-MARIE MADELEINE HUTYRA DE PAULA LIMA-
Ao lado das atividades previstas na lei de sua criação (1978), o Instituto Florestal, -- cujo trabalho mereceu reconhecimento nacional e internacional --, assumiu também a gestão da pesquisa científica do SIEFLOR compreendendo, entre outras, a produção e disseminação do conhecimento sobre a gestão das áreas integrantes do Sistema Estadual de Florestas - SIEFLOR, o manejo florestal, a recuperação ambiental e a biodiversidade; a gestão da pesquisa científica nas áreas do Sistema; a pesquisa para subsidiar ações de proteção e recuperação de recursos hídricos, do solo e paisagísticos; pesquisa sobre a produção de sementes e mudas de espécies vegetais, e pesquisa sobre manejo de produtos florestais não madeireiros e a recuperação de áreas naturais degradadas.
É justo, pois, o motivo de indignação diante da extinção do Instituto Florestal, determinada pelo artigo 64, da Lei n. 17.293, de 15/10/2020, inserida num conjunto variado de quase 70 artigos e disposições transitórias, abrangendo contas públicas, questões aparentemente distantes do ambiente cuidadoso da pesquisa científica ambiental do Estado de São Paulo. No entanto, a ciência e a pesquisa científica ambiental sofreram perdas, contrariando o valor reconhecido na contribuição da pesquisa científica para o desenvolvimento da ciência, a criação de novas pesquisas, o estímulo ao trabalho do pesquisador científico e o acesso pela população do Estado aos resultados dessas pesquisas e que constitui um direito fundamental previsto na Constituição Federal, além de ser impulsionadora do desenvolvimento nacional.
No emaranhado de artigos da lei, a extinção do Instituto Florestal aparece, de supetão, num único artigo, carecendo de qualquer estudo prévio sobre os impactos para a pesquisa científica na área da biodiversidade e do meio ambiente do Estado de São Paulo e, por extensão, para a ciência nacional. Este fato remete para muitos casos de evasão de pesquisadores do Brasil em busca de reconhecimento de seu trabalho no exterior, desfalcando a possibilidade de crescimento do campo da pesquisa científica nacional, que, ao contrário, deveria ser estimulada pelo poder público. Afinal, quando deixaremos de ser o eterno “país do futuro”?
A decisão é irônica por acontecer em momento crucial em que se revela, -- e o próprio Governo do Estado de São Paulo alega defender --, a importância da ciência e do conhecimento científico para a defesa da saúde humana em face da pandemia da Covid-19 e quando, de forma contraditória, a justificativa apresentada pelo Governo do Estado para, numa medida esdrúxula, extinguir um Instituto de Pesquisa diretamente ligado com a ciência e a pesquisa científica ambiental, sacrificando o Instituto Florestal no altar da “pseudo-economia de gastos públicos” para enfrentar a própria pandemia!! O ajuste fiscal de contas públicas virou “jargão político”, quase um cacoete, pouco defensável como interesse público ao violar direitos fundamentais.
Apesar da extinção do Instituto Florestal, porém, a lei determinava a manutenção de todas as atribuições do Instituto que seriam delegadas para a nova unidade administrativa que reuniria também o Instituto de Botânica e o Instituto Geológico, a ser criada pelo Governo do Estado de São Paulo. Por si, este fato já representa modificação estrutural também do Instituto de Botânica e do Instituto Geológico.
Malgrado as linhas científicas ambientais subordinadas à pasta da Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do Estado de São Paulo estarem restritas àquelas representadas pelo Instituto Florestal, pelo Instituto de Botânica e pelo Instituto Geológico, as estruturas de pesquisa desses Institutos foram desconstruídas.
O Decreto n. 65.274/2020 editado pelo Governo do Estado desestruturou as atribuições do Instituto Florestal, em especial do programa SIEFLOR, inclusive pondo em risco o seu patrimônio científico, ao delegar essas atribuições a órgãos sem competência legal para tanto, como a Fundação Florestal e a Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente, e sem qualquer motivação adequada. A própria forma jurídica adotada fere a legalidade, por criar novos direitos em afronta à citada lei.
Em 2003, o Instituto Florestal propôs e, em 2009, foi incumbido da execução do Plano de Produção Sustentada (PPS), que garante a sustentabilidade do Sistema SIEFLOR, na oportunidade objeto de estudos pelo Instituto. Trata-se de um plano de manejo florestal sustentado, com caráter também de pesquisa científica, que alcança Estações Experimentais e Florestas Estaduais, cobrindo uma área aproximada de 27.000 ha com plantios homogêneos de espécies madeireiras.
Em 2006, foi criado o Sistema Estadual de Florestas – SIEFLOR (Decreto n. 51.453), constituindo um sistema integrado de pesquisa científica contemplando as diretrizes da Convenção sobre a Diversidade Biológica, a que o Brasil aderiu. O objetivo do SIEFLOR foi tornar mais eficaz a gestão das florestas públicas e outras áreas naturais protegidas, como a Mata Atlântica -- patrimônio nacional --, o Cerrado e outras formações vegetais naturais do Estado de São Paulo e da fauna associada, e tendo por foco a necessidade de conservação delas.
Com o SIEFLOR (2006) e com o PPS (2009), o Instituto Florestal agregou as atribuições de gerir o sistema contendo um programa amplo de política pública que exige uma gestão capaz de reunir a interconexão e sinergia entre as atividades administrativas e de pesquisa científica, a infraestrutura do Instituto e das áreas de proteção ambiental onde se realizam essas atividades, o patrimônio científico, material e imaterial, para a realização das atividades, e que foram desenvolvidas a contento pelo Instituto até a edição do Decreto n. 65.274/2020.
A execução do programa SIEFLOR subordinava-se às diretrizes da Comissão Técnico Científica – COTEC do próprio Instituto Florestal para gerir toda a pesquisa científica desenvolvida nas áreas protegidas integrantes do SIEFLOR, com a gerência dividida entre o Conselho Estadual do Meio Ambiente - CONSEMA (para acompanhar a implementação do sistema como órgão consultivo e deliberativo); da Secretaria do Meio Ambiente (para a coordenação do sistema), e da Fundação Florestal (para a execução) com o apoio científico do Instituto Florestal. Portanto, todas as fases do programa têm como imprescindível o apoio científico do Instituto Florestal. Por outro lado, a transferência das atribuições do programa SIEFLOR careceu de aprovação prévia pelo CONSEMA, que integrava a gerência do SIEFLOR.
Ambos os elementos, a atividade de pesquisa e a produção sustentável, integrantes do programa de política pública PPS/SIEFLOR, de atribuição do Instituto Florestal, dependem de outros dois elementos, totalizando quatro, a saber: 1. a atividade de pesquisa em biodiversidade; 2. a atividade de produção sustentável do PPS; 3. as áreas de proteção onde as atividades se realizam, e 4. a destinação específica dos recursos gerados para a própria unidade onde ocorreu a produção. É um conjunto integrado e interdependente que não poderia ser separado, sob risco de eliminar a funcionalidade, o objetivo e a finalidade do programa.
No entanto, antes mesmo da criação da nova unidade administrativa prevista na lei de 2020, o Decreto n. 65.274/2020 causou o desmonte de estruturas das atribuições do Instituto Florestal, com a desintegração dos programas SIEFLOR e PPS, ao transferir atividades de pesquisa e de gestão cometidas ao Instituto Florestal para a Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente e para a “Fundação Florestal”, violando os limites de competência outorgada pela lei de criação de ambas.
Retirou do programa PPS o caráter de pesquisa científica, transformando-a em mera atividade econômica e também o caráter de auto-sustentabilidade ao suprimir a destinação específica de reaplicação dos recursos com a venda de produção nas áreas de origem e deixando sua aplicação a critério da SIMA, criando insegurança jurídica quanto ao seu reinvestimento na pesquisa científica do próprio SIEFLOR.
Houve a supressão de característica essencial do programa de pesquisa científica da Regionalização das atividades do SIEFLOR, pois as áreas protegidas, de Estações Experimentais, Viveiros florestais, Hortos, Florestas Estaduais, Estações Ecológicas e Reservas Biológicas, estão localizadas em diversas regiões do Estado de São Paulo e são campus de pesquisa permanente dos pesquisadores científicos lotados nessas unidades. Ocorreu, também, a extinção de Núcleos Temáticos e Centros de Pesquisa nos três Institutos de Pesquisa, com a possível redução de atividades de pesquisa permanente, por falta de suporte institucional.
Está clara a ilegalidade na outorga pelo decreto de atribuições de áreas especializadas para a Fundação Florestal e para a Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente, pois, no âmbito da atividade experimental, elas constituem áreas especialmente protegidas com objetivos específicos de experimentação e pesquisa, -- foram instituídas e delimitadas geograficamente por decreto pelo Governo do Estado a partir dos anos 1950 --, sob administração, desenvolvimento e proteção do Instituto Florestal e do Instituto de Botânica, além de corresponderem aos espaços especiais submetidos à proteção constitucional (art. 225, § 1º, inc. III, da Constituição Federal).
O Decreto desconsiderou os estudos que resultaram na Recomendação n. 009/2020, do Conselho Consultivo do SIGAP - Sistema de Informação e Gestão de Áreas Protegidas e de Interesse Ambiental do Estado de São Paulo -, que opinara a favor do fortalecimento dos três Institutos de Pesquisa, o Florestal, o de Botânica e o Geológico e negava qualquer vantagem econômica com a extinção do Instituto Florestal.
Diante dos riscos para a pesquisa científica ambiental e de biodiversidade, a comunidade científica e ambiental se mobilizou e elaborou a “Moção em Defesa da Pesquisa Científica Ambiental do Estado de São Paulo”, com mais de 350 subscritores e que foi encaminhado ao Governador do Estado.
A Moção foi também apensada à petição inicial da Ação Civil Pública, com pedido de liminar, protocolada em 16/05/2021, em que é autor PROAM – Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental, cuja peça inicial elaborei (2ª Vara da Fazenda Pública da Capital, processo: 1029471.50.2021-8.26-0053).
É longo o rol dos fundamentos jurídicos apresentados, que fogem ao caráter informativo deste texto, que revelam o grau de irregularidades e ilegalidades das medidas contidas no Decreto citado, como a afronta a vários princípios constitucionais, infringência de convenções internacionais e do ordenamento interno que vedam o retrocesso nos direitos sociais e na pesquisa científica ambiental; a vinculação da legislação futura e da Administração Pública à eficácia jurídica imediata, direta e vinculante das normas constitucionais ainda que consideradas “programáticas” referentes à proteção à biodiversidade e ao meio ambiente e à pesquisa científica ambiental; a limitação da discricionariedade administrativa em direitos sociais fundamentais e a participação do Poder Judiciário na efetivação de políticas públicas em direitos sociais.
A ação civil pública pretende a decretação da nulidade, com pedido de liminar, do Decreto estadual n. 65.274, de 27/10/2020, por sua ilegalidade, ao extrapolar os limites da competência atribuída pelo art. 64, da Lei n. 17.293/2020, que pretendia regulamentar, além de extrapolar a competência atribuída pelo art. 4º, da Lei n. 5.208, de 1986, que criou a Fundação Florestal, e por afronta aos princípios da legalidade e da tripartição dos poderes da República. Pede também a condenação da Fazenda Pública na obrigação de não fazer consistente na abstenção de prática de atos de qualquer espécie ou natureza tendentes a causar alterações nas linhas da pesquisa do Instituto Florestal, do Instituto de Botânica e do Instituto Geológico previstas nas condições anteriores à edição do Decreto n. 65.274, de 26/10/2020 (DOE 27/10/2020), até a apresentação pela Secretaria de Infraestrutura do Meio Ambiente de motivação e de elementos técnicos de modo a justificar de maneira consistente a pretendida alteração do Sistema Estadual de Florestas – SIEFLOR contida no Decreto n. 65.274/2020, além de manifestação de outros órgãos.
A Lei n. 17.293/2020, aprovada em regime de urgência a pedido do Governo do Estado de São Paulo, foi criticada como inconstitucional pela Dra. Élida Graziane Pinto, Procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, por representar a possibilidade de ampliar a discricionariedade na aplicação dos gastos públicos. Aponta a carência de exigência do ônus de justificar o emprego desses recursos públicos quando não utilizados diretamente no enfrentamento da pandemia da covid-19, revelando a flexibilização nos gastos dos recursos oriundos das medidas dessa lei sem uma justificativa plausível.
Se a própria lei mereceu essa forte crítica, o que se poderá concluir com relação ao decreto n. 65.274/2020, que desarticulou as estruturas administrativas que fundamentam as pesquisas, os programas científicos e o patrimônio científico do Instituto Florestal, com impactos negativos para a continuidade das pesquisas, inclusive daquelas do Instituto de Botânica e do Instituto Geológico?
Marie Madeleine Hutyra de Paula Lima é Advogada, Mestre/Direito Constitucional, membro do Conselho Consultivo do IBAP .
Neste texto, a autora chama a atenção para um dado que mostra a existência de maiores afinidades entre o Governo Federal e o do Estado de São Paulo do que a divergência em torno do tratamento da pandemia permite enxergar: ambos estão de acordo em tratar a proteção ambiental como custo de conformidade e buscam reduzir os ônus sobre as atividades econômicas, passando ao largo do dado de que, quanto menos efetiva for a atuação do Estado na preservação e na fiscalização ambiental, mais rápido se dará o escasseamento dos recursos, isto, só na pior das perspectivas, que é a economicista. Dou os parabéns à Madeleine!