- Carlos Frederico Marés de Souza Filho -
O casarão senhorial, como deve ser, estava em região da classe alta. Muitos metros quadrados de um jardim gramado e protegidos por gradil fechado, atrás uma edícula com escritórios, banheiros, biblioteca e uma garagem para vários carros. Uma piscina aguardava o verão. Um casarão. Ali funcionava a Embaixada da Venezuela em Santiago do Chile em 1973. Nela viviam mais de trezentos e cinquenta refugiados do golpe de Estado.
O portão se abria apenas para entradas combinadas e negociadas previamente, entrava-se em grupos. As vezes a polícia chegava muito perto da soleira e, então, recuava apontando armas sem atirar, ainda não estava organizado o sistema repressivo e ainda havia dúvidas, quem sabe, de como agir.
No casarão soberbo, aos poucos, as pesadas cortinas de veludo acompanharam os tapetes na função de colchões, cobertores e camas. As mais de trezentas e cinquenta pessoas viviam amontoadas, dormindo como pudessem, acossadas por medos diferentes e esperando ninguém sabia exatamente o quê: a repressão violenta? a derrota cada vez mais improvável do golpe? a saída para o exílio? ou um exército encantado que atravessasse os Andes em cavalos alados e reestabelecesse a justiça? Comida o governo da Venezuela fornecia, pouca, é verdade, e com humilhante carência de pratos e talheres. Uma tampa de lata de nescafé era um prato, guardado com carinho e emprestado com solidariedade e era, no começo, a ração que cabia a cada um nas duas refeições diárias. A casa não podia ser invadida, afinal, era território venezuelano. Não podia?
Palácio presidencial em chamas, Santiago, Chile - 1973. Imagem: Associated Press.
Alguns dias depois do golpe os primeiros refugiados começaram a chegar, encontraram o portão aberto e se negaram a ir embora. Foi assim que começou. Havia bom espaço, mas quando se aproximou a primavera já eram tantos, espalhados, que nem a edícula, nem a biblioteca foram poupadas de corpos suados, tensos e maldormidos. Cada homem e mulher naquele casarão elegante carregava consigo, sem muito disfarçar, o medo como companheiro.
Quase todas as embaixadas de países razoavelmente democráticos abrigavam refugiados, exilados, foragidos, perseguidos, muitos chilenos e uma multiplicidade de não chilenos. A embaixada do Brasil estava vazia, isto é, estava cheia de professores de tortura, torturadores, gente enviada para ajudar na repressão e na identificação de brasileiros. O embaixador da Suécia saia pelas ruas com seu carro embandeirado recolhendo refugiados perdidos. A notícia de companheiros mortos era diária e aumentava a depressão e o medo por grupos.
Tiros do lado de fora o tempo todo e helicópteros passando muito baixo com visíveis metralhadoras apontadas. Nunca atiraram, mas nunca se duvidou que atirariam. E a tensão aumentava. A vida, apesar de tudo, foi se organizando. Os leitores faziam fila para os livros da biblioteca que guardava poucas obras de literatura. Rômulo Gallegos era o campeão. Doña Bárbara foi ficando gasto e, no final, já não tinha capa.
Apesar disso, havia pouco conflito no confinamento, o ânimo era baixo e as perspectivas ruins. Não havia armas, mas a disciplina se mantinha e as maiores autoridades eram os membros das guerrilhas venezuelanas e colombianas que estavam proibidos de entrar na Venezuela. Era curioso, todos os confinados sonhavam um dia ir para a Venezuela, mas não os venezuelanos que carinhosamente eram chamados de guerrilheiros, que teriam que ir para outro lugar ou ficarem para sempre na embaixada. Eles riam da situação e diziam preferir estar confinados na embaixada do que presos em seus países. Talvez fossem os únicos preparados para o confinamento.
Outubro começou com dias ensolarados, amenos, muitos tomavam sol nos jardins e já era possível dormir fora do casarão e da edícula, mas não cabiam todos, ao mesmo tempo, no sol, tinha que haver escalas no jardim fronteiriço, mais agradável, mas mais próximo aos tiros permanentes das ruas. Cada dia que passava aumentava o temor de uma invasão ou de um fechamento da embaixada. Os tiros continuavam e o portão não se abria mais senão para passar a comida e, algumas vezes, o embaixador com notícias vagas. Já não era mais um embaixador, mas um militar nomeado especialmente para o caso. Os guerrilheiros o conheciam de fama, as referências não eram boas. As vezes, quando o portão se abria, em disparada entravam jovens fugidos, sempre seguidos de disparos tardios e inúteis. Todos eram recolhidos, interrogados, identificados e integrados à comunidade com seus medos e pesares. Todos tinham algum morto para contar.
Uma tarde ensolarada, seria sábado? quê importa o dia da semana durante a guerra e o confinamento. Depois de um grande e estranho barulho e correria na outrora tranquila e sombreada Avenida Pedro de Valdívia, um corpo se projetou por cima do gradil e caiu encolhido, de bruços, na grama já bastante pisada. Susto geral acompanhado de gritos abafados. Ouviram-se tiros, imprecações e alguém forçando o portão. Teria chegado o temido momento da invasão da embaixada? Todos se deram conta de que não tinham se preparado para isso, não sabiam o que fazer, nem mesmo os guerrilheiros.
Quanto tempo se passou? alguns segundos? horas? ou o tempo simplesmente não passou, parou para que o medo, a angústia e a tensão libertassem o raciocínio? De repente o silêncio. Não só o casarão silencioso, a rua, a cidade. Nenhum movimento. Foi então que o corpo se moveu. Primeiro a cabeça, grande cabeça redonda, quase calva, depois os olhos, grande olhos redondos, esbugalhados, de menino assustado. Depois o homem, pequeno, redondo. Estava vestido como se fosse a um juri, terno, gravata, sobretudo. Não era elegante, indefinida meia idade e tímido. A rua deveria estar agitada, mas ninguém ouvia senão os movimentos tensos e lentos do homem. Quando levantou os braços, em sinal de entrega, todos viram as grandes armas que portava por baixo do sobretudo. Os guerrilheiros o cercaram, desarmaram e sumiram com as armas tão rapidamente que depois havia gente que se perguntava se realmente havia visto granadas, metralhadores e outros tantos aparatos que um homem só não conseguiria manejar. Ivan era seu nome. Ivan Z, nada mais. Ivan Zeta. Os portões não cederam, não houve invasão, mas o medo aumentou e as lágrimas passaram a ser mais frequentes.
Ninguém soube jamais quem era aquela estranha e pequena figura que não fez um único amigo na embaixada, que não tinha um único conhecido entre as múltiplas organizações políticas ali representadas, mas que, embora nunca tenha tirado o sobretudo, sorria para todos e tinha habilidades de mágico e prestidigitador, mas jamais a utilizava senão para fins úteis. Um dia subiu pela parede do casarão, muito alto e de lá desceu com a ponta de um fio na mão. Em pouco tempo tinha instalado um velho telefone na rede da embaixada. Organizou-se uma fila e as chamadas eram por países e por organização política representada. Foi um dia de muitas notícias, alegres e tristes, de esquecer os tiros e alimentar esperanças e rir contidos para não interferir na tristeza alheia. Afinal a solidariedade era a marca do território. No meio da noite o telefone emudeceu.
Com uma caixa de fósforo, pequenos fios e coisas que encontrou nos porões e quem sabe onde, fez um rádio que solidariamente deixou em escuta permanente. Então chegavam notícias da guerra do Vietnã e das eleições na Venezuela, do Chile nada, como se o que restasse do país era só a impossível vida dentro dos muros da embaixada e os barulhos de seu entorno.
Estranha comunidade, havia ali todas as tendências da esquerda, debates infinitos, acusações de traição à China, URSS, Albânia e até a Cuba, torcidos narizes, mas também elogios, a Lenin, Trostky, Stalin, Mao, Hoxa, Fidel e Ho, não, não havia críticas a Ho. Os debates eram organizados, nem todos frequentavam, mas servia para melhorar o ânimo e afiar o espírito. Ivan Zeta nunca participou. Nunca ninguém soube o que pensava da revolução, ou mesmo se pensava. Nunca ninguém soube dele mais do que diziam seus olhos grandes, atentos, tímidos e gentis. As vezes desaparecia e voltava com alguma novidade. Ninguém sabia exatamente como entrava e saia, mas dele nada se duvidava, afinal, quem escala a parede de um casarão, pode tudo. Cada um tinha um lugar para dormir, menos Ivan. Havia a crença de que não dormia jamais, pelo menos ninguém testemunhou. Talvez se escondesse em porões inacessíveis a mortais. Talvez fosse apenas fruto da imaginação, personagem do realismo fantástico que se despegava das páginas gastas de algum livro da biblioteca. Mas o telefone e o rádio eram reais.
Um dia não voltou. Nunca ninguém soube quem era o pequenino, redondo Ivan Zeta. Em dezembro o Alto Comissionado das Nações Unidas para Refugiados - ACNUR, começou a evacuar os refúgios e as embaixadas. As embaixadas eram refúgios. Levou meses até o casarão ficar vazio e o militar de maus antecedentes retirar a bandeira e o escudo da Venezuela e devolver o posto a um embaixador que, de outro lugar, negociaria os interesses da Venezuela com a mais feroz ditadura estabelecida na América Latina no século XX.
Carlos Frederico Marés de Souza Filho, professor de Direito da PUC-PR, é escritor e diretor do IBAP.
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