-M. Madeleine Hutyra de Paula Lima-
Renasceu a grande esperança com a vitória da democracia! Perdeu a extrema direita que pretendia dominar o Brasil. O resultado da vitória da chapa Lula-Alckmin foi logo reconhecido pelo Tribunal Superior Eleitoral, pelo Legislativo e por dirigentes de numerosos países estrangeiros, que elogiaram a forma democrática de sua realização. Não vingaram as tentativas de desestabilização da paz com os bloqueios postados por alguns caminhões nas estradas federais por poucos seguidores mais fanáticos do candidato da extrema direita que rejeitavam o resultado. Não conseguiram nublar a alegria da vitória na eleição que, no segundo turno, recebeu o apoio de uma Frente Ampla pela Democracia.
O tiro saiu pela culatra! Apesar das grandes dificuldades para a circulação de milhares de pessoas e o enorme prejuízo econômico causado, cujas responsabilidades serão apuradas, para grande parte da população, inclusive para muitos eleitores do candidato derrotado, a mensagem da balbúrdia foi lida como uma ação extremada e condenável, demonstrando ser até uma antecipação desastrosa do que seria mais uma gestão do candidato perdedor, afastada da necessária normalidade democrática. Essa agitação ilegal foi desarmada com a firme e imediata interferência do ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, - ao impor à direção da Polícia Rodoviária Federal o cumprimento de sua obrigação funcional, diante de denúncias de graves omissões, sob pena de responsabilidade pessoal, civil e penal e pagamento de multa, e ao determinar o apoio da Polícia Federal para realizar os desbloqueios, por questão de ordem política e social, - e dos governadores de Estados, ao colocarem em ação a Polícia Militar estadual.
Passadas mais de 40 horas desde o final do pleito, o atual presidente e candidato derrotado veio fazer uma rápida declaração perante a imprensa sobre as eleições e sobre as manifestações que estavam ocorrendo. Pincei de sua fala a frase “somos pela ordem e pelo progresso”, que me propus a analisar.
“Ordem e Progresso” é a legenda inscrita na Bandeira Nacional, um dos símbolos da República Federativa do Brasil, reconhecida pela Constituição Federal de 1988, sob o artigo 13, § 1º. Havia sido adotada pelo Governo Provisório da então chamada República dos Estados Unidos do Brazil pelo Decreto n° 4, de 19 de novembro de 1889, art. 1º: “A bandeira adoptada pela Republica mantem a tradição das antigas côres nacionaes - verde e amarella - do seguinte modo: um losango amarello em campo verde, tendo no meio a esphera celeste azul, atravessada por uma zona branca, em sentido obliquo e descendente da esquerda para a direita, com a legenda - Ordem e Progresso - e ponteada por vinte e uma estrellas, entre as quaes as da constellação do Cruzeiro, dispostas da sua situação astronomica, quanto á distancia e o tamanho relativos, representando os vinte Estados da Republica e o Municipio Neutro; tudo segundo o modelo debuxado no annexo n. 1.” Esse decreto foi modificado pela Lei 5.700, de 1º de setembro de 1971, com acréscimo de mais estrelas pela criação de novos Estados.
Para o direito público, a ordem pública é considerada numa concepção material ou objetiva semelhante àquela da área política. Ao mesmo tempo é concebida como um fim do ordenamento político e estatal e assim se encontra na legislação como sinônimo de convivência ordenada dentro dos princípios gerais de ordem desejados pelas opções previstas em um determinado ordenamento. Com a variação da inspiração ideológica e dos princípios orientadores (democráticos ou autocráticos, p. ex.), cada ordenamento terá um regramento para disciplinar a intervenção das normas e da administração direta tendentes a salvaguardar a ordem pública (Giuseppe Vergottin). Por sua vez, no significado de progresso prevalece a ideia da expectativa de um movimento de fatos, em especial da civilização, no sentido de um gradual crescimento do bem-estar ou da felicidade, com uma melhora do indivíduo e da humanidade, necessitando, pois, de uma finalidade, um objetivo último do movimento. Em outras palavras, a medida do progresso está na concretização da finalidade dessa melhoria pretendida (Saffo Testoni Binetti). (Dicionário de Política, Norberto Bobbio, Nicola Matteuci, Gianfranco Pasquino, vol. 2, Ed. UNB/IOE, 5ª ed., 2000).
É importante entender a evolução do significado da legenda Ordem e Progresso a partir de seu reconhecimento em 1889 pelo governo militar, que sucedeu ao golpe militar e de donos de extensas terras contrários à abolição da escravatura, com a proclamação da República em 15 de novembro. Passados quase cem anos, a Constituição Federal de 1988 trouxe mudanças significativas estabelecendo princípios e normas constitucionais aos quais as leis se subordinam e à luz dos quais essas leis em abstrato se interpretam na aplicação aos fatos concretos.
Novos conceitos político-jurídicos foram surgindo nesse período. A Constituição Federal de 1988, a Constituição-cidadã, reconheceu os princípios da cidadania e da dignidade da pessoa humana, reforçou o pluralismo político e, principalmente, estabeleceu a soberania do povo como detentor do poder, sob seu art. 1º parágrafo único: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” Em linhas gerais, o reconhecimento da República Federativa do Brasil como um Estado Democrático de Direito acrescenta novos elementos à ideia de Ordem pública, caracterizando a ideologia democrática, um caminho constante de aperfeiçoamento, sem aceitar retrocessos, onde as escolhas são feitas pelas maiorias mas com o respeito às minorias. O Chefe de Estado governa visando o interesse de todos, levando em conta o interesse público, afastando-se do modelo autocrático, que é antítese da democracia.
Desta forma, o significado de “Ordem” ganhou novo conteúdo. Reconhecimento do princípio da participação popular na gestão de políticas públicas; do direito à informação sobre dados do governo, em especial sobre execução de políticas que visam garantir os direitos civis e políticos e os direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Os direitos e deveres individuais foram reforçados e houve o acréscimo da proteção aos direitos difusos e dos coletivos, com as respectivas tutelas, inclusive atribuindo ao Estado o dever de seu cumprimento por meio de políticas públicas. A tripartição dos poderes permanece com sua independência e harmonia, desde a proclamação da República (CF 1891, art. 15), sendo eles o Poder Legislativo, o Executivo e o Judiciário, devendo cada um deles merecer respeito recíproco.
Quanto à palavra “Progresso”, ele ganhou significado mais amplo em face dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: “I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, e IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, estabelecidos pelo art. 3º, CF. Tratam-se de pautas a serem buscadas pelos governantes.
Portanto, o significado do lema Ordem e Progresso da nossa bandeira deve ser atualizado acompanhando as mudanças políticas havidas no decorrer destes cem anos e se submeter aos parâmetros dos princípios e normas da Constituição de 1988. As liberdades individuais e públicas acompanharam essas mudanças. O direito de locomoção constitui um deles (art. 5º, XV). Os direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais têm sua exigência de cumprimento pelo Estado também no âmbito do significado de Progresso.
Podemos ver, assim, que os discursos feitos pelo candidato derrotado dirigidos para seu público de eleitores, desde sua campanha para a eleição em 2018, durante o decorrer de seu mandato e na presente campanha eleitoral, estão totalmente afastados do correto entendimento de Ordem e Progresso à luz dos parâmetros constitucionais a que fez igualmente referência como sendo seguidor das “quatro linhas da Constituição”. As entrelinhas fazem parte das mensagens e devem ser devidamente compreendidas e avaliadas.
Haverá muito trabalho e dedicação do novo governo federal de feição democrática para a reconstrução do Brasil e empenho da sociedade civil organizada para a reconquista dos direitos de sua população especialmente necessários para as “minorias” rechaçadas, que, na verdade, compõem a sua maioria numérica.
O primeiro passo foi dado pelo resultado da eleição e os desafios serão enfrentados pelo governo, que, segundo o primeiro discurso do presidente eleito Lula, será voltado para o interesse de todos os cidadãos, sem levar em conta suas opções eleitorais, para agregar os Estados e sua população num único Brasil, em maior harmonia, e poder ostentar a bandeira orgulhosamente como símbolo nacional de fraternidade e união sob os parâmetros democráticos da sua legenda Ordem e Progresso!
Marie Madeleine Hutyra de Paula Lima é Advogada, Mestre/Direito Constitucional e associada do IBAP .
Excelente artigo, Madeleine. A ordem não é um simples reforço de hierarquias voltadas a satisfazer falsas noções de superioridade, mas sim um meio de viabilizar a convivência entre seres que têm igual direito de existir, a despeito de serem por vezes conflitantes os respectivos interesses, e é essa a ordem que viabiliza o progresso, parametrada pela Constituição. Evoco a Carta aos Brasileiros, de Goffredo.
Artigo oportuno e esclarecedor.