-LEANDRO FERREIRA BERNARDO-
Nos dias que precedem a publicação do presente texto, a rede social “X”, anteriormente nomeada Twitter, teve seu funcionamento no Brasil suspenso por decisão proferida pelo Ministro do STF Alexandre de Moraes, na PETIÇÃO 12.404, após a constatação de reiterado e voluntário descumprimento de decisões judiciais brasileiras, bem como diante da informação de que a empresa responsável pela plataforma extinguiria a sua subsidiária no país, a fim de se furtar à submissão ao ordenamento jurídico brasileiro. Os descumprimentos dizem respeito, sobretudo, à negativa pela empresa em acatar ordens de suspensão de perfis de pessoas envolvidas em potenciais práticas de crimes, de bloqueio a monetizações dos referidos indivíduos e grupos realizadas pela plataforma, bem como em razão de outros atos de obstrução à justiça.
Por sua repercussão, a decisão contribui para a reflexão sobre dois aspectos de grande relevância, no atual cenário, em que as chamadas big techs, a partir de seu domínio sobre as plataformas e redes sociais, em sua grande maioria sediadas nos Estados Unidos, passam a ter grande influência sobre as vidas de pessoas e sociedades localizadas em todo o planeta, com impactos diretos sobre os processos democráticos, a opinião pública, e em especial sobre a vida de grupos mais vulneráveis da sociedade, como crianças, adolescentes[1], pessoas sem uma formação adequada para uso das ferramentas na internet, que são “bombardeados” com excesso de informações e propagandas, e estimulados a se manterem longos períodos em acesso.
A profusão do uso da internet permite às plataformas de serviços digitais alcançar destinatários localizados em todo o planeta, sem que, necessariamente, necessite de uma estrutura física no local de destino. Essa realidade dificulta a submissão daquelas empresas à legislação em vigor em cada localidade e a responsabilização quando identificadas atitudes contrárias ao ordenamento local.
A respeito do tema e se aproveitando do debate suscitado pela recente decisão do STF, entende-se pertinente tratar sobre dois pontos centrais em relação a identificação do alcance do ordenamento jurídico brasileiro sobre as chamadas big techs. O primeiro ponto diz respeito a identificar qual legislação e jurisdição devem ser observadas quando o serviço é prestado a usuário localizado no Brasil, ou quando os efeitos de conduta delituosa praticados por meio de seu uso sejam sentidos no nosso país, ainda que a sede da matriz da empresa esteja em país diverso. O segundo ponto diz respeito à discussão acerca da necessidade de submissão das empresas estrangeiras à legislação pátria, quando prestem serviços digitais no Brasil. Tratam os dois pontos de temas conexos, mas não integralmente coincidentes.
Para responder ao primeiro questionamento, referente à compreensão de qual ordenamento se aplica às empresas prestadoras de serviços digitais em favor de usuários localizados no país, não se pode deixar de reconhecer como fator determinante aquele referente à localização do usuário do serviço digital. Dessa forma, em casos em que os praticantes de crimes ou suas vítimas estejam localizados no Brasil, a conclusão lógica é que a legislação e o sistema de justiça do nosso país possam alcançar a prestadora de serviço digital, como uma rede social.
A legislação existente sobre as relações no mundo digital permite concluir pela mesma lógica. Observe-se que o marco civil da internet, Lei 12965/14, prevê aos provedores de conexão e de aplicações de internet a obrigação de respeito à legislação brasileira (art. 11).
Da mesma forma, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais prevê também o alcance da legislação brasileira, a depender de fatores como local de realização da operação de tratamento de dados pessoais (art. 3º, I), o domicílio dos indivíduos que se submeteram a tratamento de dados (art. 3º, II), ou o local da coleta das informações (art. 3º, III).
No direito comparado, observe-se que a União Europeia aprovou em 2022 o Regulamento dos Serviços Digitais (RSD), considerado um dos documentos mais relevantes na atualidade na busca da criação de balizas e limitações às big techs. O RSD se utiliza de uma lógica de territorialidade que privilegia, sobretudo, da localização do destinatário do serviço, ainda que a sede da empresa esteja em país diverso. Dessa forma, ainda que a empresa prestadora de serviço tenha sua sede em outra localidade, como no Vale do Silício, nos Estados Unidos, tal situação não afasta a aplicação da RSD, se o destinatário do serviço esteja dentro da zona da União Europeia (art. 2º).
Após a entrada em vigor do RSD, a Comissão Europeia identificou 20 plataformas ou redes enquadráveis como de grandes dimensões, com um número mensal de destinatários ativos na União Europeia em quantidade igual ou superior a 45 milhões de pessoas. Das 20 empresas, 16 plataformas pertencem a empresas sediadas nos Estados Unidos, enquanto apenas 2 são europeias, e outras 2 chinesas[2].
O projeto de Lei 2630/2020, apelidado de Projeto de Lei das Fake News, busca aplicar logica semelhante à do RSD para fixação da territorialidade, ao privilegiar a localização do destinatário como critério reitor (art. 1º, § 2º)[3]. Tal medida se mostra, na atualidade, mais adequada à proteção do indivíduo e da coletividade afetados, eis que impede às empresas estrangeiras se furtarem ao cumprimento da legislação local, sob o fundamento de que se encontram sediadas em local diverso.
Vencida a primeira questão, que aponta para a existência de fundamentos lógico-jurídicos para a aplicação da legislação e da jurisdição brasileiras para as empresas prestadoras de serviços digitais, como as redes sociais virtuais, passa-se à questão seguinte, referente a saber quais são as obrigações impostas às empresas para funcionar no país, em especial, para os fins do texto, as grandes empresas estrangeiras prestadoras de serviços digitais na internet que possuem milhões de usuários no Brasil.
Inicialmente, necessário apontar que a Constituição da República, até 1995, definia em seu art. 171 como empresa brasileira aquela constituída no país sob suas leis e que tivesse sua sede e administração no território brasileiro (inc. I) e definia também empresa brasileira de capital nacional aquela controlada por pessoas físicas domiciliadas no país (inc. II). Previa, ainda, a possibilidade de concessão de incentivos e proteção à empresa de capital nacional quando a atividade desenvolvida fosse considerada estratégica (§ 1º).
O referido art. 171 e seus parágrafos, sob o influxo de um ideário neoliberal, foram integralmente revogados pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995, sob o pretexto de, ao excluir a distinção entre empresa brasileira e empresa brasileira de capital nacional, favorecer o ingresso de investimento estrangeiro no país[4].
Em que pese a abertura ao capital estrangeiro, como bem simboliza a alteração constitucional acima apontada, não se pode perder de vista, contudo, que a legislação pátria ainda impõe exigências à empresa estrangeira que busca atuar no país. Atualmente, o Código Civil define como sociedade nacional aquela organizada de conformidade com a lei brasileira e que tenha no país a sede de sua administração (art. 1.026).
Por outro lado, o mesmo Código Civil impõe à sociedade estrangeira, ou seja, aquela que não se enquadre como nacional, uma série de condições para atuar no país, como autorização do poder executivo (art. 1.134) e obrigatoriedade de apresentar representante no Brasil (art. 1.137). As chamadas big techs estrangeiras devem se submeter, atualmente, ao regime previsto às empresas estrangeiras acima referido.
Assim, é evidente o poder das autoridades brasileiras imporem às plataformas digitais obrigações, com base na legislação em vigor no país, bem como punições em caso de descumprimento. Por outro lado, diante das incertezas ainda existentes geradas, sobretudo em função do evidente descompasso da legislação brasileira e a necessidade de melhor regulação dos serviços prestados pelas plataformas e redes sociais, torna-se fundamental a aprovação de uma legislação como o RSD aprovado pela União Europeia, como medida imprescindível à garantia de sua soberania digital do país em face ao poderio econômico das grandes big techs.
Sob a atual situação de ausência de adequada regulação dos serviços digitais, em especial àqueles fornecidos por provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada e de pesquisa online, o STF tem sido chamado a balizar a discussão. Nesse sentido, há, atualmente, dois temas com repercussão geral já reconhecida, os Temas 533[5] e 987[6], onde estão em causa, essencialmente, os limites da aplicação do artigo 19 do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), que define os parâmetros da responsabilidade civil dos provedores de aplicações por conteúdos gerados por seus usuários.
Ante o estado de anomia do Congresso Nacional sobre a temática, possivelmente o STF trará novos parâmetros acerca dos limites e obrigações das empresas na prestação de serviços digitais, possivelmente absorvendo vários dos conceitos e regras do RSD, aprovado na Europa, na fixação de teses nos temas de repercussão geral reconhecida. Embora não seja a melhor solução - eis que a fixação de tese em sede de repercussão geral não supera as vantagens de uma lei produzida pelo poder legislativo, com todos os seus ritos e diálogos com a sociedade –, traz um alento na tentativa de refrear os abusos e ausência de transparência das big techs em países por todo o mundo.
Leandro Ferreira Bernardo, Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da USP, Procurador Federal, membro do IBAP.
[1] HAIDT, Jonathan. A geração ansiosa: como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de transtornos mentais. Tradução Lígia Azevedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2024.
[2] EUROPEAN COMISSION. Designation decisions for the first set of Very Large Online Platforms (VLOPs) and Very Large Online Search Engines (VLOSEs). Disponivel em: Designation decisions for the first set of Very Large Online Platforms (VLOPs) and Very Large Online Search Engines (VLOSEs) | Shaping Europe’s digital future (europa.eu). Acesso em 26 de ago. de 2024.
[3] Art. 1º. [...]
§ 2º O disposto no caput aplica-se, inclusive, aos provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada sediados no exterior, desde que ofertem serviço ao público brasileiro ou que pelo menos uma integrante do mesmo grupo econômico possua estabelecimento no Brasil.
[4] Camara dos Deputados. Exposição de Motivos n° 37. Disponível em: https://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD15MAR1995.pdf#page=33. Acesso em 31 de ago. de 2024.
[5] Tema 533: Dever de empresa hospedeira de sítio na internet fiscalizar o conteúdo publicado e de retirá-lo do ar quando considerado ofensivo, sem intervenção do Judiciário. Leading case: RE 1057258.
[6] Tema 987: Discussão sobre a constitucionalidade do art. 19 da Lei n. 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) que determina a necessidade de prévia e específica ordem judicial de exclusão de conteúdo para a responsabilização civil de provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros. Leading Case: RE 1037396.