- Ricardo Antonio Lucas Camargo -
A busca de uma inspiração, nesses tempos de “distanciamento social”, não tem sido exatamente uma jornada das mais tranquilas, tantas são as informações que nos bombardeiam.
Entretanto, o tema das “carreatas pela volta ao trabalho” tem ocupado minhas atenções entre a releitura de Albert Camus – como sobre tantas outras pessoas, A peste exerceu, pelo contexto atual, uma atração inexorável -, a confecção de Power Points para as atividades à distância na Universidade (ainda hei de aprender a utilizá-los, sou o típico “cuspe-e-giz” em pleno século XXI) e o atendimento dos processos eletrônicos.
O lançamento do dilema “economia/saúde”, com lastro na premissa de que seria um sintoma de alinhamento com o comunismo internacional para sabotar a economia de mercado e o abastecimento da população a defesa da manutenção das pessoas que não estivessem doentes em casa, se não houvesse tantos indivíduos fanatizados para acreditarem nisto, normalmente, não passaria de uma mera bravata, e obrigou a muitos dos que têm a responsabilidade pelo que dizem perante o público a refutá-lo de modo cabal, a começar pela obviedade, não tão óbvia, de que não existe economia sem gente viva para praticar os atos econômicos, passando, ainda, pelo dado de que o “confinamento”, embora não tenha o condão de impedir o alastramento do vírus – basta, aqui, lembrar que, no Brasil, existem pessoas que, sequer, têm um lugar a que se recolherem, os denominados “moradores de rua”, os “homeless” tão conhecidos nos grandes centros dos EUA -, teria a virtude de retardar a respectiva disseminação, já que as outras doenças não tiraram férias pelo aparecimento desta e os leitos não têm como se multiplicar à medida em que os casos vão chegando aos hospitais, em especial em espaços restritos como as unidades de tratamento intensivo, que o fato de uma pessoa não adoecer não conduz a que ela necessariamente não esteja contaminada.
O grande questionamento que essas pessoas se recusam a enfrentar, embora esteja efetivamente posto para todos, para compreender as limitações do sistema de saúde:
“Qual é a velocidade com que você consegue responder a um estímulo, fácil ou difícil? Quando venha uma média de uns dez estímulos por dia, você consegue respondê-los de imediato, a todos, na mesma rapidez, ou responde mais lentamente?”
E ele está posto porque o isolamento tem mais que ver com a capacidade de responder aos quantos vão aportar aos hospitais e demais estabelecimentos de saúde do que propriamente com impedir o contágio.
Os leitos e outros equipamentos não se multiplicam magicamente, nem os profissionais da saúde têm a multiplicidade de braços e pernas de Shivah (que, por sinal, não é um deus de conservação, mas de destruição), ou a ubiquidade como Alberich ao colocar na cabeça o Tarnhelm, não são insuscetíveis de fadiga como Anteu nem são invulneráveis, como os berserkers vikings achavam que eram.
A publicidade realizada pelo Chefe do Executivo, inclusive com um filmete, custeado com recursos públicos, a partir da contratação realizada pelo órgão encarregado dessa atividade, dificilmente enquadrável nas finalidades determinadas pelo § 1º do artigo 37 da Constituição brasileira (vide Reinaldo Azevedo, acessado em 27 mar 2020, e Guilherme Purvin), foi suficiente, para tais senhorinhos rechaçarem como sabotagem e covardia – expressões usadas pelo Chefe do Executivo federal (vide Ricardo Kotscho, acessado em 25 mar 2020, e UOL, acessado em 2 abr 2020) – quaisquer refutações ao dever de as pessoas irem trabalhar, desprezando a “gripezita”.
Para tentarem descaracterizar, ainda, o risco, essas pessoas recordam que estão a trabalhar fora de casa profissionais da saúde, garis, policiais, bombeiros, e dizem que, se existisse o perigo, esses trabalhadores seriam suicidas ou loucos.
Alguém acha, sinceramente, que não existem profissões a que o risco é inerente? E, pelo fato de ser inerente a elas, deixa de ser risco? Pelo fato de existirem bombeiros, todo e qualquer indivíduo teria o direito de achar que o risco de ser queimado num prédio em chamas não existe?
Antes que venham dizer que isso é teoria modernosa, ofensiva à natureza das coisas: o Código Penal vigente no Brasil é expresso em distinguir as profissões a que é inerente o risco, ao dizer que, quem estiver no exercício destas, não pode invocar a excludente de ilicitude conhecida como “estado de necessidade”.
Referir o dado de fato de que o Prefeito de Milão se arrependeu de haver subestimado o potencial do contágio, com a sua campanha “Milano non si ferma” (vide Luiz Henrique Campos, acessado em 27 mar 2020)?
Ficou famoso o deboche do Presidente da República Federativa do Brasil com a situação italiana (vide Globalist, acessado em 18 mar 2020), e muitos dos seus seguidores vibraram com a grosseria, que, ademais, estava francamente baseada numa inverdade, já que se têm verificado mortes de jovens, inclusive sem histórico de doenças graves.
Jovem economista paquistanês, filho de médicos militares, Rehman Shukr, de 26 anos, trabalhando junto ao Fundo Monetário Internacional, que sustentou que priorizar o combate ao contágio em detrimento do mercado seria agir desastrosamente informado pela emoção, foi morto em 24 de março de 2020, nos EUA, pela "gripezinha", talvez por pura "histeria" (vide The News International, acessado em 26 mar 2020).
"A peste de Ashdod", de Nicolau Poussin.
Ao pronunciamento do economista da Escola de Chicago Luigi Zingales, considerado um dos mais respeitáveis pensadores liberais da atualidade (vide Mariana Sanches, acessado em 29 mar 2020), no sentido de que “a crise de covid-19 exige uma resposta dos governos à altura de um esforço de guerra e que deveriam fazer todo possível para manter o maior número possível de seus cidadãos em casa”, seguiu-se, de um bolsonarista convicto, numa das redes sociais de que participo, o questionamento acerca de quantos empregos o economista em questão teria criado.
Quer dizer: mesmo a razoabilidade do discurso de uma fonte respeitável para o pensamento conservador é questionada em nome do dogma segundo o qual o trabalhador não passa de uma ferramenta que pode ser trocada quando não for mais necessária; a proposição genérica do pensador liberal Immanuel Kant segundo a qual o ser humano não pode nunca ser considerado um simples meio, sempre um fim em si mesmo não se aplicaria nem a quem não fosse empresário nem a quem não fosse rentista.
Para esses, o próprio Kant seria um comunista perigoso, até porque, mesmo o fato de haver falecido em 1804, nada menos que quatorze anos antes do nascimento de Marx, seria um mero detalhe, pois eles já mostraram acreditar na existência da máquina do tempo em várias oportunidades.
Nem mesmo as falas do Chefe da Igreja Católica (vide Bianca Fraccalvieri, acessado em 25 mar 2020) foram suficientes para arrefecerem o ânimo destes que, do conforto de seus SUV, saíram em carreatas para exigirem que as pessoas que, normalmente, moram longe de seus lugares de trabalho viessem a enfrentar os transportes coletivos lotados, cujos passageiros, caso estejam contaminados, irão, certamente, contagiar os que porventura não estejam: afinal, quantas vezes não tive eu, não católico, de defender o Papa de acusações de “comunismo” feitas por autoproclamados bons católicos?
“E então, num êxtase santo, escuto a Terra e os céus”, como disse Castro Alves no poema O vidente: deparo-me, no próprio sítio do Fundo Monetário Internacional, com matéria preconizando medidas intervencionistas na economia com subsidio direto às famílias, postergação do pagamento do serviço da dívida e a destinação de mais recursos financeiros para as ações de saúde pública (vide Kristalina Georgieva e Tedros Adhanom Ghebreyesus, acessado em 3 abr 2020).
Como nos tempos atuais importa menos a mensagem em si do que a boca que a pronuncia, confesso ter ficado aliviado diante deste pronunciamento: normalmente, dá-se credibilidade à proposição que alguém sustenta em contrariedade àquela que, em linha de princípio, lhe seria mais vantajosa.
Graças a Deus, quem está a falar é o FMI, organização internacional digna de respeito para aqueles que acham perigosa e pecaminosa demagogia considerar que o mercado, embora relevante, não é o valor supremo nem a medida de todas as coisas!
Não é nenhuma "ONG suspeita", nenhum sindicato de trabalhadores, nenhuma organização internacional que ache que o mercado pode ser preterido em nome de outros valores. É o FMI. Aleluia! Hosana nas alturas!
Isto teria sensibilizado a estes que, até antes do “confinamento geral”, entendiam que o empresário é que criava a riqueza nacional, que o empregado deveria dar graças a Deus por lhe ser concedida a oportunidade de ouro para mostrar que sua existência poderia ser útil às pessoas de bem, e, de repente, viram que precisavam do trabalhador para que a respectiva empresa realizasse as operações no mercado? Não.
As atitudes variaram: ou simplesmente ignoraram, ou simplesmente irrogaram a condição de Fake News. Ainda não chegaram ao ponto de lançar ao FMI os adjetivos com que foram mimoseadas tanto a Organização das Nações Unidas quanto a Organização Mundial da Saúde, isto é, “comunista” e “ignorante em economia”.
Mas esses respeitáveis lutadores da liberdade que saem de olhos injetados, a cantar “Mi-to! Mi-to! O Brasil não pode parar!”, sem abrirem mão da máscara a despeito de dizerem que o vírus é uma mentira ou, então, que é uma gripezita de nada que só os frouxos temem, não tardarão a empregá-los.
Claro, o texto veiculado no sítio do FMI nem de longe chegou ao constatado, com plena lucidez, pelo Professor Carlos Frederico Marés de Souza Filho, isto é, “a acumulação compulsiva de riquezas, neste inútil e materialista conceito, leva as sociedades a destruir a verdadeira riqueza que é a abundância da natureza provedora das necessidades” (vide Carlos Frederico Marés de Souza Filho , acessado em 1 abr 2020).
Mas pelo simples fato de conter algumas expressões fatídicas – “auxílio direto às famílias e empresas mais afetadas, por meio de transferências monetárias, subsídios salariais e redução da jornada de trabalho, reforço do seguro-desemprego e das redes de proteção social”, “o congelamento do serviço da dívida dos países mais pobres junto a credores bilaterais oficiais” -, expressões que vão exatamente na contramão da proposição tão candidamente aceita como verdade, de que “o dinheiro é o passaporte da honra”, vai fazê-los lutar contra os apóstatas que deturparam a pureza do culto.
Não há como deixar de fazer um paralelo entre a carreata dos que estão a exigir que o povo se acotovele nos transportes coletivos, correndo o risco real de uma entrecontaminação e de uma difusão do COVID19, insuflado pelo Chefe do Executivo Federal, e a Revolta da Vacina, porque ambas inspiradas no fervor anti-científico.
E o que restará? Talvez cantar, como o companheiro de crucifixão do Brian, “olhe sempre p’ro lado bom da vida”...
Ricardo Antonio Lucas Camargo é professor nos cursos de Graduação e Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Professor Visitante da Università degli Studi di Firenze – ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP.
Com seu peculiar estilo, Ricardo Camargo, expõe as incongruências das declarações do chefe do governo federal, no sentido de que o "Brasil não pode parar", à exceção dos velhinhos que permaneceriam isolados, com a decisão dos governos dos países, -- onde a COVID vinha vitimando milhares de pessoas, -- pelo isolamento total das pessoas e paralisação da economia antes priorizada, e também com a orientação de representante do FMI e com a recomendação da OMS. Como efeito, as carreatas dos seguidores fanatizados para convencer a população a retornar a suas atividades para salvar a economia, em detrimento dos riscos para a saúde pública. Parabéns !!