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Alcibíadis Bolsominium Humanus

- Paulo Velten -


Este texto é fruto das minhas angústias durante o desolamento social provocado pela Covid-19. Nele, enfrento a triste realidade atual brasileira a partir da revisão da obra "A hermenêutica do sujeito" de Michel Foucault.


Introdutoriamente é preciso marcar a partir de onde escrevo, expresso-me a partir de meus traumas e medos, adquiridos em função de grandes temporadas de sofrimento vividas em hospitais em parte da minha vida, em função de continuas enfermidades de meus pais. Este tempo de pandemia me trouxe de volta o sentimento de revolta que sofria em função da impotência produzida pelas batalhas perdidas para as doenças enfrentadas, entretanto, com um agravante, jogou por terra quaisquer das minhas crenças, minha resistência, posto que, minha forma de vida, meu trabalho, minha liberdade, minhas convicções, parecem estar em suspensão.


Ocorre que, esse sentimento parece compartilhado com cada pessoa com quem converso, é vocalizada também pelos atuais líderes políticos, que igualmente não escondem suas respectivas perplexidades. Em seus respectivos desesperos, encheram os gabinetes de matemáticos e estatísticos que são capazes apenas de contabilizar a tragédia, em sua impotência o máximo que conseguem expressar, quando conseguem, é: “fiquem em casa!”.


Os governantes se tornaram apenas caricaturas, bonecos de ventríloquos que sabem falar palavrões para divertir o público. Ninguém pode esperar deles a resolução dos graves problemas. Há um vácuo humanitário! Mas como chegamos a esse estado de coisas?


Um fato me chamou atenção nos últimos dias e vou usá-lo para ilustrar o que acabo de me referir. Um amigo anunciou, como tantos, a morte de sua avó e, no final de seu post tratava da impossibilidade de se fazer o velório, em função das restrições de isolamento.


Ele, como eu, é daqueles que efetivamente concorda e cumpre as medidas de isolamento, entretanto, apontava para o disparate que é, estar mergulhado numa pandemia com milhares de vítimas diárias, a disputa em torno da reabertura do comércio e a proibição de velórios nos sepultamentos, e que, a propósito ressalte-se, conforme referiu amigo, é o mesmo preço, com ou sem cerimônia.


Pode parecer banal proibir-se cerimônias fúnebres, mas diz muito sobre o tempo atual. A contemporaneidade está produzindo um efeito tão deletério que abri-se mão até do luto. Este cuidado como forma de proteger a vida se tornou tão emergente, que uma das experiências mais significativas da vida, a dor da perda, foi anestesiada.


Dir-se-á, para justificar que é uma norma de justificada excepcionalidade, por pouco tempo e como uma forma de cuidado de si.


Mas, o que é esse cuidado nesta norma proibitiva da cerimônia de enterro?


- O desprezo ao funeral, o desleixo com o morto, historicamente sempre foi, desde os tempos imemoriais, a maior violação que se pode cometer, o maior ultraje humanitário. Não são poucas as leis e histórias que tratam disso. Quem não se recorda da tragédia grega de Antígona.


A propósito dos gregos, Sócrates dizia ser aquele que teria a função, ofício e encargo de incitar os outros a se ocuparem consigo mesmo, tanto que interpelava os jovens continuamente na rua e lhes dizia que se cuidassem consigo mesmos, paradoxalmente, ele foi condenado pela inconveniência de advertir às pessoas a cuidarem de si.


Mas a escola socrática não foi a única signatária do cuidado de si, os epicuristas também se utilizavam da therapeúein como forma de ocupar-se com a alma, com o propósito de alcançar a saúde a serenidade e a felicidade. Da mesma forma os cínicos, escola filosófica muito influente durante o Império Romano bem como no Cristianismo, cultuavam a ética de tal forma, que chegaram ao extremo de negar a realidade, as convenções sociais, as preocupações materiais e a riqueza, em detrimento do trato da alma.


Isto se reflete por exemplo, numa prática que vai se tornar um dos maiores dogmas da fé católica, o celibato, pois seria o primeiro e decisivo passo para uma vida ascética e liberta dos prazeres mundanos e dedicada exclusivamente aos cuidados da alma.


A expressão grega para o cuidado de si (Epimèleia heautoû), constituía-se numa afirmação da condição humana, uma advertência de que por causa dessa condição não se deve contar muito com sua própria força, quando posto diante das forças divinas.


O livro demonstra o sentido da expressão no diálogo de Sócrates com Alcibíades, um jovem aristocrata que queria governar a cidade. Não vou contar a história aqui, para não furtar ao leitor a oportunidade de ler a belíssima obra. O importante a destacar é que Sócrates faz o jovem enxergar seu estado de vergonhosa ignorância.


Pois bem, surge aqui a conexão do cuidado de si não mais como um ato pessoal, mas como um ato político. Sócrates dizia que, não é possível governar (cuidar dos outros) sem cuidar de si mesmo, sob pena de o ato de governar se tornar apenas a demonstração do déficit pedagógico, de má formação, daquele que governa, no caso de Alcibíades.


Os temores de Sócrates em relação a seu pupilo, nunca foram evidenciados tão claramente como hoje, temos sentido na carne o peso que é para o povo, a ignorância de um governante, a ausência de preparação, a incapacidade cognitiva e a torpeza que a vilania produz. Os atentados, contra a diversidade, o linguajar desequilibrado, o gosto pela violência, do desgoverno atual revelam a atualidade da filosofia socrática, bem como a necessidade de recuperação da ideia filosófica do cuidado de si.


Entretanto, a tolerância da sociedade com a proibição de cerimônias fúnebres ao mesmo tempo em que luta para a abertura do comércio é de um cinismo revelador, ocorre que, ser cínico era ter uma apreço e cuidado tal, para com a alma que, esquecia-se até, das convenções e materialidades da vida, já atualmente, revela apenas a corrupção das almas de nosso tempo.


Escrevi essas linhas como parte de um esforço de resistência na quarentena, para dizer que, no caminho a percorrer no estado pós pandêmico teremos que enfrentar os que nos dizem quais são os nossos limites, teremos que conquistar novamente o direito de cuidarmos de nós mesmos e, enfrentar o escárnio vilipendioso dos que dançam sobre os caixões de nossos mortos, sob o embalo do “e daí”. Ressuscitar os conselhos de Sócrates para cuidarmos de nós, sob pena de, naturalizarmos o estado de ignorância.

 

Paulo Velten é Pós Doutor, Professor na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e associado à APRODAB e ao IBAP.

 

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