- Guilherme Purvin e Rui G. Vianna
Neste emblemático dia 31 de março de 2023, que marca o 59º aniversário do golpe empresarial-militar que derrubou o presidente João Goulart, o Instituto Brasileiro de Advocacia Pública divulgou nota oficial a respeito dos recentes fatos ocorridos no âmbito da 9ª Vara da Justiça Federal, em Curitiba, pois aparentemente estariam objetivando envolver o presidente Luis Inácio Lula da Silva em odiosa acusação implícita.
Como é sabido, em entrevista à TV 247 no dia 21 de março passado, Lula refletia emocionado sobre a perseguição política que sofreu e os 580 dias que passou na prisão, por um crime que restou provado que ele não cometeu, Em dado momento, relembrou um pensamento que o acometia durante a prisão e disse que, quando alguém lhe perguntava se estava tudo bem, ele respondia que "não está tudo bem. Só vai estar bem quando eu f* esse Moro’. Vocês cortam a palavra ‘f*’ aí…”, disse Lula. E prosseguiu no mesmo tom, dizendo que costumava dizer para as autoridades que entravam na cela algo como “eu estou aqui [na prisão] para me vingar dessa gente” (...).“Entrava um delegado e eu falava a mesma coisa. ‘Se preparem que eu vou provar [que sou inocente]’”.
Não haviam se passado três horas da transmissão da entrevista pela TV 247, quando, em Curitiba, a famosa juíza Gabriela Hardt, que substituiu Sérgio Moro na condução do processo judicial visando a retirada forçada do líder nas pesquisas de intenções de voto para as eleições presidenciais de 2018-2022, subitamente cancelou o sigilo processual de um processo penal e, ao melhor estilo lavajatista, na mesma hora a imprensa já sabia que essa investigação envolvia a facção criminosa PCC, que estaria planejando executar vários inimigos, mas em especial o Sr. Sérgio Moro.
Lula foi criticado pela falta de "timing" político para o seu desabafo emocional, pois a simultânea publicação de suas palavras e da investigação conduzida pela Polícia Federal daria munição à extrema direita para acusar o Partido dos Trabalhadores de estar vinculado ao PCC - acusação que volta e meia é repetida, sem que nunca seja apresentado sequer um indício de veracidade.
No entanto, assentada a poeira, o que o IBAP indaga em sua nota oficial tem conteúdo eminentemente jurídico:
1 - Por que uma investigação policial envolvendo organização criminosa estaria sendo conduzida no âmbito da Justiça Federal (e não da Estadual) e por que no Estado do Paraná?
2 - Qual seria o fundamento jurídico para a súbita decisão de Gabriela Hardt, mais do que levantar o sigilo dos autos, abrir diretamente para a imprensa essa investigação que, aliás, confirmou a eficiência da atuação da Polícia Federal, subordinada ao Ministério da Justiça, de Flávio Dino?
Diferentes regimes ditatoriais serviram-se da Justiça Criminal para alcançar propósitos exclusivamente políticos contra seus desafetos. O jurista Otto Kirchheimer, nos idos de 1961, já se debruçava sobre o tema em seu livro "Political Justice: The Use of Legal Procedure for Political Ends", publicado pela Universidade de Princeton. Nessa obra, buscou entender o que caracteriza a ligação entre Política e Justiça, baseando-se em uma profusão de material de origem estrangeira e doméstica. Otto Kirchheimer examina sistematicamente a estrutura da proteção estatal, a natureza de um julgamento estritamente "político", incluindo o julgamento por decreto do regime sucessor e as formas de repressão legal que os Estados têm usado contra organizações políticas. Ele analisa os julgamentos de Nuremberg e os julgamentos do expurgo comunista.
Embora contando com mais de 60 anos, a obra é de extrema relevância para o Direito Constitucional, o Direito Penal e as Ciências Políticas nos dias de hoje. Kirchheimer alicerça suas pesquisas especialmente (mas não somente) em jurisprudência de regimes autocráticos. Sérgio Moro, Deltan Dallagnol, o empresariado e significativa parte do Congresso Nacional fizeram tudo o que estava ao seu alcance para interromper a sucessão de mandatos presidenciais de candidatos do Partido dos Trabalhadores, procurando, porém, dar a todo o processo que culminou com o impeachment de Dilma Roussef e a prisão de Lula um verniz de juridicidade. A farsa começou a ruir quando The Intercept Brasil divulgou o teor de incontáveis mensagens trocadas por Moro com o Ministério Público Federal, as quais comprovavam irrefutavelmente a falta de lisura do processo. Considerando que, até aquele momento, não havia nenhuma intenção explícita de se implantar um regime autocrático, o resultado da notícia sobre a corrupção do processo judicial foi a sua desconstituição.
Nesse momento, porém, o estrago político para a democracia já era gigantesco. Um defensor da tortura física e psicológica de adversários políticos havia sido eleito presidente e o que se viu de 2018 a 2022 foi o que há de mais sombrio na história da República, com o surgimento de inúmeras teratologias judiciárias praticadas por magistrados, membros do Ministério Público, Advogados Públicos e policiais que desprezam sem constrangimento os seus deveres funcionais e passam a trabalhar em prol de causas político-partidárias.
A edição 198 da Revista Piauí, de março deste ano de 2023, ilustrativamente, lembra o caso do delegado Pablo Sartori, "da Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática do Rio de Janeiro, [que] instaurou um processo denunciando [o influenciador digital] Felipe Neto por corrupção de menores. Baseou-se em alguns vídeos do influenciador no YouTube, que não tinham classificação etária. (Nos últimos quatro anos, Sartori se tornou conhecido por perseguir judicialmente pessoas famosas que, de alguma forma, incomodaram a família Bolsonaro. Em dezembro de 2020, por exemplo, abriu um procedimento contra os jornalistas William Bonner e Renata Vasconcellos, apresentadores do Jornal Nacional, por crime de desobediência, alegando que teriam descumprido decisão judicial que proibia a Rede Globo de exibir documentos relacionados ao caso das rachadinhas. A notícia-crime que levou o delegado a tomar a decisão foi apresentada pelo senador Flávio Bolsonaro, hoje no PL-RJ, um dos investigados no caso ...)".
A quebra de sigilo e o instantâneo vazamento do conteúdo do processo judicial decorridas três horas da entrevista ao vivo de Lula, constituiria uma repetição com impacto menor, mas ainda assim com claro intuito político, da quebra de sigilo feita pelo Moro de escutas telefônicas entre Lula e a então presidenta Dilma Roussef, há exatos seis anos. Prática de todo condenável, tanto ética quanto juridicamente, que, ao hoje Senador, rendeu um singelo pedido de "escusas" ao Ministro Teori Zavascki, do STF, com a hipócrita alegação de que não teve intenção de provocar polêmicas, conflitos ou constrangimentos:
"Diante da controvérsia decorrente do levantamento do sigilo e da decisão de vossa excelência, compreendo que o entendimento então adotado possa ser considerado incorreto, ou mesmo sendo correto, possa ter trazido polêmicas e constrangimentos desnecessários. Jamais foi a intenção deste julgador, ao proferir a aludida decisão de 16 de março, provocar tais efeitos e, por eles, solicito desde logo respeitosas escusas a este Egrégio Supremo Tribunal Federal", disse aquele que dois anos mais tarde viria a ser o Ministro da Justiça de Jair Bolsonaro.
No caso atual, a medida foi questionada pelos integrantes da Polícia Federal, visto ter o poder de colocar em risco o futuro da operação, assim como de trazer à luz os métodos e estratégias desenvlvidas pela PF em casos semelhantes. Além da desnecessidade e da absoluta falta de amparo legal da medida, até o presente momento não houve qualquer consequência para a magistrada, além do clamor público, sendo que este parece lhe ser totalmente indiferente.
A nota do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública é a um só tempo sóbria e incisiva, pois evita enveredar pelo campo da especulação política ou policial, já que, rigorosamente, ao público leigo parece muito pouco verossímil que uma organização criminosa estaria incomodada com o juiz federal e ex-ministro da Justiça do Governo Bolsonaro, que pouco menos do que nada teria feito para desbaratá-la. E que, ao que consta de diversos depoimentos vistos na rede, sequer correspondem à verdade, não sendo certo que o ex-juiz estivesse sendo efetivamente ameaçado ou que tivesse levado a cabo medidas que causassem o desejo de retaliação.
Acesse aqui (https://www.advocaciapublica.com/post/31032023) o inteiro teor da nota do IBAP.
Guilherme Purvin é Procurador do Estado/SP aposentado e escritor, autor dos livros de contos "Virando o Ipiranga", "Sambas & Polonaises" e "Laboratório de Manipulação". Graduado em Direito e em Letras pela USP, é Doutor em Direito do Estado pela FDUSP.
Rui Guimarães Vianna é Advogado da Caixa Econômica Federal aposentado e escritor, co-autor dos livros "Brasil 2029: Contos Góticos e Pós-Apocalípticos" e "Natureza Degradada".
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