-CARLOS MARÉS-
Os povos indígenas das Américas lutam há quinhentos anos por um único direito, o de existir. Muitos sucumbiram sob a violência colonial. Violência física, sem subterfúgios, desde as degolas do século XVI contadas com horríveis detalhes por Bartolomé de Las Casas até o século XX com o extermínio cínico dos Xetá no oeste do Paraná na década de 60 e as macabras caçadas de orelhas de Xokleng em Santa Catarina relatadas por Sílvio Coelho dos Santos. O século XXI não passará isento à violência como se vê hoje. Sem intervalo, sem vergonha, sem punição. Mas a negação do direito de existir se faz, também, por sofisticados arranjos teóricos e jurídicos, como formais declarações de guerra para matar ou reduzir a escravos povos inteiros. A sofisticação jurídica era não os chamar de escravos, mas aprendizes que um dia deixariam de pensar ou desejar a liberdade de existir coletivamente. Então, quando a liberdade não fosse mais um sonho, podiam ser livres.
A morte tem sido a forma constante de negar o direito, mas mudanças de vida sempre fizeram parte do arranjo e a oferta, com aparência de generosidade, de assimilação à cultura hegemônica acaba tendo o mesmo efeito da declaração de guerra. A assimilação foi política de estado e ganhou nomes suaves como integração, emancipação, desenvolvimento, ou grosseiros como evolução, civilização, superação do atraso, aculturamento, “se assemelhar a nós civilizados”.
Todas essas políticas negaram o singelo direito à existência como grupo, povo, comunidade ou qualquer outra palavra que sirva a tradução para o vernáculo. O que importa, no fundo, é a soberba certeza de que os povos originários têm que deixar de sê-lo porque é muito melhor para eles mesmo viverem na rica e doce sociedade colonial. Rica e doce, dois adjetivos coloniais. Mas os povos têm outro conceito de doçura e riqueza e continuaram insistindo que querem ser povos. Não querem disputar a cotoveladas um insuficiente pedaço de rapadura ou uma pepita inútil. Tal e tão profunda a soberba que a sociedade hegemônica, colonial, capitalista não podia acreditar que os povos queriam continuar a ser povos e os via como transitórios, provisórios, em processo de evoluir de povo a cidadão, abandonada a cultura ancestral, modos, costumes, conhecimentos, gostos e jeito de ser. Alguns sucumbiram, outros resistiram.
A formulação jurídica era assim: os indígenas deveriam se tornar cidadão livre e deixar de pertencer a um povo. Para melhor convencimento, as políticas tinham que ressaltar as vantagens da mudança e isso implicava em tornar menos confortável a vida coletiva. Para isso era importante diminuir seus habitats, desprezar seus conhecimentos, negar as crenças, punir o uso da língua, desacreditar as lideranças espirituais e tradicionais. Humilhar até a vergonha. Por isso, e também para se apropriar das terras férteis, os povos eram transferidos para lugares desconhecidos, com pouca caça e pouca fruta. Isso foi feito à larga no século XX com o testemunho sombrio dos casos Pataxó hã hã hãe, Nambikwara e Krenak, entre muitos outros. Desde 1988, quando essa política mudou, ainda há os que trabalham intensamente para mantê-la.
Um povo, para existir, depende de duas condições, a primeira, subjetiva, é a vontade profunda de continuar juntos, solidários e irmanados, conscientes de sua identidade; a segunda, objetiva, é ter um lugar para exercer a irmandade livremente. A condição subjetiva é fundamental, a consciência da condição, a identificação, as características que os une, a história e a memória dos antepassados, a língua comum, o autorreconhecimento ou autoidentificação. E essa foi a permanente lutas de todos os povos, poder ser o que dizem que são.
A segunda condição é o espaço vital, o território, o lugar onde a cultura se forma e é por ela modificado. É a natureza, o ambiente. É a fonte e o destino de todo conhecimento, da alimentação e da vida. O subjetivo e o objetivo se encontram para a sociedade fluir com seus problemas e suas soluções. Quando o espaço é sonegado, invadido, esbulhado, ameaçado, a luta do povo se concentra para sua manutenção. E nos quatrocentos e cinquenta anos em que os povos foram entendidos como transitórios a principal restrição se fez ao espaço vital, negando a territorialidade. Como a modernidade colonial precisava das terras para colonizar, o esbulho se tornou regra. Destruir as condições objetivas e materiais de existência do povo passou a ser prioridade para o sistema moderno. As remoções se deram para o uso das terras para plantar ou explorar minérios.
No final do século XX, depois de quatrocentos e cinquenta anos de resistência, a modernidade cedeu e aceitou o direito dos povos. Em 1988 a Constituição brasileira reconheceu “aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”. O direito a existir, e completou: “e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. O lugar de sua existência, onde existir. Para que não restassem dúvidas, dispôs que essas terras seriam aquelas habitadas em caráter permanente, utilizadas para suas atividades produtivas, imprescindíveis a seu bem-estar e necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. O direito a existir no lugar que permita a continuidade de sua existência foi consagrado. O quê e o onde. Quem pode ser contra isso? Resposta fácil: quem não se importa com a humanidade e sim com a riqueza material da terra.
Para os indígenas, porém, as riquezas da terra não é o que se extrai e esgota, a madeira, o ouro ou as pedras preciosas. Riqueza não é um conceito monetarizado. Riqueza é a vida, o sagrado, a espiritualidade incompatível com a devastação. E a Constituição reconheceu isso. Mas os contra, os amantes da riqueza simbólica e dourada, mesmo antes de definida a norma constitucional, começaram a armar caminhos para desfazer o estabelecido. Se estava resolvido o que e o onde do direito, restava as obstruções e armadilhas do como garantir e do quando exercer
Rapidamente os interessados nas terras indígenas inventaram um novo procedimento para a demarcação e usaram seu poder para instituir o decreto nº 1.775, de 1996. Era a armadilha do como. Com isso a demarcação passou a ter mais importância que o conceito e foi espalhado, contra a Constituição, que terra não demarcada era terra não indígena. O como anulava o quê e o onde!
Mesmo assim, no disputado Estado brasileiro as demarcações prosseguiram, não com a rapidez desejada, contra todas as dificuldades e forçadas pela pressão permanente e insone dos povos e seus aliados. Foi então que entrou em pauta a velha ideia do quando. Em 1996, na elaboração do decreto de demarcação a ideia foi ensaiada, mas não houve insistência porque se esperava que a burocracia demarcatória inibisse o direito, isto é, se apostou que o como inviabilizasse o direito dos povos. Na segunda década do século XX, porém, a ideia do quando voltou com força e foi chamada pelo sugestivo nome de marco temporal.
A despropositada teoria é de que só tem direito a existir os povos que no 5 de outubro de 1988, promulgação da Constituição, estivessem na posse de sua terra, numa inversão do conceito. Essa tese foi citada na decisão sobre a Terra Indígena Raposa Serra do Sol porque havia um esbulho recente de arrozeiros que à força, como sempre, haviam entrado na terra. Imediatamente, e sem escrúpulos, a Advocacia Geral da União determinou que a ideia fosse aplicada em todas as demarcações. A decisão da AGU nunca foi totalmente aplicada, mas também nunca foi integralmente revogada e causou danos. Membros anti indígenas do Congresso Nacional propuseram projetos de leis para impedir que a União demarcasse terras e, se o fizesse, aplicasse o marco temporal. O como e o quando são armadilhas para estrangular o quê e o onde!
Como se trata de matéria constitucional o STF foi chamado a se pronunciar sobre o marco temporal e a oportunidade surgiu no Recurso Extraordinário sobre parte da Terra Indígena Xokleng que o Estado de Santa Catarina queria desconstituir como terra indígena usando a tese. A questão foi reconhecida como tema de repercussão geral e, afinal, o Supremo decidiria sobre a sufocante armadilha. Depois de muitas idas, vindas e disputas, foi marcado o julgamento para o dia 30 de junho. Mais de 850 pessoas de 50 povos diferentes foram à Brasília acompanhar o desfecho da ação, estavam ansiosos, atentos e esperançosos. A pauta se iniciou com atraso e o tema não foi anunciado, mais um processo e nada, veio o intervalo, uma hora depois reiniciou a sessão e foi anunciado outro tema. No fim da tarde o presidente do STF anuncia, não o julgamento, mas a sua transferência para o mês de agosto, afinal, julho o Judiciário estará em férias. Os indígenas, decepcionados mas não surpresos, prometeram que esperarão em Brasília todo o frio mês de julho, não porque seja mês de férias, mas porque querem acompanhar de perto o voto de cada Ministro e não têm certeza de que haverá tempo de ir para casa e voltar para o incerto julgamento. Até quando?
Carlos Frederico Marés de Souza Filho é professor titular de Direito Socioambiental da PUC-PR e membro do Conselho Consultivo do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública. Foi por duas ocasiões Procurador Geral do Estado do Paraná.
A conclusão a que se chega, reforçada por este excelente artigo - o que, em relação ao Professor Carlos Marés, é evidente pleonasmo -, é que os mesmos que consideram o esbulho um crime de lesa-divindade, quando o esbulhado é indígena, relativizam a gravidade da ofensa. Quando a posse é exteriorização da propriedade privada, é considerada sagrada, quando ela é condição de existência de uma população, é considerada sacrificável, porque, de modo escondido, os que seguem a tese de que os direitos dessas populações nasceria com a Constituição de 1988 estão de acordo com o que dizia, numa de suas páginas mais infelizes, Rudolf von Jhering acerca do massacre dos povos originários da América pelos descendentes de europeus: "o mund…