-CARLOS MARÉS-
O agronegociante entregava umas quarenta marmitas semanais, gostava de fazer caridade, dizia. O custo não afetaria sua balada de sábado a noite, certamente gastaria muito mais oferecendo drinques sem chamar de caridade. Não pode suportar, porém, que a senhora que recebia regularmente sua ‘caridade’ votasse em Lula e, em vídeo, a humilhou, imaginando que ela mudaria o voto ou que pudesse convencer outras pessoas a votar em seu candidato. O tiro saiu pela culatra e ele pediu desculpas pelo vídeo, não pela humilhação, pediu desculpas pelo estrago que causou à campanha de seu candidato. De fato, na visão dele o errado foi ter feito o vídeo e divulgado, deveria ter simplesmente tentado convencer a senhora e cada pessoa que recebesse a marmita a votar em seu candidato, mas seriam só quarenta e ele imaginou que com o vídeo convenceria milhares. Errou. Mas se tivesse atingido seu objetivo teria acertado, certamente não contou com a dignidade das pessoas que recebem marmitas.
Mas essa reveladora história conta mais da atual situação do que o preconceito, desprezo e arrogância de um agronegociante com a fome dos outros. Ele exige que seus comensais votem em seu candidato, na realidade se trata de um crime eleitoral pelas regras de nosso direito. Mas parece que ele não se importa muita com as regras legais. As leis atuais prejudicam os seus anseios. Se a senhora humilhada cedesse à sua exigência e aceitasse votar no parceiro ético do agronegociante como ele poderia conferir, em 2 de outubro, que a senhora realmente cumpriria a palavra? Seria difícil, o voto individual não é auditável, só o resultado geral, só os números.
O caráter secreto do voto é ultrajante para a ética da soberba. Como confiar num vendedor de votos? Quem vende o voto é um canalha, tanto quanto quem o compra, e um canalha não costuma cumprir a promessa pelo simples fato de ser canalha. Chamaríamos isso de o dilema da canalhice. Por isso o empenho de Bolsonaro em criar formas de auditar o voto prometido pelos canalhas. O melhor mesmo, para eles, seria a impressão de um papel comprovando em quem votou na solidão da urna. Nada mais simples, um papelzinho auditável como prova inconteste do cumprimento da promessa, o canalha cometeria somente a primeira canalhice, venderia o voto, mas estaria impedido de cometer a segunda, não cumprir a promessa no segredo da urna. Garantiria a marmita ou o emprego na loja do véio da Havan. Mas não pode, recibo de voto nem no tempo dos coronéis auxiliados pelos generais. Naquele tempo o recibo ia para dentro da urna, marcadinho, para que fosse reconhecido pelo escrutinador. A impressão do voto ou a prova de voto certo é ideia engenhosa e altamente facilitadora, criminosa. Sem imprimir, qualquer um vota em quem quiser. É muita liberdade para quem necessita uma marmita para matar a fome, pensam os agronegociantes.
É constrangedor. O voto eletrônico tem permitido que as pessoas votem em segredo, de acordo com sua convicção e ética. Consequência? Têm sido eleitas pessoas indesejáveis para as oligarquias.
Mas num estado de direito nem tudo deve ser secreto. Ao contrário. A origem da riqueza, por exemplo, deve ser auditada tintim por tintim, mas a oligarquia não gosta, reage, fica furiosa, apela para deus, pátria, família e a sagrada propriedade. Títulos de terra, por exemplo, a oligarquia criou um sistema cartorial-burocrático-judiciário que é capaz de esconder todos os grilos, falsidades, interpolações. É aparentemente auditável, mas a exigência de provas e contra provas, perícias e convicções acabam por reconhecer a propriedade exclusiva, mesmo que anti-social, de um pedaço de papel velho e encardido, ou de aparência velha e encardida. Com a apresentação do papel, a que chamam de título, assinado pelo amigo cartorário, o juiz imediatamente manda todos os posseiros para o meio da rua. É claro, os posseiros não têm papel, auditável é apenas a lavoura que plantaram e a comida que estão comendo sem necessitar a caridade de ninguém. Mas esse não é o único papel difícil de auditar. O dinheiro é ainda pior.
O dinheiro não é mais do que a representação de uma riqueza, é um papelzinho pintado, que representa bens acumuláveis, ouro, prata, âmbar, dizia Locke, dólares, dizemos agora. Se ele representa bens, necessariamente deveria ser auditável para se saber a origem. Não se trata apenas de auditar a legitimidade do papel pintado ou saber se ele não é falso, se trata de saber a origem do negócio no qual foi recebido. Um trabalhador pode acumular bens com seu salário, eis a grandeza do sistema dizem os liberais, pode passar um pouco de fome e desconforto, mas vai juntando o dinheiro ganho cada mês e tanto junta que compra um terreninho na periferia, junta mais e faz uma casinha, já sem pagar aluguel, pinta a casa, põe janelas de vidro, é capaz de comprar um sofá e uma geladeira. Tudo auditável, recebeu o salário, pôs na poupança, pagou o vendedor, sem sobrar nenhum dinheirinho inauditável. Muitas coisas pagou em dinheiro, as prestações do sofá, por exemplo, pagava na lotérica e preferia pagar em dinheiro, auditável, era só verificar a retirada da conta salário.
Já a família Bolsonaro tem um gosto especial por comprar grandes riquezas com dinheiro inauditável. Aliás, é muito mais simples do que grilar terras com documentos duvidosos. Basta ir juntando dinheiro que caí do céu ou colher da árvore de um quintal escondido e ir guardando num cofre, mala ou gaveta. Mas atenção, tem que ser cofre, mala ou gaveta grande, porque cada milhão de reais em nota de cem são 10 mil notas. Quantas resmas de papel A4 são necessárias para imprimir 10 mil notas? Umas dez resmas, contanto que aos notas são muito mais grossas que o papel sulfite? E um milhão é apenas um apartamento de três quartos classe média, mansões valem muito mais. É verdade que o diligente Presidente que muito bem pensa nos negócios da família, em uma de suas raras ações criou as notas de 200 reais, o que reduziu pela metade o volume requerido. O mesmo valor caberia em meia mala ou a mala transportaria o dobro do valor. É aritmética simples.
Mas nessa história fica revelado o quanto o Brasil é curioso. Lula foi condenado por lavar dinheiro num apartamento triplex que nunca comprou, nunca foi seu, nunca teve um título. Para isso bastou um juiz incompetente e parcial segundo o STF. Bolsonaro e sua família compraram pelo menos 51 imóveis em dinheiro vivo, inauditável, lavável? Quantas condenações merecerá? Nenhuma, e o juiz nem precisa ser incompetente, basta ser parcial. Enquanto isso o MST, que entregou milhares de toneladas de alimentos para quem não tinha o que comer, não por caridade, por solidariedade, é ameaçado de ser expulso da terra em que produz porque um juiz acha que o velho papel meio auditável vale mais do que uma família que produz, come e dá de comer a quem tem fome.
E a pose da soberba diz que é assim mesmo, mas não é, nem pode ser!
Carlos Frederico Marés de Souza Filho é presidente do IBAP, Professor de Direito Socioambiental da PUC-PR. Foi Procurador Geral do Estado do Paraná por duas vezes.
Um texto magistral acerca das misteriosas tábuas de valores de quem jura que tudo vale contra a cor vermelha e que, certamente, tem artérias verdes, ao contrário da maior parte dos seres humanos...parabéns, Professor Marés!