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NÓS E O TURCO

Atualizado: 5 de dez. de 2023

TEMPOS DE XADREZ


-CRISTINO DA SILVEIRA-




O Turco enganou Napoleão, atravessou o Atlântico, deixou duas pulgas atrás das orelhas de Poe, e acabou queimado. Poe não era bobo e talvez fosse precavido. Napoleão não era grande, mas era empavonado. Achava que o Turco não teria chances, que era uma máquina – mas era assim que o relojoeiro Wolfgang Von Kempelen o apresentava: uma máquina, que jogava xadrez de igual para igual com os melhores europeus do final do Século 18.


Ocorre que Von Kempelen era um pândego, e conseguiu a façanha de disfarçar tão bem o esconderijo de um enxadrista mirrado dentro de um móvel com muitas engrenagens e molas, moldados por um acabamento kitsch, que ninguém, por muito tempo, descobriu a tramoia.


Por fora, o Turco era um boneco com um braço mecânico, que movia as peças – e fazia boas jogadas. Um autômato. Um pitecantropo da inteligência artificial.


Naquela época não havia redes sociais nem CLT. Quando eventualmente em algum vilarejo, um mais esperto suspeitasse da existência de um anão enclausurado, munido de uma vela, um pantógrafo e a obrigação de ganhar, Von Kempelen tinha outro truque para conter os danos: dinheiro.


Foram mais de 30 anos de glória – exibições para os Guilhermes-Fredericos e Marias Terezas da época em cada castelo do velho continente. Diria o Fausto Wolff, homem de larga sabedoria, que o velho Kempelen passou a manguasca geral nas cortes e tomou todas às custas da sua invenção. Morreu rico e com boa reputação. O Turco ficou de mocó por coisa de um ano de pouco até que Von Kempelen Junior – que também era filho de Deus – resolveu vendê-lo ao músico Johann Nepomuk Mazel, que tinhas olhos grandes.


Em 1809 Mazel botou O Turco para encarar Napoleão. O embate se deu no suntuoso Palácio Schonbrunn, dos Habsburgo, em Vienna. O general não passou frio, passou calor, perdeu e deve ter feito cara de borra-botas. De primeira, tentou enganar a máquina com uma jogada ilegal. O Turco dobrou a aposta, reagiu com um tapa no tabuleiro, derrubou as peças e se fez respeitar. Jogaram uma nova partida, em que o general sucumbiu em poucos lances. Outros relatos contam a história de uma forma ainda menos lisonjeira ao velho Bonaparte. Waterloo veio seis anos depois.


Em 1826, O Turco, famoso por suas conquistas europeias, debutou em Nova York, tendo William Schlumberger acocorado fazendo o serviço limpo. Poe gostava de xadrez, mas gostava mais de escrever. E em vez de se arriscar no duelo, observou. Procurou contradições e deixou suas hipóteses no texto ‘O enxadrista de Mazel’. Viu um lance tosco do Turco e ficou convencido de que a máquina não podia jogar xadrez por seus próprios meios. Embora tenho feito a alegação certa – teria de haver um ser humano ali dentro – não foi capaz de comprová-la ou demonstrá-la.


Pouco depois, Schlumberger morreu em Cuba, de onde Mazel teve que vazar rapidinho, pois não podia mais fazer espetáculos com o Turco e não tinha desculpas sem que revelasse o engodo. Não se sabe se Mazel teve um fim doce, mas morreu no mar, na volta da Ilha. O Turco foi parar com um amigo seu, vendido e virou cinza em um incêndio em um museu de Baltimore.


O segredo de seu funcionamento só foi revelado pelo filho do último dono, depois do incêndio. Mimetizações menores e mal-sucedidas vieram depois, apenas reforçando a excelência da máquina de Von Kempelen.

...

Até que surgiu a tevê.


A tevê é o Turco do final do Século 20. O velho relojoeiro Von Kempelen é o precursor dos empresários de mídia, praticamente um Sílvio Santos, um Edir Macedo da sua época. Homens que amealharam fama e fortuna vendendo nada mais que uma falcatrua bem tramada.


A tecnologia evoluiu, mas o princípio é o mesmo. Hoje carregamos múltiplos Turcos nos nossos bolsos. E convivas, generais e intelectuais parecem ainda mais perdidos.

...

Quem não se deixou enganar pelo que talvez pudesse ser ou não ser foi Victor Korchnoi, que em 1985 iniciou a mais singular das pelejas enxadrísticas até hoje conhecidas.


Muito vivo, Korchnoi mediu forças com Geza Maroczy, contemporâneo de Ghandi, Einstein, aquela rapaziada toda, falecido em 1951. Chegou a ser o terceiro melhor enxadrista do mundo de sua época e deixou como legado teórico a formação “Maroczy bind”, em que peões brancos ocupam as casas c4 e e4 contra a defesa Siciliana das negras. Foi professor de matemática e deu aulas para o holandês Max Euwe, que seria campeão mundial no final da Segunda Grande Guerra.


Korchnoi, em 1985, era o terceiro melhor jogador do mundo e já disputara o título mundial contra Anatoly Karpov duas vezes (1978 e 1981). Um globe-trotter do xadrez, jogou em alto nível até perto de 70 anos de idade. Caso raro de enxadrista que disputou dez Torneios de Candidatos (que seleciona o desafiante ao título mundial), entre 1962 e 1993.


Ele foi procurado, no início dos anos 80, pelo enxadrista amador, doutor em economia e estudioso de fenômenos paranormais, Wolfgang Eisenbeiss, que queria comprovar a comunicação com espíritos por meio do jogo de xadrez. Eisenbeiss lhe convenceu a aceitar o desafio e pediu que Korchnoi fizesse uma lista de grandes jogadores já falecidos. Então Eisenbeiss chamou Robert Rollans, médium supostamente ignorante sobre as regras do jogo, e armou o experimento.


Não se sabe com o auxílio de quantos copos Rollans conseguiu contato com Maroczy e o jogo começou com o espírito jogando de brancas. Rollans psicografava os movimentos, que eram transmitidos a Korchnoi, que dava sua resposta. Em virtude dos compromissos do vivo, o morto teve de esperar os longos sete anos e pouco para concluir o certame, mas aparentemente não se incomodou muito.


O experimento foi publicado no Journal of the Society of Psychical Research, em 2006. Questionado sobre o jogo de seu oponente, Korchnoi avaliou que “na abertura, Maroczy mostrou fraquezas. Seu estilo é antiquado, mas eu não estava certo que o venceria. Ele compensou as falhas na abertura com um forte jogo de final”.


Em menos de 50 lances Korchnoi venceu o enferrujado Maroczy que, talvez ainda envergonhado da derrota, não deu mais as caras desde então.

 

CRISTINO DA SILVEIRA é jornalista e escritor bissexto



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