma é afirmação acaciana. Mas a enfermidade não é só causada pela COVID-19. A doença da humanidade já deu mostras anteriores. Quem já esqueceu a crise humanitária escondida nos remédios contra AIDS? Alguns países levaram dez anos para ter acesso a eles, enquanto isso as pessoas iam morrendo silenciosamente sem conseguir quebrar patentes. É o conhecimento privatizado. Já há remédios para a COVID-19 mas ainda não acessíveis e há vacinas. Não é escandaloso que os EEUU tenham mais de três bilhões de doses e outros países nada? Qual é diferença entre esta situação e os donos das águas que condenaram à fome e sede camponeses que antes plantavam e comiam? Onde termina a ética começa o direito? É possível pensar em Direito com Ética, desde que se pense em direito com justiça e não com fórmulas proprietárias.
A Lei que a modernidade tornou pura, foi destituída de ética, amor, sentimentos, natureza, honra. Curiosa Lei que afasta e derroga as Leis da natureza. A ciência e o conhecimento que não são mais do que a observação consciente, direta e profunda da natureza e seus fenômenos, não podem servir à violação das leis da natureza, da harmonia, da vida, ao contrário, devem ser instrumentos da humanidade a favor da vida. Este é o princípio que alguns chamam de “Earth Jurisprudence” ou “Wild Law”. Se uma lei, como a propriedade das águas, impede a vida, não pode ser lei, é opressão, não pode ser respeitada, tem que ser combatida.
A humanidade já ultrapassou a última encruzilhada, dividida e enganada, está próxima ao abismo. Toda ciência, saber, conhecimento acumulados nos laboratórios, nas florestas, nos rios e pradarias devem se juntar, ver o abismo e se negar a dar o passo final. Quem sabe ainda haja tempo de voltar à última encruzilhada e escolher outro caminho.
Carlos Frederico Marés de Souza Filho é professor titular de Direito Socioambiental da PUC-PR e membro do Conselho Consultivo do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública. Foi por duas ocasiões Procurador Geral do Estado do Paraná.
Importante texto, prof. Marés. A distância entre a formulação das leis e a justiça social; a perda da garantia de acesso a direitos básicos. Obra nefasta gerada pela intelectualidade jurídica regiamente paga pelos donos do "mercado", que se sujeita a esse trabalho contra a ética da vida. A esta altura, pergunto, que leis são essas? Como fazer valer o verdadeiro Direito?
Hoje trilhas históricas, monumentos naturais, cachoeiras, picos etc. Particularizada proíbem o acesso ou cobrança s exorbitantes, por isso lançamos o projeto das Servidões Históricas Turisticas e Esportivas.Parabens importante