-Ricardo Antonio Lucas Camargo-
Uma questão que sempre se põe, em se tratando da relação do particular com o Poder Público, é o desconforto que a tributação provoca, e em especial a tributação dos entes infranacionais, com os conflitos daí decorrentes.
Aparentemente, o fato de a obrigação tributária nascer independentemente de o devedor a assumir é que estaria na raiz dos conflitos, enquanto as obrigações nascidas da vontade livremente manifestada constituiriam um campo de pacificação.
A relação credor/devedor, por mais civilizados que sejam seus termos e qualquer que seja o seu título de origem, sempre é de interesses conflitivos, em que a medida do ganho de um é perda do outro, em que um terá reduzido o respectivo patrimônio e o outro terá um acréscimo.
A relação Fisco-contribuinte não foge a esta generalidade, e mesmo aqueles que se orgulham de pagar impostos semelham muito mais aqueles veteranos de guerra que se vangloriam das cicatrizes, mas, se lhes fosse dado escolher, não as obteriam.
Mesmo antipática ao cidadão comum a própria ideia de tributação, o fato é que ela constitui o principal instrumento voltado a prover os cofres públicos dos meios para desempenhar as tarefas de que não pode pretender o Estado desvencilhar-se, qualquer que seja a forma por que se organize, seja unitária, seja federada.
As formas de gerir a tributação, com escopos fiscais e extrafiscais, serão trabalhadas a partir da comparação entre um Estado organizado de forma unitária e outro organizado na forma federativa, que, no entanto, têm afinidades entre si, sobretudo por sua ligação por mais de três séculos: a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil.
Soaria estranho que no Estado Unitário se pudesse falar em medidas de caráter tributário dos poderes locais, mas a descentralização da prestação dos serviços públicos seria inviável sem a possibilidade do aporte de receitas em caráter mais célere para a autoridade mais próxima prestá-los, diretamente ou por delegação ao particular – cuja atuação não seria gratuita; teria de ser paga a partir de recursos provenientes da massa de contribuintes -, o que é mais uma razão por que nem mesmo no seu âmbito seria realizável a utopia fisiocrata do imposto único.
Vale observar que, em um contexto urbanizado fabril, a higiene pública, o saneamento básico, várias necessidades públicas exigiriam uma presença maior do Estado, e, pela mesma razão – já que nenhuma atuação estatal pode ser considerada gratuita, por mais que venha a delegar atividades à iniciativa privada (uma vez que esta, quando atue em lugar do Estado, não o faz de graça) -, exigiriam um incremento da tributação.
Por outro lado, quanto mais próxima do administrado esteja a autoridade encarregada de prestar os serviços públicos, seja no Estado Unitário, seja no Estado Federal, tanto mais rápida será a satisfação das necessidades correspondentes, e os serviços em questão, como dito antes, não são gratuitos.
Embora incumba à Assembleia da República, em Portugal, legislar para a criação dos tributos locais, nos termos da letra “i” do n. 1 do artigo 165º da Constituição da República Portuguesa - o que viria a traduzir, mais incisivamente, a manutenção da unidade de comando da Nação, a despeito da descentralização administrativa -, não se admite que se venha a pura e simplesmente subtrair as fontes de receita que viabilizam aos Municípios e Freguesias a prestação das tarefas que lhes são atribuídas.
No âmbito dos Estados Federais, cada uma das unidades irá editar, por si, as leis para disciplinar os tributos de sua competência, que será atribuída, em primeiro lugar, pelo Texto Constitucional.
No caso da Constituição brasileira de 1988, além dos balizamentos gerais para a tributação, postos nos artigos 145 a 152, e da discriminação dos impostos cabíveis a cada um dos tipos de entidades federadas – União, Estados Membros, Distrito Federal e Municípios -, está prevista a edição, pelo Poder Central, no artigo 146, das denominadas “normas gerais de direito tributário”, que irão ofertar os critérios para a instituição e gestão dos tributos, e cujo conteúdo mínimo é indicado nas alíneas em que se desdobra o inciso III do aludido artigo 146.
Mesmo que continue o tributo a desempenhar sua tradicional função de provimento aos cofres públicos dos recursos indispensáveis à realização das atividades que incumbem ao Estado, seu emprego “extrafiscal”, isto é, para a obtenção de determinados comportamentos, positivos ou negativos, tem sido cada vez mais frequente.
É comum esse fenômeno – o da extrafiscalidade – materializar o “fomento” enquanto função econômica do Estado: mediante redução ou mesmo eliminação de ônus fiscais, engajam-se em fins públicos os beneficiários, embora nem sempre a tal função se ligue, pois pode tocar a compensar determinadas situações de desconforto, como, por exemplo, a isenção que se concede de tributos sobre o patrimônio de pessoas acometidas por doenças incuráveis e limitantes para uma série de exigências da vida civil.
O poder de conceder benefícios fiscais, inclusive para o fim de materializar “fomento”, normalmente, apresenta-se como contraface do poder de impor ônus desta mesma natureza , embora já se tenha notícia, na vigência da Constituição brasileira de 1967, com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 1, de 1969, da possibilidade de o Poder Central conceder benefícios em relação a tributos locais, como forma de assegurar a submissão financeira de Governos que pudessem, em tese, não ser correligionários do Presidente da República.
Se, em Portugal, autorizadas pela Assembleia da República, podem as entidades menores conceder benefícios fiscais – até mesmo como forma de viabilizar-lhes o acesso pelos beneficiários com maior agilidade -, os tipos e a amplitude de tais benefícios estarão delimitados na lei autorizativa , diante da possibilidade efetiva de os agentes econômicos locais converterem tais benefícios em formas de criar favorecimentos , razão por que leis-quadro, como a Lei de Finanças Locais e o Estatuto dos Benefícios Fiscais, estabelecerão os critérios formais, materiais e temporais para o respectivo emprego .
Vale, para o caso português, o emprego da expressão “lei-quadro” , que seria impróprio em relação à caracterização das “normas gerais” do Direito brasileiro, porque estas são normas que se voltam a ofertar parâmetros para as pessoas políticas legislarem sobre as matérias de sua competência, no âmbito federativo , enquanto diplomas como a Lei Geral Tributária, a Lei de Finanças Locais e o Estatuto dos Benefícios Fiscais, em Portugal, vão traduzir, antes, critérios para a atuação de entidades administrativas, a serem detalhados por atos normativos infralegais.
No Brasil, os critérios para os entes locais disciplinarem, sempre por lei (Constituição, artigo 150, § 6º), os benefícios fiscais, em especial para fins de fomento, estão postos tanto nas atribuições do Senado em estabelecer o piso e o teto para alíquotas de impostos estaduais (Constituição, artigo 155, § 1º, IV, § 2º, V, “a” e “b” e § 6º, I) e em fixar, para algumas operações, as próprias alíquotas (Constituição, artigo 155, § 2º, IV), como nos procedimentos, estabelecidos em normas gerais, para a sua instituição válida, preservando o equilíbrio econômico nacional (Constituição, artigo 155, § 2º, XII, “g”, e Lei Complementar n. 24, de 1975, com as respectivas alterações).
É importante salientar que, para fins de fomento, as taxas, pelo seu caráter sinalagmático, raramente se prestam, embora haja notícia de isenção ou redução delas para fins de incentivo à instalação e desenvolvimento de atividades empresariais, com o que o interesse, para as entidades locais, do tributo como meio de materialização dessa função econômica do Estado, olhos postos no Direito positivo português, se voltará principalmente ao regime do Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI), do Imposto Municipal sobre Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT) e o Imposto Único sobre Circulação (IUC) , além da “derrama” ou adicional sobre o lucro tributável e não isento do imposto sobre rendimentos de pessoa coletiva, e, com relação ao Direito positivo brasileiro, a atenção deverá voltar-se ao Imposto sobre Transmissão de Imóveis Causa Mortis e Doações (ITCD), ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e ao Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), devidos aos Estados-Membros e ao Distrito Federal, bem como ao Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU), ao Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN) e ao Imposto de Transmissão de Bens Imóveis inter vivos (ITBI), devidos aos Municípios e ao Distrito Federal.
O Imposto sobre Bens e Serviços, criado, no Brasil, pela Emenda Constitucional n. 132, de 2023, pretende substituir o ICMS e o ISSQN, e tem o seu uso extrafiscal disciplinado de modo exaustivo pela própria Emenda em questão, tendo em vista justamente o diálogo com experiências de verdadeiros “leilões de benefícios fiscais” levados a cabo pelos Estados e Municípios, buscando atrair empresas.
É importante salientar que as cautelas que se costuma tomar em relação ao fomento em geral, e aos incentivos fiscais, em particular, por traduzirem uma exceção à “regra de ouro” da economia de mercado, segundo a qual ofertantes e procurantes vão atuar com as suas próprias forças, sem o reforço de musculatura estatal, intensificam-se em face dos poderes locais, quer em função de poderem servir de meios aptos, conforme a pujança do ente que os conceda, a aprofundar os desequilíbrios entre as regiões do país, destruindo-o enquanto unidade econômica e a comprometer a integração econômica supranacional em razão de se criarem condições mais vantajosas para um dos agentes.
Daí, a necessidade de serem trabalhados os incentivos fiscais locais a partir não somente dos condicionamentos formais como da própria tipificação estabelecida pelo direito positivo, de tal sorte que esta função econômica pública indissociável da própria ideia de desenvolvimento não se venha a desvirtuar, como só acontecer a todo poder infrene.
Ricardo Antônio Lucas Camargo - Professor nos cursos de Graduação e Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Professor Visitante da Università degli Studi di Firenze – Integrante do Centro de Pesquisa JusGov, junto à Faculdade de Direito da Universidade do Minho, Braga, Portugal – ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP. A coluna de Ricardo A.L. Camargo será publicada mensalmente, sempre no dia 1º.
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