- Guilherme Purvin -
O dia 5 de outubro de 2022 deveria estar sendo comemorado como um dia de festa, dia da cidadania. Há exatos 34 anos, o Procurador do Estado/SP e Deputado Federal Ulysses Guimarães assinava a Constituição da República com uma simples caneta esferográfica e proclamava o nascimento de um novo país.
A Constituição de 1988 foi a antítese do monstrengo autoritário criado pela ditadura militar para substituir a Carta Democrática de 1946.
Basta nos recordarmos que, enquanto a Constituição democrática erigia um verdadeiro monumento jurídico da cidadania no art. 5º, com seus setenta e três incisos, a Carta de 1967/69 tratava dos Direitos e Garantias Fundamentais somente no art. 153.
Mas a questão não era somente topológica. Os trinta e seis parágrafos do art. 153, ao mesmo tempo afirmavam e negavam direitos individuais. Veja-se, a título de exemplo, a questão religiosa:
CF 67/EC 1/69 - Art. 153, § 5º - É plena a liberdade de consciência e fica assegurado aos crentes o exercício dos cultos religiosos, que não contrariem a ordem pública e os bons costumes.
O que se entenderia por culto religioso contrário à ordem pública e aos bons costumes? As liturgias de algumas religiões de origem africana? A defesa dos direitos humanos por algumas ordens religiosas da igreja católica? Pois fora m segmentos do catolicismo, da umbanda e do candomblé alguns dos que sofreram a violência dos governos militares de 1964 a 1985.
Hoje, o tema é tratado da seguinte forma:
CF 88 - Art. 5º, VI - É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.
Vale dizer, não há, em nosso ordenamento constitucional, absolutamente nenhuma possibilidade de intervenção governamental em questões envolvendo cultos religiosos, lucais de culto e suas liturgias. E é com base nesse dispositivo constitucional que centenas de políticos se abrigam em algumas igrejas neopentecostais para realizar comícios políticos absolutamente divorciados do que se poderia chamar de culto religioso ou liturgia, onde pregam a mentira e o ódio e acusando um dos candidatos a presidente da república de forma torpe: dizia-se satanista e apoiador do candidato. Há alguns dias, o Ministro Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, do Tribunal Superior Eleitoral determinou a retirada de uma publicação do portal R7, que pertence à Rádio e Televisão Record que afirmava: "satanista diz que forças malignas se uniram por vitória de Lula, mas erra resultado da eleição". Em sua decisão, afirmou Sanseverino:
"Não há vedação legal ou constitucional para o exercício da liberdade religiosa, seja qual for a crença, mas é inadmissível associar a imagem de terceiro candidato ao cargo de presidente da República a determinada religião ou ideologia sem o seu consentimento, notadamente no ambiente digital e durante o período crítico das eleições, em que a disseminação de desinformação acontece com extrema velocidade e alto potencial danoso".
Ou então na liberdade de pensamento, convicção política e filosófica, de informação e de expressão artística. Eis como o tema era disciplinado pela ditadura militar:
CF 67/EC 1/69 - Art. 153, § 8º - É livre a manifestação de pensamento, de convicção política ou filosófica, bem como a prestação de informação independentemente de censura, salvo quanto a diversões e espetáculos públicos, respondendo cada um, nos têrmos da lei, pelos abusos que cometer. É assegurado o direito de resposta. A publicação de livros, jornais e periódicos não depende de licença da autoridade. Não serão, porém, toleradas a propaganda de guerra, de subversão da ordem ou de preconceitos de religião, de raça ou de classe, e as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes.
De acordo com o ordenamento constitucional vigente, estes temas são tratados em diferentes incisos do art. 5º:
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
VI - é inviolável a liberdade de consciência ... (citado anteriormente);
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;
XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;
A proibição de censura de espetáculos públicos pela Constituição de 1988 foi que assegurou a realização da série "O Mecanismo", da Netflix, dirigida por José Padilha, em que, a um só tempo, a "Lava Jato" é enaltecida e Lula e PT são achincalhados. Claro, com nomes modificados, pois os diretores afirmam que a série foi "livremente inspirada" em fatos e personagens reais.
Não haveria, assim, motivo para que os eleitores de direita se insurjam contra a atual Constituição e se digam saudosos do AI-5 e da ditadura, a não ser quando artistas e veículos de comunicação mais à esquerda se valham dos mesmos direitos para também produzirem conteúdo jornalístico ou espetáculos nos quais as posições se invertem. O que fez a Constituição Federal foi somente permitir o exercício da democracia para todos os brasileiros.
Seguem mais algumas excrescências autoritárias da Constituição outorgada de 67/69:
§ 11. Não haverá pena de morte, de prisão perpétua, de banimento, ou confisco, salvo nos casos de guerra externa, psicológica adversa, ou revolucionária ou subversiva, no têrmos que a lei determinar. Esta disporá, também, sobre o perdimento de bens por danos causados ao erário, ou no caso de enriquecimento ilícito no exercício do cargo, função ou emprêgo na Administração Pública, direta ou indireta.
§ 20. Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. Nas transgressões disciplinares não caberá habea corpus.
§ 27. Todos podem reunir-se sem armas, não intervindo a autoridade senão para manter a ordem. A lei poderá determinar os casos em que será necessária a comunicação prévia à autoridade, bem como a designação, por esta, do local da reunião.
Para sepultar qualquer ilusão de que alguém viesse a invocar algum direito previsto nos parágrafos do art. 153, vinha o art. 154 da CF 67/EC 1/69 negar tudo o que havia sido dito anteriormente:
Art.154. O abuso de direito individual ou político, com o propósito de subversão do regime democrático ou de corrupção, importará a suspensão daqueles direitos de dois a dez anos, a qual será declarada pelo Supremo Tribunal Federal, mediante representação do Procurador Geral da República, sem prejuízo da ação cível ou penal que couber, assegurada ao paciente ampla defesa. Parágrafo único. Quando se tratar de titular de mandato eletivo, o processo não dependerá de licença da Câmara a que pertencer.
Vale lembrar que o conceito de "propósito de subversão do regime democrático" era totalmente obscuro, decidido a varejo pelos agentes da ditadura militar, sem obedecer a nenhum critério jurídico. Com base nesse dispositivo, a ditadura cassou mandatos parlamentares (caso de Márcio Moreira Alves, que serviu de justificativa para a edição do Ato Institucional n. 5), prendeu defensores da democracia, obrigou brasileiros a fugirem do país para não serem assassinados. E matou os que ficaram (caso de Vladimir Herzog).
Infelizmente, a exemplo do 7 de setembro deste ano, que deveria ter sido um dia de festa de todos os brasileiros em razão do bicentenário da independência, mas se tornou um dia de medo (a ponto de haver sido modificada a data de reinauguração do Museu do Ipiranga), aqueles que lutam pelo cumprimento da Constituição de 1988 não têm tempo ou disposição para festejar o que quer que seja.
O momento é de luta para que o pesadelo iniciado com os preparativos para o golpe de 2016, conforme explicitado num diálogo entre o Senador Romero Jucá (RR) e o empresário da Transpetro Sérg io Machado,amplamente divulgado pela imprensa. Relembremos a reportagem do El País de 24 de maio de 2016:
"Conversei ontem com uns ministros do Supremo. Os caras dizem ‘ó, só tem condições de... sem ela [Dilma]. Enquanto ela estiver ali, a imprensa, os caras querem tirar ela, essa porra não vai parar nunca’.
Em outro trecho, sugere que um acordo nacional, ou pacto, para “delimitar” a Lava Jato com participação do Supremo.
- Rapaz, a solução mais fácil era botar o Michel [Temer]... É um acordo, botar o Michel, num grande acordo nacional, sugere Machado.
- Com o Supremo, com tudo, afirma Jucá.
- Com tudo, aí parava tudo, anuncia Machado."
Cabe a todos os que acreditam na democracia, defendê-la nos próximos dias, votando em quem foi vítima dessas tenebrosas transações divulgadas pela imprensa e que deram início ao processo de total desmoralização da Constituição de 1988 e, em sua esteira, na morte gratuita de quase 700 mil brasileiros.
Nos próximos 25 dias, permaneçamos em vigília, para que em 5 de outubro de 2023 possamos comemorar o 35º aniversário da democracia constitucional no país.
Guilherme Purvin, graduado em Direito e Letras pela USP, doutor em Direito do Estado pela mesma universidade, é advogado e escritor. Ex-presidente do IBAP, ocupa atualmente a função de Coordenador Internacional. Foi coordenador geral da APRODAB e hoje é membro de seu Conselho Consultivo. É editor-chefe da Revista PUB - Diálogos Interdisciplinares.
Quem, como eu, estudou Direito Constitucional sob o texto de 67 e Direito Administrativo sob o texto de 1988, sabe bem a diferença entre uma "Constituição para inglês ver" - tomando de empréstimo o pronunciamento de um liberal autêntico chamado Orlando Magalhães de Carvalho, a referência na Teoria Geral do Estado na UFMG - e uma Constituição vinda com o objetivo de consolidar a redemocratização. Parabéns pelo texto, Gui.