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VICISSITUDES DA SUBSTITUIÇÃO E RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIAS – EXPECTATIVAS DO IBS

-Ricardo Antonio Lucas Camargo-


Uma das questões que mais perplexificam aquele que tem que se deparar com o Fisco é precisamente a atribuição a pessoa que não pratique o “fato gerador” do tributo do dever de recolher o montante correspondente.


Entretanto, esses expedientes, ditados pela praticidade no recolhimento e na necessidade de assegurar a satisfação do crédito, integram a tradição tributária do Direito Ocidental, em especial o Tributário, e não estiveram ausentes da reforma tributária de 2023.



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A possibilidade de estabelecimento de responsabilidade tributária, ou mesmo de substituição tributária, de pessoa relacionada com o fato gerador do imposto em questão, que concorra para a realização, a execução ou o pagamento da operação correspondente está posta no § 3º do artigo 156-A da Constituição Federal, e tal responsabilidade pode ser, inclusive, na modalidade de “substituição para a frente”, já que não é ressalvada a aplicação ao caso do § 7º do artigo 150 da Constituição Federal. 


Resta saber se será mantida a interpretação que considera não ocorrente o fato gerador presumido quando a revenda da mercadoria seja por preço menor, que rende ensejo, também, à cobrança, ao substituído, da diferença do imposto quando se realize a revenda por preço maior. Esta interpretação, aparentemente mais favorável ao contribuinte, mostrou-se, na prática, bem mais onerosa, precisamente em razão de trazer o substituído ao polo passivo, quando este tivesse realizado a venda por preço maior, excluindo, destarte, o principal benefício, para ele, decorrente da substituição [MACHADO, 1984, p. 44; DENARI, 1998, p. 222]. 


O tema da substituição tem previsão aqui no § 3º do 156 A - não só a responsabilidade que não exclui o contribuinte principal como também a substituição tributária, que, como ensina Alfredo Augusto Becker, não é responsabilidade tributária, é sujeição originária, porque na substituição tributária o substituto é contribuinte no lugar do substituído, por ficção jurídica [BECKER, 1963, p. 504-5; DERZI, 2007, p. 328-9]. Quem pensa que não cabe ficção jurídica no direito tributário tem o ônus de explicar como se qualifica, sob o ponto de vista das categorias da teoria geral do direito, a substituição tributária: é uma ficção que se admite, até constitucionalmente, tendo em vista a necessidade de tornar menos onerosa – inclusive para o conjunto dos contribuintes – a atividade de obtenção dos recursos necessários para o desempenho das atribuições do Poder Público [FERREIRA NETO, 2010, p. 57]. 


Como anteriormente dito, não se deve confundir a situação do substituto tributário, que é, por uma ficção jurídica, decorrente, contudo, de uma relação com o fato passível de sofrer a imposição tributária, com a do responsável, porque este comparece sem que o sujeito definido como “contribuinte” deixe de figurar na relação jurídica originária: aqui, o que se tem é uma posição de garante em face do devedor principal [BECKER, 1963, p. 511; PAULSEN, 2014, p. 2014, p. 233; FARIA, 2013, p. 682; CASTELLO, 2021, p. 254; SCHOUERI, 2013, p. 528; DENARI, 1998, p. 214-5].


Seria interessante saber se naquela hipótese do § 7º do artigo 150 vai ser aplicável ao IBS a mesma lógica que acabou prevalecendo hoje no Supremo Tribunal Federal. Primeiro, ele entendeu que mesmo que vendida a mercadoria por um preço inferior a aquele que fora estimado para efeito de substituição tributária, teria ocorrido fato gerador e, portanto, não haveria por que o substituto receber de volta o dinheiro [RIBEIRO, 2003, p. 87]. Depois entendeu que se fosse vendido por um preço menor não teria ocorrido fato gerador e, portanto, o substituto mereceria ter restituído o dinheiro. Agora, surgiu um outro problema: e se fosse vendido por um preço maior? Aí então o fisco teria que autuar o substituído [PAULSEN, 2014, p. 234], criando, mesmo, uma situação que subverte a própria razão de ser da substituição tributária, adotada entre nós a partir de reclamos dos contribuintes que se sentiam lesados por concorrentes que, por sonegarem ou se evadirem do ônus tributário, logravam desviar clientelas em função de se livrarem do gravame no preço [CARDOSO, 2004, p. 40; ABRAHAM, 2009, p. 64; MELLO, 2008, p. 69; SCHOUERI, 2013, p. 536]. 


Mesmo que se trate de um expediente voltado a assegurar o ingresso de recursos aos cofres públicos – expediente eminentemente fiscal -, há uma dimensão de política econômica na substituição tributária, em si mesma, em se tratando de “impostos indiretos”, no sentido de se simplificar a máquina arrecadatória de tal sorte que se diminuam expedientes de manipulação do peso do tributo no preço final das mercadorias e serviços, e é nesta dimensão que ela irá interessar ao Direito Econômico [SOUZA, 2002, p. 63; GRAU, 2017, p. 147-8; CLARK & CORREA, 2011, p.43].


Também terá essa dimensão político-econômica a própria definição do substituto em relação a determinadas operações, e é de se observar que a própria amplitude da liberdade de conformação do legislador não irá ao ponto de se erigir qualquer pessoa: mesmo que esta não seja a praticante da operação que constitua o fato gerador, ela tem de ter relação com tal operação.


Enquanto, normalmente, uma vez “aceita” a substituição tributária, o arcabouço conceitual do Direito Tributário se mostra suficiente para a resolução dos conflitos de interesse que em seu redor gravitam, quando se questione a juridicidade da qualificação de tal ou qual sujeito como substituto, o Direito Econômico pode vir a trazer, em auxílio ao Direito Tributário, critérios adequados para a solução desses conflitos específicos.


Não deixa de ser sintomático que um defensor da tese do mercado enquanto expressão da ordem natural sustente que a condição de validade jurídica da substituição tributária seja a correção de assimetrias na concorrência [FERRAZ, 2010, p. 149], dando-lhe, curiosamente, uma conotação extrafiscal, quando, em realidade, o escopo da substituição é eminentemente “fiscal”, isto é, é tornar mais prática e menos custosa a obtenção de recursos para o Erário [BALEEIRO, 1976, p. 234; BECKER, 1963, p. 504; PAULSEN, 2014, p. 177; TORRES, 2013, p. 265; ZILVETTI, 2004, p. 319;  COSTA, 2014, p. 226; DERZI, 2007, p. 141], embora, evidentemente, ela tenha, como qualquer outra forma de disciplinar as exações, efeitos extrafiscais. Não se deve confundir tributo com escopos extrafiscais com os efeitos extrafiscais do tributo. É, aliás, precisamente em função desses efeitos extrafiscais que por vezes se verificam as situações de que decorrem significativas diminuições no ônus tributário, ora lícitas – elisão –, ora ilícitas – evasão -, e raramente se mostram muito claras, na prática, as diferenças entre uma decisão legítima de, entre alternativas válidas, optar pela menos onerosa, e uma decisão de burlar o crédito do Fisco, que pode, em alguns casos, materializar a hipótese de abuso do poder econômico que se caracterizaria pelo “aumento arbitrário de lucros” a que se refere o § 4º do artigo 173 da Constituição brasileira. Independentemente de o tributo ser empregado com escopo estritamente fiscal ou também com escopo extrafiscal, a elisão e a evasão são suscetíveis de ocorrer [DÓRIA, 1978, p. 452-3; RIBEIRO, 2003, p. 141; MALERBI, 1984, p. 27; ZILVETTI, 2004, p. 341-3; MARINS, 2002, p. 30; TORRES, 2013, p. 248-9].


De qualquer forma, seria interessante saber se os Tribunais vão adotar esse entendimento que acabou praticamente desnaturando a substituição, convertendo o substituído em uma espécie de responsável tributário, ou se será reaberta a discussão.

A Lei Complementar 214, de 2025, estabeleceu as seguintes hipóteses de substituição tributária, a serem observadas nas legislações locais: na realização de operações por plataformas digitais, nas quais estas se tornam substitutas quando o fornecedor seja residente ou domiciliado no exterior (artigo 22, I); importação de bens materiais, “I - o transportador, em relação aos bens procedentes do exterior, ou sob controle aduaneiro, que transportar, quando constatado o extravio até a conclusão da descarga dos bens no local ou recinto alfandegado; II - o depositário, em relação aos bens procedentes do exterior que se encontrarem sob controle aduaneiro e sob sua custódia, quando constatado o extravio após a conclusão da descarga no local ou recinto alfandegado; III - o beneficiário de regime aduaneiro especial que não tiver promovido a entrada dos bens estrangeiros no território nacional; e IV - o beneficiário que der causa ao descumprimento de aplicação de regime aduaneiro suspensivo destinado à industrialização para exportação, no caso de admissão de mercadoria no regime por outro beneficiário, mediante sua anuência, com vistas à execução de etapa da cadeia industrial do produto a ser exportado  (artigo 73); em relação aos regimes diferenciados, são estabelecidos condicionantes (artigo 126, §§ 2º e 3º). As hipóteses de responsabilidade tributária em relação ao IBS estão postas nos artigos 21, §§ 2º e 4º, 22, I e II, e § 10, I, 27, parágrafo único, III, 37, 64, § 5º, VIII e IX, 74, 80, § 4º, 95, 96, 97, 99, § 3º, II, 101, II, 106, § 3º, II, 107, § 3º, II, 109, § 3º, II, 177, 249, § 1º. As limitações de espaço e o tempo exigido não permitem esmiuçar cada um desses temas como seria desejável.


Referências bibliográficas 

ABRAHAM, Marcus. As emendas constitucionais tributárias. São Paulo: Quartier Latin, 2009.

BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário brasileiro.  8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976.

BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1963.

CASTELLO, Melissa Guimarães. Um novo IVA? Os tributos sobre consumo e a economia digital. São Paulo: Noeses, 2021. 

CARDOSO, Laís Vieira. Substituição tributária e ICMS. São Paulo: Quartier Latin, 2004.

CLARK, Giovani & CORREA, Leonardo Alves. Teoria das normas e o Direito Econômico: um diálogo com a filosofia do Direito. In: SOUZA, Washington Peluso Albino de & CLARK, Giovani [org.]. Direito Econômico e a ação do Estado na pós-modernidade. São Paulo: LTr, 2011, pp. 27-46.

COSTA, Regina Helena. Curso de Direito Tributário. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

DENARI, Zelmo. Curso de Direito Tributário. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998.

DERZI, Misabel de Abreu Machado. Direito Tributário, Direito Penal e tipo. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

DÓRIA, Antonio Roberto Sampaio. Evasão e elisão fiscal. In: ATALIBA, Geraldo [org.]. Elementos de Direito Tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978, pp. 447-476.

FARIA, Luís Alberto Gurgel de. Arts. 113 a 138. In: FREITAS, Vladimir Passos de [org.]. Código Tributário Nacional comentado. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, pp. 627-728.

FERRAZ, Roberto. Pressupostos fáticos de imposição tributária. In: FERREIRA NETO, Arthur Maria & NICHELE, Rafael [org.]. Curso avançado de substituição tributária. São Paulo: IOB, 2010, pp. 141-152.

FERREIRA NETO, Arthur Maria. Fundamentos filosóficos da responsabilidade tributária. In: FERREIRA NETO, Arthur Maria & NICHELE, Rafael [org.]. Curso avançado de substituição tributária. São Paulo: IOB, 2010, pp. 17-59.

GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica). 18ª ed. São Paulo: Malheiros, 2017.

MACHADO, Celso Cordeiro. Garantias, preferências e privilégios do crédito tributário. Administração tributária. Dívida ativa tributária. Certidões negativas. Prazos. Crimes de sonegação fiscal. In: NOVELLI, Flávio Bauer [org.]. Tratado de Direito Tributário brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1984, v. 6.

MALERBI, Diva Prestes Marcondes. Elisão tributária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984.

MARINS, James. Elisão tributária e sua regulação. São Paulo: Dialética, 2002.

MELLO, Angelo Braga Netto Rodrigues de. Substituição tributária progressiva e ICMS. Porto Alegre: Núria Fabris, 2008.

MELO, José Eduardo Soares de. ICMS – teoria e prática. Belo Horizonte: Forum, 2023.

PAULSEN, Leandro. Responsabilidade e substituição tributárias. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.

RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, interpretação e elisão tributária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.

SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

SOUZA, Washington Peluso Albino de. Teoria da Constituição Econômica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.

TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 19ª e. Rio de Janeiro: Renovar, 2013.

ZILVETTI, Fernando Aurelio. Princípios de Direito Tributário e a capacidade contributiva. São Paulo: Quartier Latin, 2004.


 

RICARDO ANTONIO LUCAS CAMARGO é Professor nos cursos de Graduação e Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Professor Visitante da Università degli Studi di Firenze – Integrante do Centro de Pesquisa JusGov, junto à Faculdade de Direito da Universidade do Minho, Braga, Portugal – ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP.




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