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Pétalas em Prosa

Atualizado: 22 de abr.

PATRÍCIA BIANCHI

 


Sob uma perspectiva de gênero, um recorte maior da realidade apresenta elementos do que se poderia chamar de evolução dos direitos femininos, ou de uma maior equidade entre os gêneros. Mas esse processo apresenta um movimento pendular entre avanços e retrocessos, numa cadência onde algumas mulheres assumem o protagonismo. No mundo real, os exemplos seriam múltiplos, mas, viajando um pouco para o mundo dos quadrinhos, poder-se-ia citar a figura da Mulher-Maravilha (Wonder Woman) da DC Comics.

A personagem — habitante da ilha de Themyscira, normalmente descrita como semelhante às antigas sociedades Gregas, onde as mulheres ornavam-se com túnicas, sandálias e elmos — encarna uma guerreira de origem greco-romana, que possui um alter ego de Princesa Diana. Reza a lenda que aquela ilha era habitada por almas de mulheres assassinadas por homens, que ressuscitadas, teriam recebido alguns atributos dos deuses que as criaram, como força, conhecimento, beleza e amor.

Aqui na Terra, Wonder Woman foi criada pelo psicólogo norte-americano William Marston, numa época em que o mundo dos quadrinhos era habitado apenas por figuras masculinas. Filha da Rainha Hipólita, Diana foi mandada como Mulher-Maravilha ao “mundo dos homens” para propagar a paz, levando com ela um laço da verdade e dois braceletes. Ela já foi descrita ao longo de sua história como uma mulher independente; que não provém da derivação (spin-off) de um super-herói masculino, e que não foi criada para ser o par romântico de nenhum super-herói.  

Marston afirmou à revista New Yorker que “a Mulher Maravilha é a propaganda psicológica para o novo tipo de mulher que deve governar o mundo.” Nesse contexto, a Mulher-Maravilha teria sido concebida para criar um padrão de uma feminilidade forte, livre e corajosa; em contraposição à ideia, que paira aqui e ali, de que as mulheres são inferiores aos homens. A ideia foi que ela servisse de inspiração para as meninas, conferindo-lhes autoconfiança. Contudo, toda essa construção não é isenta de críticas, nem mesmo de representantes do movimento feminista. Nesse sentido, a jornalista norte-americana Gloria Steinem, por exemplo, teria dito que a Mulher-Maravilha não passaria de um James Bond entediante, só que sem a liberdade sexual do agente inglês.

Assim como as diferenças entre James Bond e Diana, sabemos que as desigualdades entre mulheres e homens estampam relatórios e trabalhos no que se refere às pesquisas relacionadas a gênero. Paul Singer, em artigo sobre a contribuição da economia solidária para a autonomia das mulheres, destacou que “a subordinação das mulheres aos homens decorre de preconceitos seculares contra a capacidade e a inteligência das mulheres em comparação com os homens.” Singer explica que tradições, quase sempre alicerçadas em normas religiosas, atribuem às mulheres tarefas domésticas, e aos homens, supostamente mais aptos, restaria a função de prover a subsistência da família. Nesse sistema, a mulher é tida como naturalmente dependente do homem ao qual deve obediência, devoção e lealdade. E o autor explica que “estas noções são internalizadas por homens e mulheres, que as apreendem desde cedo observando os comportamentos dos pais e outros membros da família.”

Ainda hoje homens e mulheres não formam grupos homogêneos e, para melhor entender suas dinâmicas, é importante analisar a interação ou intersecção com outras dimensões, grupos e categorias. Características como idade, religião, escolaridade, raça/etnia, orientação sexual, migração e status de cidadania, assim como viver em áreas urbanas ou rurais, são interseções que influenciam a análise de gênero, e devem ser contrapostas sempre que se for analisar situações relativas ao tema. Na área ambiental, essas desigualdades encontram-se nas diferenças de funções e responsabilidades atribuídas e desenvolvidas pelos dois sexos; há disparidades no acesso e no controle sobre os recursos ambientais; além das diferenças de oportunidades de tomada de decisão nesse âmbito.

Segundo o relatório produzido pela ONU Mulheres e pelo Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais das Nações Unidas (DESA), o “Gender Snapshot 2023”, mais de 340 milhões de mulheres e meninas - ou 8% da população feminina mundial - viverão em situação de pobreza extrema até 2030. No pior dos cenários com dados de gênero e de clima cruzados, em 2050, a emergência climática pode levar mais 158 milhões de mulheres e moças à situação de pobreza, número que supera em 16 milhões de homens e rapazes. Foram reportados 380 milhões de mulheres e meninas vivendo hoje com escassez crítica de água. Aquele relatório ainda expõe a forte tendência ao não cumprimento das metas climáticas estabelecidas nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável – ODS da ONU.

Mas qual o estado da arte da questão de gênero no Brasil? Quais os cenários que as mulheres dispõem para a sua emancipação na atualidade? Nada favorável, nada promissor. Por aqui abundam as notícias de lesões corporais, danos psicológicos, estupros ou assédios. E o país vem sendo apontado como um bom lugar para comportamentos misóginos e criminosos, isso muito em razão de alguns jogadores de futebol brasileiros que cometem crimes no exterior, são condenados lá fora e fogem para o Brasil. Ufa! Aqui é mais tranqüilo. A impressão é que se trata de uma pecha cultural, que tende a avalizar crimes e hábitos que envolvam gênero, atos que se multiplicam e são coroados pela impunidade, sobretudo (mas não exclusivamente) se são perpetrados por homens brancos e detentores de algum status, dinheiro ou poder.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicação do IPEA, a taxa de homicídios para mulheres negras cresceu no país 0,5% entre 2020 e 2021. De acordo com a edição de 2023 do Atlas da Violência, em 2021, 2.601 mulheres negras foram vítimas de homicídio no Brasil. Trata-se de um índice 79% superior ao das mulheres não negras. Em março de 2023 o IPEA publicou que o Brasil tem cerca de 822 mil casos de estupro a cada ano, dois por minuto, onde a grande maioria das vítimas são mulheres.

Segundo dados recentes do IBGE, mulheres trabalham em média 7,5 horas a mais que os homens por semana; que, em grande parte, a mulher que exerce atividade remunerada não a exime das responsabilidades pelas atividades domésticas, assumindo, dessa forma, a chamada dupla jornada; que os homens brancos continuam com os melhores rendimentos, seguidos de mulheres brancas, homens negros e, por fim, mulheres negras; e que, no que concerne à participação das mulheres nos cargos gerenciais, mais de 60% desses cargos são ocupados por homens. Essa desigualdade é ainda mais elevada entre os 20% dos trabalhadores com maiores salários, onde as mulheres ocupam apenas 22% dos cargos.

E no reforço ao movimento da misoginia nacional, cabe mencionar que, em terra brasilis, um ex Presidente da República já se manifestou publicamente dizendo que “o Brasil não pode ser o país do turismo gay. Quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade. Agora, não pode ficar conhecido como paraíso do mundo gay aqui dentro.” Noutra oportunidade, a deputada Tabata Amaral afirmou: “já tive em uma reunião em que um deputado me perguntou: quem você quer provocar de batom vermelho?”. Já a deputada Talíria Petrone publicou que enquanto mulher “o tempo todo você tem que se impor para ser reconhecida.”

Mas em pleno século 21, como esse circo (de horrores) pode ser possível? Bom, a desigualdade de gênero não é uma novidade, tampouco se apresenta como uma marca exclusiva do mundo contemporâneo. Trata-se de uma situação que foi moldada ao longo da história, são diferenças socialmente construídas, onde foram estipulados papéis e oportunidades direcionadas ao sexo feminino ou masculino. O rolo compressor machista vem sendo perpetrado há séculos, ainda que a situação das mulheres tenha evoluído positivamente em alguns pontos em décadas recentes.

Contudo, a emancipação feminina precisa de mínimas condições para se viabilizar. E sabemos que uma grande parcela das mulheres não tem oportunidade de se emancipar, e por isso está condenada a continuar a seguir conforme o sistema, dançar conforme a música. É o caso das mulheres nascidas em condições desfavoráveis como a pobreza, por exemplo, na periferia dos países em desenvolvimento, onde o direito não as alcança, e onde as humilhações e precariedades em razão do gênero podem ser ainda piores, até mesmo pela intersecção, multiplicidade e complexidade dos problemas vivenciados.

Assim, é fundamental que se tenha consciência das questões que cercam o gênero feminino. A teoria da interseccionalidade traz a idéia de que, apesar de que todas as mulheres estejam de algum modo sujeitas à discriminação de gênero, outros fatores - incluindo raça e cor da pele, posição social, idade, etnia, ascendência, orientação sexual, religião, classe socioeconômica, cultura - combinam-se para determinar sua posição social, sua maneira de existir no mundo. E nesse contexto as mulheres negras acabariam marginalizadas dentro dos movimentos feministas e antirracistas, isso porque, na prática, não haveria diálogo entre esses movimentos.

Mas por que a cultura masculina, ou ao menos do macho clássico (homem misógino ou tóxico), se perpetua à custa da dignidade do outro gênero? E por que as mulheres muitas vezes têm dificuldades de se desvencilhar dessas armadilhas? Nesse caso, a psicanálise traz muitas respostas, mas a ficção e a arte nos dá algumas pistas. Nessa esteira, tratando-se do desenho da personalidade de homens misóginos, abusadores, ou manipuladores, o filme “The power of the dog” (Ataque dos Cães, de 2021) tem muito a nos revelar. O filme é baseado no livro do romancista norte-americano Thomas Savage. Um filme tenso, visualmente lindo, com personagens “padrões” da década de 20, mas com suas complexidades expostas. O ator central da obra, Benedict Cumberbatch, está ótimo como o cowboy Phil. Mas a grande beleza do filme está no trabalho da diretora Jane Campion que expôs a complexidade dos chamados “homens tóxicos”, indo além do óbvio, revelando (ao menos um dos seus possíveis) desejos mais latentes.

O protagonista assume um modelo de homem machão e homofóbico, do tipo que vê as mulheres como objeto de conquista, de sexo, aquela que deve se reservar aos cuidados com a casa. Ele encena um perfil de homem que praticamente só admira tipos viris e fortes, como ele próprio se considera, voltando seus esforços para impressionar outros homens. Pois é. “The power of the dog” renderia várias resenhas em razão da multiplicidade de questões que ele traz e toca, e assistir ao filme é de grande valia para a construção do entendimento sobre o tema.

Em termos de arte nacional, além do seriado “Bom Dia, Verônica” (1ª Temporada) - onde ele interpreta a figura de homem gentil e policial exemplar, que esconde uma personalidade doente e obscura - o ator Eduardo Moscovis fez outro trabalho que talvez seja o melhor para ilustrar este ensaio. Trata-se do vídeo “Tigre Branco”, com texto de Daniela Pereira de Carvalho. No vídeo, Moscovis interpreta um homem branco; um homem branco que gosta de mulheres etc. Em determinada altura do monólogo, o personagem se diz a imagem e semelhança de Deus, e questiona se Deus, então, seria opressor. E por aí vai. Vale registrar que o ator dá um show de interpretação, e, com tão boa performance, é improvável não se ter asco do personagem.

Assim, por toda facilidade que dispomos em termos de acesso e multiplicidade de informação (inclusive informação de qualidade), sabemos que hoje quando se pensa em estereótipos de mulheres vistas como fracas e com necessidade de proteção, deve-se reforçar que são, sobretudo, as razões econômicas e sociais que geralmente melhor explicam o que pode ser percebido como “vulnerabilidade”. Mulheres não são vulneráveis, mas vulnerabilizadas. E, nesse contexto, muitas mulheres não têm ânimo para a mudança. Dependendo do lugar onde ela ocupa socialmente, o grau de dificuldade para a mudança pode ser hercúleo.

Voltando aos quadrinhos, em 2016 a fictícia Mulher-Maravilha (quem diria?!) foi nomeada Embaixadora Honorária para as Mulheres e Meninas pelas Nações Unidas, com a missão de dar visibilidade ao 5º Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que busca alcançar a igualdade de gênero para as mulheres e meninas até 2030. Na ocasião, sub-secretária-geral para Comunicações e Informação Pública da ONU, Cristina Gallach, afirmou que “embora tenhamos alcançado progressos na igualdade de gênero em diversas partes do mundo, mulheres e meninas continuam a sofrer discriminação e violência.” Gallach destacou na ocasião que “a igualdade de gênero é um direito humano primordial e fundamental para um mundo mais pacífico, próspero e sustentável”.

E, enquanto ainda estamos longe de vivenciar àquela igualdade - apesar de todo o esforço de muitas e maravilhosas mulheres comuns (porém extraordinárias) - é necessário um constante e progressivo fortalecimento (empowerment) do grupo feminino. Nesse contexto, talvez seja interessante que incorporássemos os aspectos de uma flor de lótus. Esta se caracteriza pela capacidade de manter a integridade e beleza em meio à lama, local onde ela nasce e vive. De um fundo lodoso ela floresce sobre a água, e à noite as suas pétalas se fecham e a flor submerge. Ao amanhecer, ela ressurge sobre a água. Uma flor associada ao renascimento, suas raízes fincadas na lama não comprometem a sua integridade, e por isso, ela simboliza a vitória diante das dificuldades do mundo.

Por fim, em se tratando da construção de um mundo mais justo e equânime, apostaria na ideia de que teremos um longo e árduo caminho pela frente, num movimento pendular de avanços e retrocessos para as mulheres e meninas, do Brasil ou do Mundo. Por isso, que nesse processo vindouro, sejamos, sobretudo, flor de lótus e mantenhamo-nos íntegras e fiéis a nós mesmas, em nossa força, nossa sororidade, nossa liberdade e nosso amor (próprio). Ah, e continuemos a falar sobre gênero.


 


Patrícia Bianchi é Doutora pela UFSC. Pós-doutora pela USP e pesquisadora na área ambiental.


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