-FLÁVIA D'URSO-
João Guimarães Rosa talvez seja o maior escritor da nossa literatura. “Grande Sertão: Veredas” é o seu único romance. Arrebatador porque tem uma linguagem única e uma metafísica primorosa. E “porque seguimos todos através do grande sertão, e aos poucos nos distinguimos no lusco-fusco do mato”, ensinou Paulo Mendes Campos.
Contista por excelência o encantamento da minha leitura absolutamente enredada vem agora de “Miguilim”.
O nome que dá título ao conto é de uma criança de 8 anos de idade que vive com sua família em um inóspito interior mineiro, no povoado de Mutum.
O menino, caracterizado por extrema e envolvente candura, experimenta a descoberta da natureza, a violência dos adultos, do pai severo e da mãe permanentemente consternada, a admiração pelo irmão Dito e a aversão pelo outro mais velho, Liovaldo. Desvenda e sofre profundamente a morte e filosofa ingenuamente sobre os mistérios da vida.
É um livro autobiográfico de Rosa.
Diferentemente de grandes autores como Machado de Assis e Graciliano Ramos, que escrevem sobre a puberdade e adolescência com a gravidade de adultos, o autor de “Miguilim” empresta a esse personagem, justamente por sua alegria de viver - que é a marca mesmo de suas obras – e de criar além de seu dinamismo estilístico, o sentimento da infância.
Mas, se para alguns leitores igualmente apaixonados pelo escritor mineiro, exatamente por essa vivacidade, que interpretam em “Miguilim” o tema da infância como sendo de importância fundamental, o risco aqui é o de atribuir a esse espetacular conto outro enorme valor que é o da transição para o esclarecimento kantiano.
Imannuel Kant considerava a menoridade o estado do homem dependente e submisso às autoridades externas para tomadas de qualquer decisão. No objetivo de transpor essa condição o indivíduo deve se valer, sobretudo, da razão e se afastar de doutrinas e tradições que limitam o pensamento crítico.
E é o desfecho de “Miguilim” que possibilita a chave da emancipação desta doce personagem.
O médico Dr. José Lourenço, já nas páginas finais do conto, se apercebendo de dificuldade do menino ao encará-lo, pergunta:
...” Por que você aperta os olhos assim?”
Entregou-lhe os óculos adultos que portava e Miguilim olhou ...
“Nem podia acreditar! Tudo era claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessôas ... e tonteava ... aqui, ali, meu Deus, tantas coisas, tudo”.
E o doutor, “que era um homem muito bom”, levou Miguilim para a cidade, comprou-lhe óculos e o matriculou na escola.
Se a dificuldade do enxergar obrigava o menino sensível a desenvolver uma percepção atenta das pessoas e do mundo de Mutum o salto da correção de sua visão lhe proporcionará a saída da menoridade para a maioridade (Aufklärung) e a sua autoconstrução e aprimoramento.
Guimarães Rosa, aos 8 anos de idade descobriu uma miopia e no mesmo ano saiu de Cordisburgo para a casa dos avós em Belo Horizonte, onde iniciou sua educação formal.
Após 45 anos de sua morte permanece e brilha como baliza primordial da cultura brasileira ao elevar a tradição regionalista aos patamares da metafísica. Em Miguilim, especialmente, aponta para o futuro e ilumina nossos caminhos eternizando, desse modo, o inextinguível ciclo da vida.
___Diálogos extraídos de “Corpo de baile – Manuelzão e Miguilim”, João Guimarães Rosa, 1 ed., São Paulo: Global, 2019.
Flávia D'urso é mestre em Direito Processual Penal e Doutora em Filosofia, na linha de pesquisa política, pela PUC/SP. Foi procuradora do Estado e Defensora Pública. Dirigiu a Escola da Defensoria Pública de SP. Integra o Conselho Consultivo do IBAP. Preside a ENAJUD (Escola Nacional de Juristas para a Democracia).
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