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O ESTAGIÁRIO DA AUTARQUIA

Atualizado: 2 de dez. de 2020

- Marie Madeleine Hutyra de Paula Lima -


Lá ia Toninho, todo esbaforido, carregando os três volumes de processo em passos largos, algumas vezes correndo um pouco, tentando chegar ao Fórum na outra praça. Pareceria próximo, em condições normais, mas agora, sentia quase uma eternidade. Passava ainda na frente da corporação dos bombeiros e teria que acelerar na subida. Atrás dele, o homem se aproximava e bem decidido a alcançá-lo. Enquanto tentava chegar até a outra praça, com os processos em segurança, imagens de sua vida surgiam.


Ficaram marcadas as palavras daquele desconhecido que lhe dissera, muitos anos atrás, que deveria defender seus direitos e lutar sempre por eles. Estava agora defendendo os direitos de sua autarquia, do trabalho honesto, contra aqueles que agiam sorrateiramente, roubando o dinheiro que era do povo e ele não poderia aceitar isto. Considerava que seus direitos seriam violados.


Toninho já entrou no saguão do Fórum e se sentiu em segurança para chegar ao cartório e devolver os autos. Não poderia ser mais detido pelo seu perseguidor. Tinha assistido certa vez um desses capangas do mau funcionalismo arrancar folha de processo e agora tinha conseguido evitar isto.


Retornou mais calmo para seu local de trabalho, retomou o seu expediente, mas as lembranças continuavam martelando na cabeça.


Voltou para a sua pré-adolescência. Sempre levou uma vida simples. Era de uma família tradicional, mas sem riqueza material. Toninho tinha mais dois irmãos e duas irmãs para dividir a atenção dos pais.


O pai era funcionário público, do tipo que trabalhava certinho, muito honesto, como manda a moral e a lei. E servia como exemplo para Toninho. O Sr. Antonio adotou esse figurino, que nem sempre era acompanhado pelos colegas de autarquia.


Os tempos tinham mudado desde que começou a trabalhar lá em 1935, mas não para ele. Foi fazendo sua carreira devagar, chegando a diretor de departamento e tentava ajudar os subordinados para saírem de suas enrascadas. Gostava de ser assim. E era muito querido.


Certa noite pegou fogo no seu setor, onde era o arquivo. Ficou desesperado ao saber disto. Queria ir lá ajudar, foi impedido. Ninguém sabe como o incêndio começou e certamente muito registro histórico se perdeu.


Dedicava-se à mulher, Adelaide, e aos filhos Célio, José, Cida, Rita, e ao Toninho, que era o filho do meio. A vida do pai era o trabalho e a família. Mas, havia uma outra paixão, nada secreta, o seu time. Isto era sagrado.


Quando fundaram o time, Sr. Antonio fazia parte do grupo com alguns amigos seus. Era época das vacas magras e o Sr. Antonio, para ajudar, levou, algumas vezes, roupa de jogador para ser lavada em casa. Hoje, esse time tem um grande estádio e é bem rico. A placa com os fundadores permanece lá.


O diminutivo Toninho virou um hábito na família, afinal o pai era o Antonio e o júnior tinha que ser diferenciado. O casal se conhecera na autarquia, onde Adelaide também era funcionária.


Casaram-se e com os filhos chegando, fizeram uns cortes nos gastos na economia doméstica e ela largou o emprego para ser a mãe de que eles precisavam, com a ajuda de uma auxiliar.


A infância de Toninho foi bem comum, e na pré-adolescência a rua era um espaço bom para arrancar com o rolimã ladeira abaixo. Não havia tanto movimento de carros. Mais tarde viria a ser uma importante avenida com duas pistas para circulação de carros em sentidos contrários.


As costumeiras briguinhas entre irmãos, as broncas da mãe e as sessões caseiras de bailinhos improvisados, onde os irmãos dançavam com as irmãs. Era o treino familiar para o futuro. Todos gostavam de ritmo e de música.


E para jogar futebol todo lugar servia de improviso. Mas tinha um especial, um terreno baldio perto do hospital, onde se jogava sem incomodar, mas era o desespero do guarda da vizinhança, que gostava de mostrar autoridade perante os jovens. Numa destas, quis provar quem mandava no quarteirão e veio apanhar a bola para levar consigo.


Toninho se indignou e, com seu corpo magro, pulou e arrancou a bola da mão do intruso. A cena toda foi assistida por um homem, que serviu de defensor dos jogadores e elogiou a atitude firme do Toninho. Disse que estava certo em agir assim e que teria sempre que defender seus direitos. Bela lição para a vida!


Esse protetor era um médico que estava de passagem e viera conhecer como funcionava o atendimento de saúde no hospital público. Continuaria isto por vários lugares e países. Mais tarde, viria a ser uma figura conhecida no mundo inteiro como um grande defensor dos oprimidos. Tinha se apresentado simplesmente como Ernesto.


Esses treinos serviriam no futuro para Toninho ser admitido como jogador de futebol em time de emissora de rádio e participar de alguns campeonatos interestaduais. Foi o que ele mais queria, jogar bola e viajar muitas vezes. Qual o jovem que não gosta disto? Viajar é conhecer, aprender, comparar, e isto ele fazia bem, como bom observador que era de comportamentos, lugares e situações...


As crianças estudaram em boas escolas graças à bolsa de estudos que Sr. Antonio conseguia. Seu salário não seria suficiente e nem sempre era fácil encontrar vaga para cinco crianças em escolas públicas. Toninho e seu irmão mais velho conseguiram entrar em curso superior.


A família considerava Toninho muito inteligente, embora achasse que fosse meio disperso. Resolveu cursar duas faculdades. De manhã estudava no curso de Direito, de um lado da rua, e à noite, Ciências Sociais, do outro lado. Essa rua acabou sendo histórica pelas agitações políticas que lá se iniciaram.


Na época, o concurso público não era obrigatório para trabalhar no funcionalismo. Era feita alguma seleção simples, mas pesava a indicação. Foi pela mão do pai que Toninho conseguiu trabalhar na mesma autarquia depois que se formou no curso do Clássico, atualmente chamado de curso médio.


Gostava do trabalho, do ambiente, das amizades no serviço, das conversas com o pessoal, muita coisa divertida. E as meninas, muito papo gostoso, as risadas e as paqueras. Fazia bem o seu serviço de auxiliar administrativo redigia bem os textos de ofícios, memorandos e outros que lhe eram solicitados. Ainda era a época da máquina de escrever, com as necessárias correções manuais.


Algum tempo depois de ter ingressado na faculdade de Direito, foi transferido para o jurídico, onde atuaria como auxiliar dos procuradores da autarquia. Na teoria, até que gostava do Direito, mas a experiência que foi tendo no estágio estava começando a lhe desagradar. Os livros não ensinavam o que ele passou a perceber. As coisas mudaram e entristeceram seu ambiente de trabalho.


Para construir estradas, havia necessidade de desapropriação de imóveis e isto envolvia grandes interesses econômicos. Uma atração para a ganância daqueles que não se satisfazem com seu salário normal na autarquia. Queriam mais...


Toninho ia percebendo os jogos nos bastidores de algumas desapropriações. Questão de avaliação acima do valor real, desapropriação de imóveis de propriedade de funcionários, várias desapropriações do mesmo imóvel e outras falcatruas. Existia o grupo dos que se uniam em torno dos negócios escusos. Lucro para alguns particulares e prejuízo para o dinheiro público. E Toninho se revoltava com isso...


Esses processos judiciais de desapropriação seguiam seu rumo. Era um desses volumes de processo que Toninho tinha levado a salvo para o Fórum, satisfeito com sua façanha. Naqueles tempos, não era absurdo o sumiço de algum processo importante. Existia alguém disponível para colaborar nisso. Mais tarde, o registro digitalizado dos processos veio ajudar a regularizar as tramitações no Judiciário.


Toninho tentava alertar os chefes, verbalmente, mas não lhe davam atenção. Fez ofício, aliás, vários ofícios, para a chefia indicando as irregularidades que estavam acontecendo. Nenhuma providência. Foi ficando cada vez mais revoltado com essas atitudes erradas.


Era o período da ditadura, quando era hábito manter o sigilo de informações de interesse público, numa mistura de interesses que se escondiam sob o manto da alegada “segurança nacional”. Era o nome do “tapete”, sob o qual fatos tenebrosos eram escondidos. Tempos terríveis...


Nesse ambiente, onde a vida de muitos tinha pouco valor, não se podia esperar que existisse preocupação com a segurança das pessoas no trabalho. Quantos acidentes aconteceram nas construções de pontes, viadutos e rodovias? Eram trabalhadores despencando de obras para o fundo do vale. A mata deve ter muitos registros reais disto, além de outros tipos de acidentes. Nada disso se noticiava nos jornais, onde funcionava a censura governamental. Muito menos se revelavam as falcatruas dos que lesavam os cofres públicos, mantendo sua aparência elegante de ocupantes dos cargos públicos influentes dos departamentos.


Toninho era bem irreverente e rebelde.


Quando estava no elevador da autarquia e entrava algum desses indivíduos malfeitores, exclamava em voz alta:


-- Que cheiro ruim, tem algo podre por aqui....


Era para esculachar mesmo. No entanto, aparentemente nada alterava a empáfia daqueles que ele pretendia atingir, apenas algum risinho disfarçado das pessoas em volta ou algum olhar escandalizado de outro.


O ímprobo do colarinho branco tem uma casca de defesa e sabe disfarçar bem. Aparenta não se abalar com as insinuações para não vestir a carapuça. Afinal, interessa-lhe o resultado, o lucro, o dinheiro de depósito na conta bancária gorda. A questão da reputação não o afeta. Sabia que isto nada representaria naqueles tempos sombrios da ditadura.


Aos poucos, porém, o comportamento de Toninho foi incomodando essas pessoas e acabou refletindo em ambiente hostil contra ele. E foi se apercebendo desse tratamento...


Certo dia, o Sr. Antonio foi chamado para a diretoria geral e ouviu um aviso grave:


--“Sr. Antonio, temos um recado importante para o seu filho. Diga a ele, parar com as suas brincadeiras e insinuações. Se ele não fizer isto, não se acalmar, seremos obrigados a colocá-lo num helicóptero e jogá-lo no mar”.


Acontecia muito, na época. As pessoas sumiam de forma misteriosa...


Este recado tão direto calou fundo no sentimento do pai, que teve na sala da diretoria-geral seu primeiro ataque do coração. Foi uma correria. Precisou ser levado com urgência para o hospital.


Conseguiu se recuperar, mas a alma ficou muito ferida.


Com gente assim não se brinca. Levam a sério demais seu direito de enriquecer de forma ilegal, lesando os cofres públicos com suas falcatruas e seus crimes.


Esse recado assustador demonstrou que Toninho já não teria condições de fazer carreira no departamento jurídico e nem na autarquia. Esse grupo de pessoas tinha muita força e não aceitaria suas denúncias contra a improbidade administrativa.


Ele não conseguia ficar calado diante de tantos desmandos e pediu transferência para outro setor, onde não havia esse jogo de enriquecimento, ou, se havia, não era tão visível.


Serviu para Toninho desmotivar com o Direito, pois achava que não conseguiria sucesso nessa área, diante de uma realidade presente que contrariava seu padrão ético e desistiu de frequentá-lo.


Acresceu a isto o fato de que os colegas do curso pertenciam, na maioria, ao grupo que apoiava a ditadura e ele não pretendia compartilhar os bancos acadêmicos com essas figuras nefastas.


Ficou mais e mais se aprofundando nos estudos de Ciências Sociais, que apontavam para a necessidade de mudar radicalmente a situação existente, o sistema perverso e a sociedade como um todo.


A sociedade perdeu um advogado com potencial, mas ganhou um grande estudioso das ciências da vida em sociedade.


O pai se aposentou com quarenta anos de serviço, com direito a placa por bons serviços.


Poucos anos depois, Toninho teve a tristeza de assistir, em casa, ao segundo e último infarto de seu pai, que faleceu em seus braços e significou uma perda irreparável em sua vida...

 

Marie Madeleine Hutyra de Paula Lima é advogada, membro do Conselho Fiscal do IBAP, mestre em Direito do Estado, mestre em Ciências e auditora-tributária fiscal da PMSP, aposentada.

 

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