- Guilherme Purvin -
No sétimo episódio do podcast "Narrativas do Antropoceno", faço esta pergunta: qual o idioma falado pelas famílias brasileiras há pouco mais de dois séculos e meio? Não me refiro aos povos originários, mas aos portugueses que se casaram com mulheres indígenas, tiveram filhos e constituíram "honradas famílias", nos mais rígidos moldes católicos.
Muitos responderiam sem vacilar: óbvio que era o português. Afinal, nessa época já tínhamos uma literatura em formação - Bento Teixeira, Gregório de Matos Guerra, Padre Antônio Vieira... E, na segunda metade do Século XVIII, Cláudio Manuel da Costa, Basílio da Gama, Tomás Antonio Gonzaga, Frei José de Santa Rita Durão e muitos outros.
Na verdade, porém, a situação linguística era bem outra. No afã de converter os povos indígenas para o cristianismo, os jesuítas haviam sistematizado uma língua geral baseada nos diversos idiomas mais ou menos assemelhados do tronco linguístico tupi-guarani. E era essa a língua falada por essas famílias que haviam se constituído por todo o território paulista e pelo restante do país.
Havia, é certo, muitos outros idiomas falados em nosso território e que não haviam sido simplificados para essa língua geral brasílica. Eram os idiomas tapúias - ou seja, todos os que não fossem derivados do tronco tupi-guarani.
Foi por imposição do Marquês de Pombal que essa língua autenticamente brasileira acabou sendo proibida. A língua portuguesa que falamos, assim, está longe de constituir uma evolução linguística natural, decorrente da mistura de diferentes culturas (a do colonizador português e a dos povos originários colonizados).
A língua geral paulista acabou desaparecendo completamente e hoje o que resta dela é, se tanto, o "r" retroflexo típico do falar caipira. No entanto, na Região Norte do país, ainda se pratica a língua geral - é o chamado nheengatu. Aliás, o verbo nheeng deu origem à palavra nhenhenhém... Isto é, falatório...
No começo do século XX, Lima Barreto escreveu o romance "Triste Fim de Policarpo Quaresma", no qual o protagonista, patriota convicto, propõe a adoção de idioma Tupi Guarani como a língua oficial do Brasil. Acabou sendo ridicularizado por isso. No entanto, sob certa perspectiva, o texto é quase um desagravo pelo etnocídio praticado pelo colonizador português.
Somente há poucos anos é que os povos originários passaram a ter assegurado o direito de serem educados em sua língua nativa. Trata-se de uma conquista que, sem dúvida, deve ser valorizada e aplaudida. No entanto, talvez fosse caso de avançarmos um pouco mais nesse tema. Por que não adotarmos diferentes línguas cooficiais aborígenes, visando o fortalecimento da cidadania indígena? Ou, indo ainda mais além, por que não ensinar línguas originárias no ensino fundamental e médio de não-indígenas, como forma de ampliar a compreensão da poética e da cosmogonia de outras culturas muito diferentes da européia? Considerando que a língua Guarani é uma das três línguas oficiais do Mercosul, por que não aprendermos noções desse idioma, amplamente falado no Paraguai?
Estas questões são tratadas no episódio n. 7 do Podcast Narrativas do Antropoceno, que contou com a participação especial do escritor Zeca Sampaio (autor do livro "Guerra dos Tamoios - Genocídio em nome de Deus", lançado pela Ed. Terra Redonda) e dos professores de Direito Ambiental Paulo Affonso Leme Machado e Carlos Marés.
O episódio "Etnolinguística Indígena - Um pouco de Policarpo Quaresma até que faria bem" pode ser ouvido tanto na plataforma Spotify como no Google Podcasts.
Bibliografia consultada para a elaboração do programa:
BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. In: Obra reunida, volume I, 1ª Ed. Nova Fronteira, 2018.
LEONARDI, Victor. Entre árvores e esquecimentos: A modernidade e os povos indígenas no Brasil. História social dos sertões. 2ª ed. Paralelo 15 : Editora UnB.
NAVARRO, Eduardo de Almeida. Método moderno de Tupi Antigo: A língua do Brasil dos primeiros séculos. 3ª ed.. Editora Global.
Guilherme Purvin é escritor e advogado. Graduado em Direito e em Letras pela USP. Doutor em Direito Ambiental (USP, 2002).
Comments