-LUIZ ROBERTO ALVES-

Enquanto largos setores adultos na mídia, no sistema de justiça, nos meios onde corre dinheiro e lucro e, por desgraça, em inúmeras famílias, cuidam de amainar e justificar o modo atroz como vocifera o senhor Jair Messias Bolsonaro (aquele que não diz nada de mais sobre tudo e nada), milhões de crianças e adolescentes do Brasil apreendem e aprendem pela ciência e pela arte, de modo a justificar que, como sujeitos de cidadania, o poder deve emanar da gente infanto-juvenil e em seu nome ser exercido. A despeito do horror que verte em Brasília.
Interessa pouco, hoje, o discurso de instituições queridas da mídia, como a Todos pela Educação, que têm especial prazer em citar documentos da OCDE/OECD, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a fim de mostrar supostos crescimentos de indicadores nacionais a partir de acertos de provas massivas e unificadas, como se textos de enunciação geopolítica relativamente homogêneos valessem para lugares de enunciados profundamente desiguais, como é o caso do Brasil. Pena que falam muito e se esvaziam rapidamente, perdendo tempo útil para pensar educação como apreensão e aprendizado nos encontros do sujeito histórico com o real.
Acompanhei por uma semana um microcosmo de aprendizado, entre 5 e 18 anos, na feira livre de ciências da SBPC, realizada entre 21 e 27 de julho último na UFMS-Campo Grande. Já acompanhara centenas de narrações de experiências das etapas de ensino fundamental e médio no mandato do Conselho Nacional de Educação (2012-2016), como forma de anunciar que a educação brasileira, fora do eixo massivo de leitura, não está falida. Há vida, desejos e criações no território de 8 milhões de quilômetros.

A SBPC é um espaço científico-estético, pois o modo de apreensão dos fenômenos é de corpo inteiro, isto é, as muitas experiências que se realizam no tempo-relógio da presença dos meninos e meninas pelos vários estandes e praças puxam pela fala das salas de aula e pela informação menos elaborada da escola. Tal confronto faz vibrar um novo conjunto de dúvidas na consciência que estrutura a juventude em formação. Na linguagem científica de Piaget, Vigotsky e Paulo Freire (o homem da figura feia na fala do inominável ministro da educação), o que parece difícil de apreensão pela criança em razão da falta de base científica operacional, recebe apoio sócio-emocional das articulações estéticas que todo menino porta e a conjunção dos fenômenos leva à ad-miração, à curiosidade e ao deslumbramento diante do visto, que começa a ser vivido. Aí penetra o potencial de aprendizado, por movimentos confrontantes, pela comunhão de todos os sentidos do corpo e sua realização na história pessoal e coletiva. Essa leitura pode ser, sim, encarnada na educação de classes sociais urbanas, meninos ribeirinhos, criançada das florestas, grupos quilombolas; enfim, todo o diverso país, pois essa construção científica mostra a experiência de como nós crescemos integralmente e como temos o direito de conhecer e viver o conhecido.
Por isso, de modo algum a escola se basta, como não se bastam os exames e também os indicadores. Carecemos dos confrontos concretos de palavra, gesto e mundo para aprender, o que sucede às apreensões cognitivas e as vibrações do sentimento, a razão da ciência e o construto humano emocional.
As ruas, vielas, estandes, palcos e carretas de expressão científico-estética da SBPC representam o que melhor podemos entender por pedagogia, que é o veículo articulador da educação e da formação das pessoas.
Num país mestiço, no qual a mestiçagem determinou padrões inclusivos de ética, leitura de mundo, construção de falas, distanciamentos geográficos e históricos, emoções e economia, horroriza ver a tendência bárbara (aprendida em situações mais homogêneas) de meter nossas crianças em garrafas, arrolhá-las e lançá-las ao mar do ensaio-e-erro das práticas que não se encarnam na diversidade. Ora, esta última é que nos define, o que o Sr. Jair Messias e seu séquito de bajuladores nem de longe entendem. Se não, por que só ganhamos consideração internacional quando nos apresentamos imbuídos do diverso, seja nas expressões artísticas, seja na fala, seja no fazer científico, enfim naquilo que abre ao curioso olhar do mundo o comum de nossa diversidade e o diverso que engendra sinais do que nos é comum? O Pagador de Promessas, Bacurau, Jogos e disputas que exigem criatividade? Por que nossos governos modernosos foram sempre confrontados pelas artes brasileiras, como Morte e Vida Severina e Grande Sertão: Veredas, lançados no mesmo ano do projeto vistoso do Brasil, cinquenta anos de progresso em cinco, em meados dos anos de 1950? Ora, os governos teriam de aprender pela comunhão de política pensada com fenômenos diversos do real; daí nasceria a política pública real, diversa e aceita pela consciência genérica dos cidadãos e cidadãs.
As ruas, vielas, estandes, palcos e carretas de expressão científico-estética da SBPC representam o que melhor podemos entender por pedagogia, que é o veículo articulador da educação e da formação das pessoas. Não só em Campo Grande como noutros lugares e desde sempre, inclusive nos tempos ditatoriais. Destarte, para o nosso bem, cresce a criançada e a adolescência na busca dessas experiências pedagógicas. Espera-se mesmo que mais jovens sejam sócios da SBPC e membros de associações científicas, estéticas e educacionais, pois o cruzamento de falas e leituras diversas fará muito bem à ciência e à educação.
Pensemos, mais uma vez, num processo pedagógico.
Tome-se um dos textos distribuídos na SBPC-Campo Grande denominado Meio-ambiente: ‘se liga’ na Lei, cidadão! O opúsculo (para fugir da cartilha) foi elaborado no belo e violentado Estado do Pará por pesquisadores mirins do grupo Meio Ambiente e Cidadania, e publicado em 2018, com apoio de várias instituições oficiais, do Tribunal de Justiça ao Museu Goeldi.
Além de apresentar um ótimo painel do que decorre do artigo 225 da Constituição da República e todos os textos regulamentadores que o seguem, o fenômeno pedagógico de relevo foi o confronto dos estudantes com o meio-ambiente de sua cidade, Belém, o convívio com cidadãos, as conversas em torno de questionários especiais sobre o papel da cidadania nos males ambientais e as respostas dos adultos aos adolescentes sobre uma possível nova atitude em seu bairro e cidade. Juntos, adolescentes e adultos conheceram as leis, viram o real nas ruas, questionaram sobre as razões dos males e buscaram soluções. A orientação científica foi boa, pois considerou o olhar, a curiosidade, fez levantamentos, produziu materiais, convidou pessoas por livre vontade e consentimento, juntou gerações e gêneros, sistematizou dados, analisou e compartilhou resultados. O ciclo pedagógico do conhecimento confrontado pelo real e a atitude de corpo inteiro imersa no aprofundamento do conhecimento (ciência e estética) foram considerados, com bons resultados relatados. De fato, todos os fenômenos ambientais estiveram presentes nessa atividade científica/sócio emocional: o lixo, o desmatamento, a poluição sonora, as infrações ao defeso na pesca, o esgoto industrial, o aquecimento e seus resultados, o fedor das cidades, a ignorância da vida em comum, a corrupção geradora de lucros na morte do ambiente etc. Tudo muito comum ao país e a cada cidade, pequena ou grande, crescentemente.
As escolas e outras instituições brasileiras já fizeram e fazem milhões de experiências como essas. Este articulista as conheceu no CNE, pela boca de educadores e educandos de diferentes pontos do país. Viu e ouviu narrativas similares também na comunhão dos jovens em torno dos estandes da SBPC. Ora, nenhum indicador estranho aos modos distintos como essas experiências são feitas poderiam auferir o que de fato se apreende e se aprende nas várias áreas de conhecimento, disciplinas e relações inter e multi disciplinares. Somente indicadores múltiplos (IDEBs, ANAs), imersos nas distinções do país, podem entender e avaliar adequadamente como e o que se aprende, ou como o processo pedagógico agrega valor ao processo formativo dos meninos e meninas presentes no mundo escolar, que sobem a pouco mais de 40 milhões de pessoas, sujeitos de direitos culturais, científicos e educacionais.
Mas cabe perguntar: quem faz educação no Brasil para 40 milhões? Só a escola e instituições esparsas?
O que têm a ver com a pedagogia e o aprendizado da juventude os adultos no interior da família, os operadores do direito e suas decisões com expressão midiática, as falas do presidente, as tramas ministeriais sobre desmatamento e expansão de venenos chamados de “defensivos”, a conversa poderosa dos âncoras de rádio e tv diante do fazer educacional, as mudanças de leis, decretos e portarias a infringir a Constituição de 1988, o jogo de interesses do Congresso Nacional etc, etc?
Nossa história é cruel nesse ponto. Em muitos casos, escola e pouquíssimas outras instituições se encarregam de ser o Sísifo, que sofre a irresponsabilidade do mundo adulto dotado de poder diante do fazer pedagógico. E parte dele ainda é capaz de encontrar no rigoroso, sério e doce Paulo Freire culpas pelo que essa sociedade faz diuturnamente contra a educação, por meio de mãos, falas e pensamentos. Carece repetir: este pais ainda não merece Paulo Freire. Muito menos Jair Messias e Weintraub.
Iremos mal enquanto for assim. Pedagogia é tarefa histórica do povo de um país. Ou pensam que foi diferente na Finlândia? O que se lê sobre aquela terra há 80 anos?
Mas os processos pedagógicos que se movem na consciência das novas gerações e vibram seus corações já sinalizam que talvez os dilemas poderão ser equivalentes às nossas forças. Se sim, os novos aprendizados e exemplos sociais nos levarão ao futuro pensado pela legião de educadores e educadoras que nos precederam e nos inspiraram. Que viva, pois, a diversidade do apreender e do aprender na prática da juventude. Talvez os buracos negros dos céus revelem outras formas de gravidade não previstas por Einstein. Ele não ficaria infeliz ao constatar e aprender. Seu coração era grande.
Luiz Roberto Alves escreve todo dia 06 de cada mês na Revista PUB, é Professor e Pesquisador da ECA-USP, aposentado.
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