top of page

O Feminista, o Vanguardista e o Socialista

-VALQUÍRIA FERRÃO ANTUNES-



Domínio público - Wikipedia



Desde a infância, ouço música popular brasileira. No berço, minha mãe cantava Chico Buarque para eu dormir:


Tutu marambá, não venhas mais cá

Que a mãe da criança te manda matar


Ou então:


Dorm'inha pequena

não vale a pena despertar...


Eu tinha seis anos de idade. Vovó, que não se cansava de contar as lembranças de um certo festival de rock, ocorrido na sua adolescência numa fazenda no interior de São Paulo ("Festival de Iaganga", 1974), colocava um CD do Caetano, acendia um baseado e cantava para mim:


Gosto muito de te ver, Leãozinho

Caminhando sob o sol...


Assim, nascida numa época em que as rádios e o Faustão tocavam Seu guarda eu não sou vagabundo, Segura o Tchan ou Uma tal Suruba, tive o privilégio de ser educada numa família com um gosto musical, digamos, mais requintado.


Numa das tardes de sábado na casa de vovó, em Itaobi (MG), lembro-me de uma discussão entre meus pais e meus avós maternos.


Papai dizia que Caetano Veloso era alienado, vovô que Chico Buarque era estilisticamente um reacionário.


Mamãe, por sua vez, soltava um comentário bastante comum àquela época: Chico conhece a alma feminina.


Vovó contestava: Ele só cria estereótipos, Caetano sim, rompeu com os padrões machistas da época da ditadura, vestido de Carmen Miranda.


Isso era só nas primeiras horas da tarde, depois do almoço. Mais para o fim do dia, os velhos subiam o morrinho ao fundo do quintal, acendiam um back e abriam umas cervejas e entravam em acordo, ao som dos Paralamas: Luís Inácio falou, Luís Inácio avisou / São trezentos picaretas com anel de doutor

Enquanto isso, eu, minha irmã Valéria e meus amigos Fred, Aguirre, Mirna, Ruth e Soraya brincávamos na piscina e discutíamos com muita paixão as canções preferidas de minha família.


— Chico Buarque conhece os sentimentos das mulheres: Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de antenas, quando fustigadas não choram, se ajoelham, pedem, imploram mais duras penas! As mulheres realmente apaixonadas não se importam com isso!


— Seu burro! Você não entendeu nada!


— O que eu não entendi?


— Não é "antenas", é Atenas, capital da Grécia! É na Grécia que as mulheres gostam de apanhar!


— Eu gosto mesmo é do Caetano Veloso! Ele canta aquela homenagem a São Paulo: Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto / Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto / É que Narciso acha feio o que não é espelho.


— É a música Samba, né? Minha mãe diz que é um hino de amor a São Paulo.


— Mas se é de amor, por que ele diz que a cidade é de mau gosto e que é feia?


— Ele deve estar falando de Osasco. Depois é que ele vai pra São Paulo.


— Ah, entendi. Luís Inácio falou, Luís Inácio avisou...


Se não estou enganada, isso tudo acontecia nos tempos do primeiro mandato do presidente Lula. Lula era o consenso familiar: era o cara, o grande líder socialista do Brasil. E nós, nascidas no segundo mandato do Fernando Henrique, ficávamos sonhando em como seria o Brasil quando chegássemos aos dezoito anos, quando estivéssemos na faculdade. Nosso país teria erradicado totalmente a miséria, haveria saneamento básico em todas as cidades do país, os povos indígenas seriam tratados com a dignidade devida em seus territórios demarcados, surgiriam novas gerações de grandes músicos, tão grandes ou melhores do que Caetano e Chico, assim como novas lideranças políticas, num Mercosul ampliado.


Embora minha opinião a respeito do feminismo de Chico Buarque e do vanguardismo de Caetano Veloso seja ligeiramente diferente do de meus pais e avós e considere Lula uma pesada âncora que imobiliza há décadas o avanço da esquerda do Brasil, sou forçada a admitir que os três nomes citados fizeram história em nosso país.


Não há como criticar de machista e pessimamente escrito o livrinho "Bambino a Roma" — nenhum compositor e escritor consegue manter constante a qualidade de sua produção.


Também não temos direito de reclamar da guinada neopentecostal na música de Caetano — com o envelhecimento e a perspectiva da morte, é natural que ele queira redimir-se dos pecados veniais cometidos ao longo da vida. Caetano nunca foi vanguarda. Vanguarda é Luciano Berio e Stockhausen. Ou, para ficarmos em terras tupiniquins, é o músico paulistano Flo Menezes, maior nome da música no Brasil nos últimos 40 anos.


Enfim, não podemos questionar a sólida aliança de Lula com o centrão — afinal, vivemos hoje sob uma ditadura parlamentar de direita e ultra-direita. Lula sempre foi um conciliador. Sempre foi avesso a confrontos e revoluções. Para ele, é possível passar a imagem de líder ambientalista no mundo e ao mesmo tempo incentivar a prospecção de petróleo na Amazônia: ninguém perceberá que são projetos inconciliáveis, assim como o é o de redução da desigualidade social e simultânea satisfação dos banqueiros. Felizmente, Janja ao menos o convenceu que "um tapinha dói, sim senhor". Não fosse isso, ele estaria também sustentando que não é preciso deixar de ser machista para ser também feminista. Ainda assim, convenhamos, ressucitar Martha Suplicy, que votou pelo impeachment de Dilma e que trabalhava até há pouco para Ricardo Nunes está sendo difícil de engolir. Mas foi útil para a manutenção da ordem econômica neoliberal: PSOL vinha crescendo, ofuscava o PT com um projeto realmente de esquerda. Agora está acabado e, nesse vácuo, começa a surgir a Unidade Popular - UP.


Lula merece uma estátua: esteve à frente da criação de um partido dos trabalhadores brasileiros, democratizou o acesso às universidades para as pessoas mais pobres e, depois do golpe parlamentar-judiciário e de sua prisão, voltou a cena para afastar por quatro anos o horror da extrema direita negacionista e homofóbica em Brasília. Não é pouco! No entanto, o melhor que faria agora seria seguir os passos de meus avós e ir morar num sitiozinho em Itaobi ou Milho Verde. Digo isso de coração, sem medo de ser considerada etarista: apenas acho que ele está muito aquém do que seu eleitorado esperava. Não é um Gustavo Petro (para citar um outro presidente sul-americano), não tem o discernimento de Noam Chomsky ou de Roger Waters (para citar dois nomes ilustres de sua geração). É, apenas, um mediador e um desenvolvimentista equilibrando-se para não cair novamente neste país totalmente fascistizado que só voltará a equilibrar-se quando a esquerda reconhecer a necessidade inafastável de polarizar e confrontar o extremismo, em lugar de dar sucessivos passos em direção à centro-direita, fortalecendo o discurso bolsonarista e o surgimento de figuras como Pablo Marçal.


Enquanto isso, em São Paulo, esperamos que Tábata, uma nova liderança de centro junto ao PSB e que já declarou seu voto para Boulos tenha a mesma força do seu namorado, bisneto de Miguel Arraes, sem precisar dos truques de Samantha ou da Endora. A participação dela será imprescindível para fazer com que o eleitorado psicopata que optou pelo terceiro mais votado não vá às urnas obedecer às ordens de Bolsonaro.


Obs: Meus pais garantem que Boulos não tem cara de quem um dia fumou um baseado, é muito certinho. Meus avós, por sua vez, dizem que FHC chegou a acender um, mas que teve medo e não tragou.

 

Valquíria Ferrão Antunes, 26 anos, é articulista eventual da Revista PUB Diálogos Interdisciplinares e jornalista free-lancer.





687 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page