-CARLOS MARÉS-
A CPI descobriu um segredo plenamente sabido e conhecido: a indústria farmacêutica lucrou milhões com a venda de cloroquina e outros remédios impróprios para Covid-19 só porque o presidente Bolsonaro e seu governo incentivaram, apoiaram e difundiram falsas notícias sobre suas propriedades, embora não tenham conseguido introduzir na bula a indicação mentirosa. Mas, uma coisa que a CPI ainda não descobriu, ou não nos informou, é se a indústria farmacêutica se aproveitou do absoluto despreparo e despropósito do governo e simplesmente vendeu sua mercadoria ou se ela mesma apresentou ao insano governo algumas amostras grátis, ou gentilezas mais substanciais, sugerindo a campanha oficial. Ou ambos, como nos lucrativos negócios das vacinas.
Nem o governo nem a indústria farmacêutica são confiáveis. Transformar a cura, ou a falsa cura, em mercadoria tem sido o negócio desse ramo industrial e para isso corrompe a ciência e cientistas menos preocupados com os princípios éticos que deveriam estar na base de quem trabalha com doenças e curas. Se por um lado tem cientistas que investigam, analisam reações e possibilidades das químicas e suas misturas e as descobre, em suas propriedades positivas e negativas, do outro lado há um departamento comercial das empresas que trata de vender a cura transformada em mercadoria e nem sempre da melhor forma para o paciente, nem sempre utilizando a competência dos médicos, mas a ganância de alguns, amplificando as propriedades positivas e escondendo as negativas. O remédio, então, não é mais remédio, vira mercadoria. Não importa se cura, mata ou aleija, tem que ser vendida, tem que movimentar o mercado. Com vida própria a mercadoria navega em águas turvas, envolvida em mentiras, falsas informações, meias histórias, sempre só para gerar lucro.
Essa singela lógica do absurdo a que tão bem se presta o governo Bolsonaro e a indústria farmacêutica, desvela o que no século XIX Marx chamou de “fetiche da mercadoria”. A relação entre as pessoas, a doença e a cura, o médico e o paciente, o produto e seu uso, deixam de ter qualquer importância quando a mercadoria ganha vida própria, fetichizada, e não precisa mais cumprir a sua utilidade, não precisa mais curar, no caso da cloroquina nem foi feita para curar Covid-19. Importa vender! E vender não quer dizer ser aplicada à sua finalidade, quer dizer simplesmente trocá-la por dinheiro, depois de vendida pode ser atirada ao lixo, aplicada em quem não precisa ou depositada em prateleiras empoeiradas à espera do vencimento e descarte. Essa é exatamente a ideia que Marx externava em “O caráter fetichista da mercadoria e seu segredo” no primeiro capítulo do Capital. Vivesse hoje e Marx diria simplesmente: “olha, aí, veja como o fetiche funciona!” O fetiche da mercadoria impede que o produto do trabalho humano cumpra sua função social.
O episódio é trágico porque a mentira ajudou a ceifar vidas na pandemia. Mas não é fato isolado, faz parte do sistema que não cria produtos para satisfazer necessidades ou utilidades humanas, cria mercadorias que ganham vida própria, com seus segredos e fetiches, e promovem a acumulação de dinheiro a que chamam de riqueza. A indústria farmacêutica não é a única, mas é uma das mais eficientes criadoras dessas falsas necessidades, maldades e fetiches. Às vezes com a ajuda explícita de governos, como neste ridículo caso, às vezes convencendo médicos e pacientes a usar suas invenções e invencionices. Num canto de página a Folha de São Paulo informava no dia 22 de julho que “a empresa Johnson & Johnson e outros distribuidores acusados de alimentar a epidemia de opioides estão dispostos a pagar 26 bilhões de dólares para resolver milhares de processos (nos EEUU) …”. Quanto deve ter sido o lucro das empresas com o consumo viciante dos opioides nas últimas décadas no mundo inteiro? Certamente valeu a pena do ponto de vista comercial o risco de pagar agora só 26 bilhões de dólares, a maldade estava internalizada como custo.
Mas a pergunta exata não é quanto a empresa ganha com o fetiche, sabe-se que é muito e faz parte do sistema. O lucro abusivo e criminoso das empresas explica o porquê a mercadoria vira um fetiche, mas a verdadeira pergunta é como a inutilidade ganha ares de certeza útil. A mentira é o meio, certamente, mas alguém tem que mentir com credibilidade para que a mentira ‘pegue’. No caso dos remédios, doenças e dores é necessária a conivência de médicos, sistemas de saúde e propaganda intensa. E isso foi explícito no caso da cloroquina, Bolsonaro ofereceu cloroquina até para a ema, mas foram os médicos que receitaram a seus pacientes. A ema, conhecendo o presidente, não aceitou, mas os pacientes confiaram nos médicos. A indústria farmacêutica inventou a amostra grátis na fetichização da mercadoria remédio e ainda criou outros favores às autoridades legislativas, judiciais e executivas e profissionais da medicina em forma de congressos, viagens e conferências, sem falar em algumas gentilezas inomináveis, o que significa que as amostras podem ser muitas coisas, menos grátis.
Mas o fetiche da mercadoria não é apenas a separação das mercadorias e do capital que ela encarna, da vida concreta dos seres humanos e suas necessidades. Vai muito mais além e atinge também os não humanos animais e plantas que passam a ser devastados na mesma lógica. E mais uma vez a indústria farmacêutica e química ganham proeminência na vilania. Basta olhar os agrotóxicos e transgênicos. Estas mercadorias têm vida própria, convencem governos a não escutar cientistas, convencem cientistas a dizer meias palavras e não contar tudo o que sabem, fazem leis, relatórios e guardam parte dos lucros para pagar indenizações posteriores que parecem ser elevadas, mas são apenas frações do rendimento do rico negócio. Basta ler os jornais para saber, a informação da Folha de S. Paulo se referia a 26 bilhões se dólares, há muito mais, depois de uma condenação para pagar 2 bilhões de dólares pelo dano causado pelo agrotóxico Roundup, a Bayer, que comprara a Monsanto sabendo disso, fez um acordo para pagar mais 11 bilhões de dólares para arquivar as ações. Vale a pena, se fosse tudo sério e ético, o lucro seria muito pequeno, talvez o Roundup fosse apenas um veneno, não uma mercadoria. Tudo se resume a valores monetários, eis o fetiche! A ética, a necessidade e o uso não contam.
Está certo que o caso cloroquina no Brasil é de uma grosseria desmesurada, compatível e condizente com o governo Bolsonaro. A tal ponto absurda que podemos imaginar que nem foi programada pela indústria farmacêutica que apenas aproveitou a ocasião, a insensatez do governo e fez bons negócios, com ampla distribuição de várias espécies de amostras grátis, na venda de sua mercadoria, o que eticamente não a absolve. Mais uma vez: não vendeu remédio, apenas mercadorias, e sabia disso. As amostras grátis são necessárias aos que ajudam a mercadoria ter vida farta. Entretanto, não nos iludamos, pode haver muito mais sutileza nessas manipulações. De agrotóxicos a carros, de remédios a telefones, de alimentos a perfumes, os departamentos comerciais estão diuturnamente pensando em como vender a mercadoria sem nenhuma preocupação com a devastação da natureza para adquirir matéria-prima barata, nem com as pessoas coisificadas no trabalho, nem com a utilidade que a coisa pode ter e muito menos com os danos que pode causar. A saúde humana, dos animais, das plantas e do planeta não importam seja no quarto malcheiroso, sem ar e sem luz, do trabalho clandestino, seja nos iluminados laboratórios de alta tecnologia genética, o produto vira mercadoria e o fetiche lhe dá vida própria deixando para trás um rastro de morte e destruição.
Em que mundo vivemos!? Até podemos saber a resposta, mas em que mundo viverão nossas netas e netos?
Carlos Frederico Marés de Souza Filho é professor titular de Direito Socioambiental da PUC-PR e membro do Conselho Consultivo do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública. Foi por duas ocasiões Procurador Geral do Estado do Paraná.
Este artigo do Professor Marés coloca várias questões importantes em torno de temas como a cientificidade das proposições enquanto "garantia" da respectiva veracidade, o parâmetro da "cientificidade" por vezes desvirtuado em nome do interesse de quem paga a pesquisa, a utilização dos seres humanos considerados irrelevantes por este sujeito que transcende a humanidade e se converteu em medida do Bem e do Mal -- o Mercado -- como meros instrumentos para o escoamento e teste de produtos, independentemente da destruição que se opera. O mais trágico é o acoplamento das premissas do obscurantismo, que deu como sintoma de antipatriotismo o apontar a imprestabilidade dos remédios em questão para o mal a que estavam a ser destinados, ao discurso de quem…
Parabéns pelo ótimo artigo!
Excelente artigo, Marés! A pergunta trazida no texto sobre como a inutilidade ganha ares de certeza útil é respondida com muita precisão: alguém tem que mentir com credibilidade para que a mentira "pegue". Exatamente isto que, no caso da Covid-19, aconteceu. Muitos médicos (que nós, em geral, confiamos e procuramos para nos dar a cura), alguns cientistas (destinados a pesquisar soluções para o bem) e aqueles políticos que, costumeiramente servem de guia para os que os elegeram, isto tudo somado à propaganda oficial criminosa, nos levou à morte de milhares de pessoas. Pessoas que não são simplesmente um número de estatística, são pais, filhos, avós, irmãos, amigos. Estas vidas foram vistas como mercadoria, também! São todos coniventes!
Difícil mesmo é…