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Dimensões Perdidas do Direito Tributário

Atualizado: 5 de dez. de 2023

-ALFREDO PORTINARI MARANCA-


Neste início de século, o Brasil sofre mais do que uma crise do sistema tributário, sofre uma crise do Direito Tributário. Há décadas, Alfredo Augusto Becker[i], em sua histórica luta pelo resguardo da racionalidade tributária, disse que o maior equívoco no Direito Tributário é a contaminação entre princípios e conceitos jurídicos e princípios e conceitos pré-jurídicos, que o mestre enumera em econômicos, financeiros, políticos e sociais. Os tributaristas desde então abraçaram com paixão essa diretriz, interpretando-a de forma a integrar a filosofia jurídica do Direito Tributário. Esta restrição foi assimilada como uma identidade do tributarista, que define o que ele é e o que ele não é, o que está e o que não está no mundo do tributarista. Aplicou-se aqui o axioma básico do Tractatus Logico Filosófico de Wittgenstein[ii]: “o mundo é o que vem ao caso” e sua contrapartida lógica mais pragmática e temerária, não de nenhum filósofo, mas de leitores apressados: “o que não vem ao caso, não está no mundo.”


Ao longo do tempo, essa posição filosófica louvável seguiu a triste sina de todas as artes: a explosão de talento dos primeiros desbravadores se converte em regras clássicas assimiláveis por todos e por fim degenera em um medíocre maneirismo. Como a técnica produz lucro para o Estado e tributaristas, para não falar dos meliantes que enriquecem com o caos, a evolução se dá nos mesmos termos, mais produção, mais capital com menos trabalho, menos talento e menos inspiração.


Entenderam que deve ser ignorado não apenas o conhecimento econômico, mas o próprio Direito Econômico, até mesmo em sua parte constitucional. Não apenas as finanças, mas o próprio Direito Financeiro, que está registrado na Constituição como o verdadeiro pacto federativo brasileiro. Entre os princípios políticos esquecidos, os objetivos e fundamentos da República Federativa do Brasil. Entre os objetivos sociais, desapareceu até mesmo a esperança de previdência e a alento básico da assistência social, na deterioração conceitual da ideia de contribuição. Na Previdência, até o passado se tornou relativo e inseguro, relativizando o que foi pago à guisa de aposentadoria.

Deve logo ser reconhecido que o Direito Tributário não é senão um ramo do Direito Econômico, que rege toda a ordem econômica brasileira, na forma do art. 170 da CF88. A valorização do trabalho humano não é apenas um aspecto relevante para algumas contribuições, é um componente fundamental da constitucionalidade de todos os tributos. Assim também, a desburocratização tributária tem seu fundamento na diretriz da livre iniciativa da ordem econômica que não deve ser apenas daqueles poucos que podem pagar uma equipe tributária para desvendar os mistérios do que se espera que o contribuinte faça em relação aos tributos. Assim também não devem ser estranhos à preocupação tributária a defesa do consumidor e do meio ambiente, sabendo-se o quanto se pode fazer para regulamentar relações adequadas e promover os valores indicados pela ordem econômica.


Em termos de Direito Financeiro, não é razoável que o tributarista ignore a necessidade de receita dos entes da federação, que não se preocupe com o drama dos Estados e Municípios para cumprir toda a interminável lista de responsabilidades que lhes são colocadas nas costas pela Constituição. Esse é outro “problema atual” que se tenta resolver desde o Século XIX. Discursava assim, em 16 de maio de 1832, segundo Miriam Dolhnikoff[iii], o Senador Rebouças, o velho, pai de André Rebouças:


"A reforma, meus senhores, que a nação reclama e que as províncias seriamente exigem, importa que essas possam decidir sobre a criação, distribuição e aplicação de suas rendas, que suas resoluções se tornem efetivas desde logo, segundo o bem público e as circunstâncias o exigirem."


É sim, responsabilidade do tributarista atentar para esses problemas e cuidar de suas soluções e não restringir o Direito Tributário a um joguete infértil de palavras sem reflexo para a humanidade. Não pode, principalmente, o Estado, seguir insensível fustigando o contribuinte, dizendo como no antigo dito popular “pouco se me dá que o onagro claudique, o que me apraz é acicatá-lo”, ou seja, pouco me importa se o burro é manco, quero é sentar-lhe as esporas.


Nenhuma ignorância, entretanto, é mais perigosa do que a da história, que nos faz repetir seus erros. Se os tributaristas brasileiros não tivessem esquecido a história econômica, saberiam que a presunção irrealista de capacidade tributária existente hoje na substituição tributária não é senão uma repetição tardia da tributação da mineração de ouro do século XVIII, quando a Coroa portuguesa teve de romper a idílica anarquia econômica liberal em que vivia a colônia, tributada apenas em suas exportações, para impedir o descaminho de ouro, tributando a própria produção. Com um Estado tosco e mal formado, em uma informalidade completa, impossível era essa tributação, mesmo que fosse módica, quanto mais no montante de um quinto como desejado pela Coroa, como nos relata Caio Prado Júnior[iv]. Como a informalidade não permitia verificar o que acontecia de fato, a Corte simplesmente “presumia” uma produção anual de 15 toneladas de ouro. Se fosse alegado que não existia ouro nessa quantidade, chamava-se o nosso caboclo de mentiroso. A solução para a mentira era a derrama, a força armada saqueava casas em qualquer hora do dia e da noite para, se não arrecadasse o quinto do ouro, ao menos arrecadasse o quinto dos infernos, o que levou à insurreição mineira de Tiradentes.


Também a privatização do fisco, evitando os riscos e custos de uma cobrança direta, é um problema atual mas não é novo: a Coroa criou rendeiros de impostos, intermediários que compravam o direito de cobrar tributos pela Coroa. Uma vez comprado o direito de arrecadar, os rendeiros podiam e deviam cobrar tanto quanto conseguissem, por todos os meios ao seu alcance. Se os impostos já eram excessivos, comenta Rocha Pombo[v], imagine-se o que seriam exagerados pela ganância dos rendeiros.

A síntese de todas as dimensões do direito tributário está em se perceber que a relação tributária não é bilateral, não se restringe a duas partes. Rousseau[vi] frisa que a primeira e mais importante máxima de um governo legítimo é ter por objeto o bem do povo, submeter-se à vontade geral, não das partes. Assevera Rousseau que a força das leis depende ainda mais da sua própria sabedoria do que da severidade dos ministros e que a vontade pública tenha o maior peso quando se ditam as leis.


A segunda máxima de um governo legítimo para Rousseau, não menos importante que a primeira, é exatamente o caráter público das relações bilaterais com o Estado. Quer que a vontade geral prevaleça? Faça com que todas as vontades particulares se submetam a ela, pois a virtude não é senão submeter a vontade particular à vontade geral. Assim, faites regner la vertu, faça reinar a virtude.

Para Rousseu, a primeira coisa que se deve fazer, ao estabelecer as leis que instituem uma República, é encontrar fundos suficientes para custear os serviços públicos e outras despesas públicas. Esses fundos, em uma República, devem ser aceitos por uma assembleia do povo, que decidirá a sua destinação. Essa formalidade faz com que os fundos se tornem sagrados, alterando a sua natureza definitivamente. O desvio desses fundos para fins não designados é um grave delito.

Os problemas e soluções estão na história. As dimensões jurídicas, econômicas e humanas, amputadas do Direito Tributário, retiram dele mais do que sua essência, retiram o seu caráter humano. Cabe a todos os tributaristas em todas as oportunidades de lecionar ou doutrinar, criar as bases para o fundamento humano da disciplina.


[i] BECKER, Alfredo Augusto Becker. Teoria Geral do Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1963. p. 39-41. [ii] WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratactus Logico-Philosophicus, São Paulo: Edusp. 1994, p. 134 (Die Welt ist alles, was der Fall ist.) [iii] DOLHNIKOFF, Miriam. O Pacto Imperial. São Paulo: Globo. 2005. p. 96. [iv] PRADO JÚNIOR, Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense. 1976. p. 59. [v] ROCHA POMBO. História do Brasil, Vol. II. São Paulo: W. M. Jackson Inc. 1951. p. 164. [vi] ROUSSEAU, Jean-Jaques. Oevres Complèes, Vol III. Genebra: Galiimard. 1964. p. 250.

 

Alfredo Portinari Maranca é Agente Fiscal de Rendas e Presidente do SINAFRESP. Associado regular do IBAP.



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2 Comments


Ricardo Antônio Lucas Camargo
Ricardo Antônio Lucas Camargo
Jan 02, 2021

A questão da tributação tem sido reduzida, mormente em países cujo povo tem pouca cultura e acredita em soluções que sejam, ao mesmo tempo, certeiras, rápidas e duradouras (ou seja, soluções mágicas), a uma perda, em prol do Estado, de uma parte do patrimônio do contribuinte. Cá no Brasil, então, mesmo quando o patrimônio do contribuinte é considerável, qualquer dispêndio que não seja para compra de outros bens costuma ser visto como uma verdadeira amputação de membro. A grita contra os tributos - que, no entanto, até se explica, porque ninguém, absolutamente ninguém, gosta de figurar na condição de ser obrigado a pagar quaisquer dívidas - muitas vezes passa ao largo do dado de que esse verdadeiro desconforto, disciplinado po…

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Elizabeth Harkot De LaTaille
Elizabeth Harkot De LaTaille
Dec 31, 2020

Aprendi muito com as colocações e reflexões de Maranca sobre as relações entre o Direito (Tributário), a sociedade e a história.

Parabéns pelo texto forte e esclarecedor!

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