-MÁRCIA SEMER-
A literatura é ferramenta relevante de cognição, de percepção do mundo e de seus dilemas pelo olhar de outro, mas que também pode ser ou se tornar seu. Como expressão artística, a literatura desperta nossos afetos numa dimensão que a abordagem acadêmica dificilmente é capaz de alcançar.
Annie Ernaux, escritora francesa que conquistou o prêmio Nobel de Literatura em 2022, é dona de uma pena enxuta e poderosa. Seus textos traduzidos até aqui para o português têm forte matriz autobiográfica e retratam fundamentalmente o universo feminino. Sua escrita modela retratos, verdadeira fotografia da mulher urbana, integrante dos extratos médios da sociedade, no seu caso uma intelectual, que a partir dos anos 1960 vive sua juventude e maturidade.
Mas longe de revelar um recorte personalíssimo, particular da vida da escritora, o texto de Annie Ernaux é universal, abraça a esfera do feminino em toda sua complexidade, dialogando especialmente com temas tabus, a exemplo do argumento central do livro O Acontecimento, provavelmente sua obra mais conhecida, publicada originalmente em março de 2000 na França e apenas em 2022 no Brasil pela editora Fósforo.
Em O Acontecimento Ernaux retrata a experiência dolorosa de uma jovem mulher, ela mesma, para a realização de um aborto numa França onde a prática era legalmente vedada, nos idos de 1963. A partir das memórias da escritora, o livro apresenta em todas as tintas a trajetória solitária tão comum às mulheres que, enfrentando a reprovação moral, a falta de empatia ou solidariedade e a lei, decidem tomar nas mãos seu próprio destino.
Como obra literária, a leitura de O Acontecimento alarga nossos sentidos e nos permite apreender razões que a própria razão desconhece no trato da matéria. Temporalmente situado no ano de 1963, O Acontecimento se passa no mundo da guerra fria, da França chefiada pelo general Charles de Gaulle que, diga-se, apesar de herói da resistência aos nazistas em seu país, foi dos primeiros chefes de Estado a visitar o Brasil após o golpe civil-militar que nos assaltou faz exatos 60 anos, percorrendo Brasilia, Rio de Janeiro, São Paulo, tudo em outubro de 1964.
Pois sessenta anos se passaram, e se na França O Acontecimento está descriminalizado desde 1975, no Brasil ainda enfrentamos enormes dificuldades, dificuldades crescentes, vale registrar, para pautar o tema, até mesmo quanto ao estreito objeto do aborto legal.
Um exemplo da dimensão de verdadeiro tabu que a questão do aborto tomou no Brasil ocorreu na semana passada, última de fevereiro de 2024, na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Posto em votação o Projeto de Lei n. 16/2017, de autoria da ex-vereadora Marielle Franco, a Casa rejeitou a proposta por 32 votos a 8.
Mas o que dizia o referido projeto? Certamente essa é a pergunta que se faz o leitor neste momento.
O projeto propunha a criação de um Programa de Atenção Humanizada ao Aborto Legal- aquele cuja gravidez é decorrente de estupro, põe em risco a vida da mãe, carrega um feto anencefálico ou obteve autorização judicial- no âmbito do Município do Rio de Janeiro, a fim de garantir práticas de acolhimento, orientação e tratamento clínico adequado às mulheres. Trazia por princípios, entre outros, a presunção de veracidade da fala da mulher, o acolhimento como dever e norteador da equipe de saúde, a escuta qualificada da mulher nos atendimentos a cargo das equipes de saúde; e por objetivos da implementação do programa o respeito à autonomia da mulher, o acolhimento e a orientação, a eliminação da violência obstétrica, etc, tudo nos estritos limites do aborto legal.
Ao final, a maioria expressiva dos edis- quase todos homens- rechaçaram a mera proposição de atendimento humanizado à mulher em situação de aborto legal, invocando para tanto Deus, a família ou a posição pessoal contrária ao aborto.
A proposta, a rigor, não implicava novas despesas, mas apenas estabelecia diretrizes comportamentais e procedimentais às quais as equipes de saúde do município deveriam guardar especial atenção. Tratava-se tão somente de iniciativa que punha no papel a lembrança de que a mulher na situação de aborto legal merece receber tratamento respeitoso, adequado, empático e solidário.
Nem isso foi possível discutir com razoabilidade, imputadas em plenário ofensas e xingamentos aos defensores da matéria. Nada foi capaz de desfazer o tabu que cerca o tema nestas terras de palmeiras onde canta o sabiá. Ao final, a maioria expressiva dos edis- quase todos homens- rechaçaram a mera proposição de atendimento humanizado à mulher em situação de aborto legal, invocando para tanto Deus, a família ou a posição pessoal contrária ao aborto.
Talvez ainda sejam necessários muitos marços até que o aborto deixe de ser O Acontecimento no Brasil. Não será sem luta democrática, daquelas que brotam das ruas e que por isso avançam arrasadoras sobre os mais obscuros tabus.
Ainda escrevo as últimas palavras deste texto quando leio na imprensa digital: França se torna primeiro país do mundo a proteger aborto na Constituição[1]. Em sessão do Parlamento com direito a transmissão por telão gigante postado na Torre Eiffel, a proposta oriunda do governo obteve aprovação de 780 parlamentares contra 72. A promulgação, marcada para ocorrer em 08.03.2024, será um ato público para o qual Emanuel Macron está convidando a população a participar. Allez les Bleus!
Márcia Maria Barreta Fernandes Semer, advogada. Doutora e Mestre em Direito do Estado pela USP, Procuradora do Estado aposentada, vice-presidente do SindiproesP, membro integrante do IBAP
Os enormes contrastes que separam a discussão de um tema de tamanho interesse para o universo feminino. Márcia Semer aponta e também permite entrever essas diferenças de perspectivas. Parabéns pelo texto com tratamento delicado, mas firme!!!!