- Carlos Frederico Marés de Souza Filho -
É curioso pensar que existe um direito à alimentação. Todos os seres, humanos, animais e vegetais, se alimentam, ou melhor, têm que se alimentar para viver. Mais do que um direito, é uma necessidade vital; vive, portanto se alimenta, não se alimenta, portanto não vive. Não só para humanos. Quando os seres humanos querem manter vivos animais e vegetais, ainda que por período pequeno, a primeira providência é alimentá-los com o que chama de rações, adubos, etc. Mas o estranho é faltar alimento para os humanos, para muitos humanos e chamar isso de direito. Apesar da vasta destruição causada a outros seres, os humanos não dão conta de alimentar a si como espécie. Para que destrói os outros, então? Como é possível que com toda a extensão de terra usada da agricultura industrial ainda falte comida para muita gente?
Para que servem as sociedades humanas senão para prover as necessidades de seus membros? E quais são as necessidades primárias de seus membros senão feijão, arroz, verdura, batata doce, mandioca, nomes de espécies várias para saciar a fome? Então, a primeira tarefa da sociedade seria plantar estas coisas, assim, diversificada, um pouco de cada uma, misturadas com umas árvores de frutas, ervas medicinais e uns animais. Mas a agricultura rentável na Bolsa de Valores prefere plantar uma coisa de cada vez, só soja, só milho, só cana, só arroz. Se só tem uma planta o fertilizante é o mesmo, as pragas são as mesmas, os herbicidas são os mesmos, a semente é mesma e assim por diante, os mesmos se repetem. Mas o ganho é maior, a escala é maior, o trator é maior o tanque de combustível fóssil é maior e assim por diante, o maior se repete. Mais há menores nessa produção industrial. É muito menor o número de trabalhadores, é muito menor a natureza, bichos e plantas chamadas de inúteis ou nocivas, é muito menor o número de famílias que se alimentam diretamente desse trabalho, e assim por diante, o menor se repete. Essa agricultura industrial produz dinheiro, impropriamente chamado de riqueza, que se acumula do lado do plantador de uma coisa só e, consequência natural, rareia nos que plantavam tudo misturado e tiveram que ir para a fila do emprego da fábrica de tratores e de venenos químicos, e, então, o dinheiro se acumula e se concentra enquanto a comida que era a riqueza de quem plantava, rareia, mas só porque não podem plantar. E por que não podem plantar? Porque essa gente estranha que tem a comida como riqueza só sabe plantar na terra. Sem terra, como plantar? Se na terra está plantado somente dinheiro, falta comida para quem não tem dinheiro. Como é o nome disso? economia política? capitalismo? ou simplesmente injustiça? Pois bem, a alimentação virou um direito, porque muita gente não a tem, assim como a liberdade, a integridade física, a vida! Quem vai garantir o direito à alimentação se a terra está coberta de plantações de dinheiro?
O lado em que rareia dinheiro, e a comida, aumenta em gente. Muita gente, mulheres, homens, crianças, jovens e idosos. São sem terra, sem emprego, sem comida e se juntam para procurar terra para plantar e, estranheza do destino, plantar exatamente comida. Alguns plantam dinheiro e se dão mal, o dinheiro logo compra suas terras e voltam a ser sem comida. Muitas vezes, porém, quando se organizam e tomam em suas mãos o destino de plantar comida, conseguem, mas não sem muita dificuldade, são hostilizados, criminalizados, xingados, perseguidos, presos e expulsos. Quando expulsos, em geral, perdem a plantação que é destruída não servindo para alimentar nem a eles, nem a outros, nem aos bichos. Perde-se, afinal, dizem os que mandam destruir, não valiam muito mesmo, não era riqueza, era só comida que, ainda por cima, tinha que ser colhida com muito trabalho e dedicação humana e trabalho humano é o que desejam evitar os plantadores de uma coisa só, porque para eles trabalho humano gasta dinheiro.
Assim, essa gente que luta, briga, morre, é criminalizada, xingada, presa, perseguida, quer terra para quê? Não é por pura vaidade, por lazer, para contemplar a natureza ou nem mesmo só para fustigar os plantadores de dinheiro. Estranha gente, quer terra para plantar comida. Ora vejam só! Para plantar um direito, uma necessidade, para plantar a vida. Plantam e comem do que plantaram. Fome saciada e ainda há planta que pode saciar outras fomes. Vender o excedente faz parte da plantação, podem comprar botinas, remédios que cada vez precisam menos, uma roupinha nova e até dá pra pôr a filharada na escola.
Mas tem muita gente que não consegue chegar na terra e não tem o que comer porque não consegue dinheiro para comprar. Piorou muito na pandemia. Então os perseguidos, xingados, criminalizados, resolveram vestir a roupinha velha mesmo, calçar a botina que ainda dá pro gasto e sair para distribuir a comida pra quem está na precisão. Mas que obrigação têm eles de realizar os direitos dos outros? É claro que não é por obrigação, nem para realizar direitos, é por que gente não vive sem comida, já basta a ameaça da Covid-19, que não vá a fome esconder o vírus no atestado de óbito. É solidariedade. Esta palavra significa repartir o pouco que tem ainda que com sacrifício do que possa vir a ter. Mas se faz por gesto de quem acredita que a sociedade é para prover a necessidade de seus membros e se sente membro apesar de xingados, criminalizados, perseguidos. Solidariedade não é coisa de direito, é coisa de ética, e a modernidade separou muito bem a ética do direito, quem doa comida não cumpre direito, apenas faz um gesto ético. Não realiza direitos, convida um irmão à mesa.
O MST resolveu doar alimentos a quem precisa, não poderia doar dinheiro, planta comida. A quantidade de toneladas doadas já passa de quinhentas e vem aumentando todo dia. É difícil fazer a conta, são 44 em Londrina, 32 em Cascavel, em todo o Paraná chegava a 244 toneladas semana passada. Para os ainda mais carentes, além dessas doações, resolveram preparar a comida e distribuí-la pronta para quem não tem sequer o sal para temperá-la, milhares de pratos foram servidos. Quanto custa, em dinheiro, quinhentos mil quilos de comida? de arroz, de batata, de fubá, de feijão? É muito fácil fazer a conta, mas não importa quanto custa, quem faz contas, e transformam a fome em dinheiro, são os que precisam prestá-las aos acionistas distantes, as pequenas agricultoras e agricultores proclamados Sem Terra sabem apenas que terão que adiar a botina nova, a trocaram por um sorriso, uma intenção de abraço, porque nem isso se pode dar nestes tempos infames (para conhecer mais estas doações no Paraná, acessar os links: Mídia Sem Terra ou, Brasil de Fato - Redação Paraná, ou, se quiser conhecer os produtos que estão a venda no Paraná, Produtos da Terra).
Mas são nos tempos infames que se revelam as pessoas, as organizações e as verdades. Então era para isso que essa gente xingada, perseguida, criminalizada queria terra? Era para plantar comida? Então era mentira que eram criminosos que queria roubar a riqueza alheia? Então, cada vez que foram expulsos de uma terra foi expulsa também a comida que plantavam? Essa gente estranha e solidária empresta sentido poético e ético à velha expressão "em se plantando dá", porque, se em se plantando dá, se pode doar se se plantar. A generosidade da terra há de corresponder a solidariedade das gentes. E, como disse José Damasceno ao entregar algumas toneladas de comida à comunidade carente de Londrina: "Não estamos doando para sermos mais, mas para sermos iguais!"
UMA HOMENAGEM AO MST E A DOAÇÃO DE ALIMENTOS DE QUALIDADE À COMUNIDADES CARENTES DE TODO O BRASIL
Carlos Frederico Marés de Souza Filho, professor de Direito da PUC-PR, é escritor e diretor do IBAP.
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