Contradições que espelham a disputa pela monetarização da natureza
-IBRAIM ROCHA-
O STF acaba de definir o principal tema que cerca a proteção da posse indígena cuja a propriedade é do Estado Federal, daí a corte reconhecer que “as terras de ocupação tradicional indígena, na qualidade de terras públicas, são inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis”.
Nesta breve analise, se busca considerar se de fato esse direito está compatibilizado com os direitos das comunidades tradicionais, previstos na CRFB, já que tais direitos sobre o território têm caráter essencial para as comunidades.
O julgamento 1031 de Repercussão Geral, passa a ser o fiel da balança para a proteção dos territórios indígenas. O ponto positivo do julgamento é deixar claro que a ação estatal, não pode ser omissa, prejudicando o uso tradicional, violando um dever de proteção cuja obrigação é do Estado, por ser “a demarcação um procedimento declaratório do direito originário territorial das terras ocupadas tradicionalmente por comunidades indígenas” confirmando o julgado da ADPF 709, reafirmando, a sua distinção da posse civil “consistindo na ocupação das terras habitadas em caráter permanente pelos indígenas, das utilizadas para suas atividades produtivas, das imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e das necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, nos termos do §1º do artigo 231 do texto constitucional”, que se pode reconhecer como posse étnico-cultural. Por ser um dever da União efetivar o procedimento demarcatório das terras indígenas, mesmo quando admitida a formação de áreas reservadas, que são aquelas objeto de outras formas de incorporação ao patrimônio federal para a destinação aos índios, esta somente pode ocorrer “diante da absoluta impossibilidade de concretização da ordem constitucional de demarcação, devendo ser ouvida, em todo caso, a comunidade indígena, buscando-se, se necessário, a autocomposição entre os respectivos entes federativos para a identificação das terras necessárias à formação das áreas reservadas, tendo sempre em vista a busca do interesse público e a paz social, bem como a proporcional compensação às comunidades indígenas (art. 16.4 da Convenção 169 OIT);
Embora sem cunhar expressamente, o julgado reconhece que a posse indígena é uma posse agroecológica, visto que “A ocupação tradicional das terras indígenas é compatível com a tutela constitucional ao meio ambiente, sendo assegurados o exercício das atividades tradicionais dos indígenas”, reforçando que “as terras de ocupação tradicional indígena são de posse permanente da comunidade, cabendo aos indígenas o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e lagos nelas existentes”, reafirma-se que é dever do Estado proteger os modos diferenciados de posse da terra, que servem de suporte a grupos sociais diferenciados.
O STF reforçou um tema que estava adormecido, mas reconhecido desde o julgamento da Petição 3.388-STF, de que as terras indígenas devem seguir espectros mais elásticos para a sua definição, por meio de critérios científicos específicos que se encontram na antropologia, expresso no voto do Ministro Ayres Brito, de que “Afinal, é mesmo ao profissional da antropologia que incumbe assinalar os limites geográficos de concreção dos comandos constitucionais em tema de área indígena.” e, reforçado pelo autor da malfadada tese do Marco Temporal, Ministro Menezes Direito, que aos transcrever partes do Laudo Antropológico para fundamentar as suas conclusões do caso concreto, afirma o juízo jurídico de que “De todo modo, o certo é que tanto em um quanto em outro fica clara a atribuição do antropólogo de um papel preponderante, que envolve a coordenação de todo o trabalho. Assim, o relatório do antropólogo é o "foco" desse processo.”, e que agora reconhece o STF expressamente que “O laudo antropológico realizado nos termos do Decreto nº 1.775/1996 é um dos elementos fundamentais para a demonstração da tradicionalidade da ocupação de comunidade indígena determinada, de acordo com seus usos, costumes e tradições, na forma do instrumento normativo citado”.
A tese do marco temporal era uma contradição com o reconhecimento de que cabe a ciência da antropologia retratar a extensão do direito a terra dessa posse diferenciada, uma confusão sobre o limite jurídico da teoria do Indigenato. O fato, é que ao afastar o marco temporal afirmando que “A proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 5 de outubro de 1988 ou da configuração do renitente esbulho, como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição” o STF apenas reconhece que a ele somente cabe qualificar quais as consequências jurídicas, do modo como essa posse privilegiada protegida e diferenciada pelo texto constitucional se coloca frente a outras formas de uso da terra. Donde reconhecer que “A proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 5 de outubro de 1988 ou da configuração do renitente esbulho, como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição”.
Apesar de todos estes argumentos lógicos, que reforçam que o texto constitucional protege a posse indígena como um direito a uma vida diferenciada e não assimilacionista, o STF cria critérios que se pode denominar de Marco Temporal Monetário para regular a disputa por visões diversas de uso do território, criando uma monetarização pela “perda” social daquele espaço para as comunidades indígenas.
Com efeito, a primeira hipótese de aplicação do Marco Temporal Monetário é reconhecido pela Corte, ao declarar que “Existindo ocupação tradicional indígena ou renitente esbulho contemporâneo à promulgação da Constituição Federal, aplica-se o regime indenizatório relativo às benfeitorias úteis e necessárias, previsto no art. 231, §6º, da CF/88”, definindo que a data da promulgação da CRFB é o marco temporal para reconhecimento de direitos de indenização para benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé, não sendo possível a indenização pela terra nua, aliás, a única hipótese indenizatória prevista no texto constitucional, mas o STF adita elementos da data da conflito, para ser possível aferir o efeito monetário indenizatório.
Entretanto, flexibiliza, a aplicação do Marco Temporal Monetário, ao declarar que “Descabe indenização em casos já pacificados, decorrentes de terras indígenas já reconhecidas e declaradas em procedimento demarcatório, ressalvados os casos judicializados e em andamento”, pois neste caso, não ressalva, se estes casos judicializados, e, em andamento, podem remontar a data da promulgação constitucional, desde que lá protocolados, independe de se reconhecer, existir ou não a ocupação tradicional ou renitente esbulho.
A segunda hipótese de aplicação do Marco Temporal Monetário, se dá justamente por usar o 5 de outubro de 1988, para reconhecer que se for ausente ocupação tradicional ou o renitente esbulho, “são válidos e eficazes, produzindo todos os seus efeitos, os atos e negócios jurídicos perfeitos e a coisa julgada relativos a justo título ou posse de boa-fé das terras de ocupação tradicional indígena, assistindo ao particular direito à justa e prévia indenização das benfeitorias necessárias e úteis, pela União” , ou, seja, cria hipótese de indenização pela União, de terras que são suas, visto que o ato de demarcação é por natureza declaratório da terra indígena, que é definida como federal, aliás, disso é que deriva a nulidade dos títulos eventualmente concedidos.
Temos a terceira hipótese do Marco Temporal Monetário que ocorre, quando inviável reassentamento de particulares, que estejam sobre terras indígenas, e, que em 5 de outubro de 88, não estavam em ocupação tradicional ou renitente esbulho, definindo que “caberá a eles indenização pela União (com direito de regresso em face do ente federativo que titulou a área) correspondente ao valor da terra nua, paga em dinheiro ou em títulos da dívida agrária, se for do interesse do beneficiário, e processada em autos apartados do procedimento de demarcação, com pagamento imediato da parte incontroversa, garantido o direito de retenção até o pagamento do valor incontroverso, permitidos a autocomposição e o regime do art. 37, §6º da CF”. Ou seja, ainda, dependerá o direito de ressarcimento da União, frente ao ente público, a comprovação de dolo ou culpa, mas cria um direito objeto de indenização para os particulares, em face da União.
Um ponto, ainda, que encerra esta primeira análise, é que embora afastando o marco temporal, o STF, ele cria uma espécie lapso prescricional para a instauração de procedimento de redimensionamento de terra indígena, por apesar de afirmar que esta não é vedada “em caso de descumprimento dos elementos contidos no artigo 231 da Constituição da República, por meio de procedimento demarcatório” esta deve ser feita “até o prazo de cinco anos da demarcação anterior, sendo necessário comprovar grave e insanável erro na condução do procedimento administrativo ou na definição dos limites da terra indígena” . Embora, ressalve, destes caso “as ações judiciais em curso e os pedidos de revisão já instaurados até a data de conclusão deste julgamento”, é fato que cria uma espécie de contencioso a ser objeto no caso a caso, que podem limitar os efeitos declaratórios, que a própria corte reconhece ocorre no reconhecimento dos territórios indígenas.
Como se verifica, ao cabo, a Suprema Corte adota um critério de justiça que não abandona de todo a ideia do marco temporal, mas o utiliza para monetizar as disputas sociais sobre o território das comunidades indígenas, pois como diz Krenak eles veem este território “Não a terra como um sítio, mas como esse lugar que todos compartilhamos, e do qual nós, os Krenak, nos sentimos cada vez mais desraigados — desse lugar que para nós sempre foi sagrado, mas que percebemos que nossos vizinhos têm quase vergonha de admitir que pode ser visto assim”. Então todos somos responsáveis, por chegar aqui com esta resposta, esperamos alguns ainda, assim, nos sintamos envergonhados.
IBRAIM ROCHA é Procurador do Estado do Pará, Doutor em Direito (UFPA) e membro do Conselho Consultivo do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública.
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