-Regina Helena Piccolo Cardia-
Ontem foi aniversário do meu pai. Autodidata, professor, encantador de plateias, grandes e pequenas, reiteradamente convidado a ser o paraninfo das turmas; nomeado Ministro da Palavra, por vezes realizava cultos ecumênicos.
Com o uso frequente dessa palavra difícil para minha tenra idade – ecumênico vem do grego oikomenikòs, de oikomène, que significa terra habitada[1]; de âmbito geral, universal; que congrega pessoas de diferentes credos ou ideologias[2] –, ele me ensinou o significado do respeito a tudo e a todos. Respeito à diversidade, que à época não tinha uso político nem comercial, e que hoje se dissemina mais como greenwashing que como prática.
Acima de tudo, aprendi sobre respeito ao próximo, a partir de um conceito de igualdade simples e preciso, que ele repetia: “ninguém é melhor do que você, ninguém é pior do que você”. A lição foi magnetizada a partir do exemplo, ao vê-lo dispensando a faxineiros, alunos e diretores da escola o mesmo tratamento e atenção.
Talvez isso pareça muito pueril. Mas, na verdade, essa ideia está na base das teorias do reconhecimento, do valor e da dignidade conferida a cada ser humano e, até mais longe, creditadas a cada ser vivo, que incluem os animais e a própria natureza. Nesse mesmo esteio se firma a Ética, fonte da filosofia prática, ciência dos costumes, fiel entre o bem e o mal, linha condutora para o bem comum.
O início do ano costuma ser o momento em que paramos para refletir e reforçar os valores e os desejos para este novo ciclo. Mas para que servem os valores e os princípios que carreamos e lutamos (e quanta luta interna!) para concretizar nas ações do cotidiano? Servem para nos dar horizonte e com ele podermos caminhar com um sentido para a vida, em compasso com o célebre conto de Fernando Birri acerca da utopia, eternizado por Galeano[3].
O homem, à imagem de Ulisses, na Odisseia, é polítropo, pois versátil e multiforme, razão pela qual os norteamentos éticos são necessários para ordenar suas ações a um objetivo, sem o qual pode até perder-se de si mesmo. Como observa Schüler, um cristal de rocha é cristal de rocha; o espírito (noos) do homem se desdobra sem limites.[4]
Limite é justamente o que os pais, como nossos primeiros mestres, nos oferecem, recitando balizas de um padrão de comportamento ético esperado pelo senso comum. O segredo é não cair na armadilha tão bem desenhada por Paine, segundo a qual “um antigo hábito de não pensar que uma coisa esteja errada dá-lhe uma aparência de estar certa, e faz surgir de início um temível brado em defesa do costume”.[5]
Os lineamentos éticos nos permitem construir valores não só para o atingimento de objetivos de ordem pessoal, mas para nos conduzirmos ao bem comum, propugnando uma aproximação entre o comunitarismo e o liberalismo orientado para os direitos individuais, como no debate apresentado por Sandel sobre a célebre obra de Raws, Uma Teoria da Justiça.[6] A ética extrapola o pessoal e chega à lei universal, não com o fito de ser inaplicável ou inconciliável com a prática, mas para buscar maior isenção, isto é, imparcialidade e justiça.[7]
As coisas não vão mudar a partir de janeiro por um decreto de esperança, como diria Drummond[8]. Os desafios de Ano Novo devem ir além das legítimas ambições pessoais, passando pela contínua e até dolorosa reforma íntima, que imponha uma atuação cotidiana de respeito à diferença, promoção da igualdade de direitos e de tratamento, justiça, solidariedade, sentimento de gratidão às lições apreendidas dos nossos pais e mestres, em prol da renovação de valores e princípios que colimem uma vida digna e pacífica entre seres irmanados e harmônicos com a natureza.
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[1] SILVEIRA BUENO, Francisco da. Grande Dicionário Etimológico-Prosódico da Língua Portuguesa. São Paulo: Saraiva, 1969, p. 1059.
[2] HOUAISS, Antônio et al. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
[3] "Ella está en el horizonte —dice Fernando Birri—. Me acerco dos pasos, ella se aleja dos pasos. Camino diez pasos y el horizonte se corre diez pasos más allá. Por mucho que yo camine, nunca la alcanzaré. ¿Para qué sirve la utopía? Para eso sirve: para caminar." GALEANO, Eduardo. Las palavras andantes. Buenos Aires: Catálogos, 2001, p. 230.
[4] SCHÜLER, Donaldo. Origens do discurso democrático. Porto Alegre: L&PM, 2007.
[5] PAINE, Thomas. Senso Comum. São Paulo: Martin Claret, 2005, p. 25.
[6] SANDEL, Michael J. O liberalismo e os limites da Justiça. Lisboa: Fundação Caloustre Gulbenkian, 2005.
[7] SINGER, Paul. Ética prática. São Paulo: Martins Fontes, 2018.
[8] Poema Receita de Ano-Novo, de Carlos Drummond de Andrade.
Regina Helena Piccolo Cardia - DPO da SABESP, Advogada, Professora, Mestre PUCSP, Esp. Direito Ambiental USP, MBA Gestão Empresarial FIA, Rel.TED OAB/SP, ex-Coord Comissão de Ética e associada do IBAP.
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