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O TAO DA FÍSICA e o 1º de maio

Atualizado: 22 de abr.

- Guilherme Purvin -

Sambaqui Figueirinha - Por Thigruner - Obra do próprio, Domínio público

Os leitores da Revista PUB correm para ler a nova crônica mensal de Carlos Marés, a crônica do dia 1º de cada mês, com a certeza de que começarão o mês com uma reflexão instigante, sensível, humana e inteligente. E eis que se deparam com um texto improvisado de Guilherme Purvin.


Marés escreveu-me ontem dizendo que está com a crônica pronta, mas lembrou-se que hoje seria 1º de maio e “quem sabe haja algum colega, ou você mesmo, que tenha feito ou queria fazer uma crônica para o dia dos trabalhadores, seria oportuno. Então poderia publicar a minha outro dia. Quero fazer uma última leitura e mando para você amanhã de manhã”.


Embora a frustração dos leitores seja mais do que justificável, é inteiramente pertinente esta ponderação de Carlos Marés. No entanto, não houve ninguém que tivesse tido a ideia de elaborar uma crônica para o dia de hoje. O dia 1º de maio haveria de passar em branco, assim como outras datas inteiramente esquecidas das gerações atuais. Por exemplo, o 21 de abril, dia em que foi executado o alferes Joaquim José da Silva Xavier, por participar de uma tentativa de sublevação contra a corte de Portugal. Esse dia não mereceu absolutamente nenhuma crônica – seja na Revista Pub ou na Rede Globo, sua concorrente direta.


É importante, porém, pensar na escolha das palavras que fez Carlos Marés em sua sugestão: “uma crônica para o dia dos trabalhadores” seria oportuna. É enorme a diferença entre Dia do Trabalho e Dia dos Trabalhadores.


Na infância, ouvia sempre o meu avô dizer que no dia do trabalho não se trabalha. Havia ali uma intenção de ironia, uma espécie de moralismo de quem trazia embutida na alma a ideia de senhor e servo – o dia era do trabalho e deveria, portanto, exigir esforços ainda maiores, jamais congraçamento, descanso e reflexão. Quem não trabalha é vagabundo e sem vergonha – a não ser que o não-trabalhador seja o patrão (mas isso era conversa de comunista).


Na escola, aprendi que trabalho era a energia transferida pela aplicação de uma força ao longo de um deslocamento. O símbolo de Trabalho é a letra Tao (τ) e sua unidade de medida é o joule. Trabalhador é aquele que transfere sua energia, aplicando sua força ao longo de um deslocamento, p.ex., um animal de tração. Para transferir sua energia, o trabalhador precisa dispor de uma fonte de reposição. Como os animais não realizam a fotossíntese e, por isso, por mais que permaneçam de sol a sol trabalhando, mesmo descamisados, não recuperam a energia que transferiram no processo de aplicação de sua própria força ao longo de um deslocamento espacial, deverão ser alimentados.


Temos, então, um processo contínuo de escravização do animal trabalhador: nós o impedimos de ir à busca de seu próprio alimento, que poderia ser encontrado livremente na natureza, e o obrigamos a transferir sua energia pela aplicação da sua força em nosso benefício, obviamente. Para isso, porém, precisamos fornecer a ele o alimento que gerará a energia necessária para o trabalho: é o salário.


O dia 1º de maio deveria, assim, ser o dia de reflexão a respeito desta equação retirada da Física. Eliminemos qualquer meditação a respeito de justiça, dignidade, moral ou ética e nos atenhamos exclusivamente aos aspectos de matemática aplicada (cinemática e dinâmica dos corpos) para responder a esta pergunta: o que seria preciso para que o trabalhador (o animal, humano ou não) aproveite em sua plenitude o tempo de sua vida, dispendendo a menor quantidade de energia possível?


Em 1986, viajei de carro para o sul do Brasil e passei por um lugar chamado Garopaba do Sul, em Santa Catarina. Foi lá que vi pela primeira vez um sambaqui – palavra de origem tupi que significa “amontoado de conchas”. Era um morro formado inteiramente de conchas do mar. O guia turístico dizia que a alimentação era farta na costa e os antigos habitantes da região, os índios carijós, precisavam tão somente apanhar as conchas no mar para se alimentar. Sempre segundo a teoria antropológica desfiada por esse guia, foi a enorme facilidade de sobrevivência que levou aquela tribo à extinção: ao primeiro ataque externo, os índios não tinham nenhum instrumento para sua autodefesa. Havia passado a vida inteira comendo mariscos, sem se preocupar com a hipótese de um dia virem a se tornar a presa.


Criamos um modelo de sociedade que é inteiramente estruturado nesta regra: há que se impedir o trabalhador de ir à busca de seu alimento. A lógica é totalmente perversa: ele haverá de querer aproveitar ao máximo o seu tempo no ócio, no prazer de sentir o sol na pele e o estômago satisfeito. Veja o que acontece com esse tipo de pessoa: chega o inimigo e o extermina, como aconteceu com os índios de Garopaba do Sul. Portanto, antes que isso aconteça, é preciso obrigá-lo a trabalhar, mesmo quando poderia estar com sua família deitado numa rede, cantando e brincando.


Com o fim da bipolaridade política no planeta no final da década de 1980, o Direito do Trabalho começou a ser inteiramente desconstruído. Na Faculdade de Direito da USP, os professores Amauri Mascaro Nascimento e Octávio Bueno Magano nos passavam as novas palavras de ordem dos teóricos da área jurídica: flexibilização das normas trabalhistas. Os princípios do Direito do Trabalho que havia aprendido com a leitura da belíssima obra de Américo Plá Rodriguez já não podiam mais ser invocados. De lá para cá, tudo o que vimos foi uma exponencial violência por parte de quem tem a força física – a manu militari – para obrigar os trabalhadores a transferirem sua energia pela aplicação da força necessária ao deslocamento.


Neste momento em que todas as tentativas de resistência coletiva estão sendo criminalizadas. a exemplo do que ocorria na época que antecedeu a criação a Organização Internacional do Trabalho, sindicatos de trabalhadores foram estigmatizados, mas o precariado começa a se mobilizar. O entregador do CornerShop, que na verdade é a própria Uber, rapidamente vai percebendo que há algo de errado nessa equação perversa: não faz nenhum sentido que ele seja obrigado a arriscar sua vida 16 horas por dia para transportar alimentos aos clientes de seu empregador. Alguém está dispendendo força demais no deslocamento – e quem está imóvel, nos tempos de pandemia, são apenas duas pessoas: o dono do aplicativo que ele instalou para ganhar uns trocados e o morador do apartamento que não tem coragem de arriscar a vida na aglomeração de um supermercado.


Mais do que nunca, é momento de estudarmos as leis da física e as aplicarmos em prol do ócio para todos – nem que para tanto tenhamos que reservar um tempo extra para também confeccionarmos os tacapes e zarabatanas para resistir ao ataque dos portugueses aos índios carijós.


Áudio da apresentação de Chico Buarque e Simone no histórico evento do dia 1º de Maio de 1979 no Riocentro

 

Guilherme Purvin, escritor e advogado, é formado em Letras e Direito pela USP. Procurador do Estado/SP Aposentado, é secretário-geral do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública e coordenador geral da APRODAB.


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1 comentário


carlosmares
01 de mai. de 2020

Muito bom, Guilherme! O primeiro de maio não só não passou em branco como ganhou fina crônica. Viva os Carijós!

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