- Guilherme Purvin -
Adoro São Paulo porque é a terra de Oswald de Andrade, Adoniran Barbosa, Rita Lee, Arnaldo Antunes, Anita Malfatti, Mário de Andrade e Tarsila do Amaral, Ana Muylaert, Fernando Meirelles, Antônio Cândido, Lygia Fagundes Telles e Caio Prado Júnior. É a terra da Semana de 22 e da Vanguarda da Praça Benedito Calixto.
No entanto, quando vou aos jogos de futebol no estádio do maior time do país, tricampeão mundial, passo diante da sede do governo estadual e me lembro que o nome daquele prédio cafona é "Palácio dos Bandeirantes". Foi nesse prédio público que, entre 14 e 19 de setembro de 2023 e, novamente, em 25 de outubro do mesmo ano, ficou hospedado o ex-presidente Coiso, a convite do carioca eleito pelos paulistas.
“Bandeirantes” é um nome sugestivo, evoca uma importante emissora de rádio, fundada em 1937, que eu ouvia nas locuções de Fiori Gigliotti: !Abrem-se as cortinas e começa o espetáculo!". Guilherme de Almeida, um poeta outrora muito apreciado pelas senhoras católicas, escreveu um “Hino dos Bandeirantes”, com estes versinhos verdadeiramente patéticos: "Paulista, pára um só instante / Dos teus quatro séculos ante / A tua terra sem fronteiras, / O teu São Paulo das 'bandeiras'!"
Este Estado é recortado por rodovias que carregam os nomes de Fernão Dias, Anhanguera e Raposo Tavares. A relação dessas figuras com os povos originários é marcada por conflitos, escravização e violência.
Fernão Dias Paes Leme (1608-1681), conhecido como o "Caçador de Esmeraldas", liderou expedições pelo interior do Brasil em incursões que resultaram na captura e escravização de milhares de indígenas, vendidos como mão de obra para engenhos de cana-de-açúcar.
Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera (1672-1740), recebeu esse apelido, que em tupi significa "Diabo Velho", devido à sua brutalidade contra os indígenas. Participou da colonização de Goiás, liderando expedições que subjugaram povos originários para exploração do ouro.
Antônio Raposo Tavares (1598-1659), por sua vez, liderou grandes expedições pelo interior do Brasil, chegando até a Amazônia e ao atual Paraguai. Seu principal objetivo era expandir os domínios portugueses e capturar indígenas para trabalho escravo. Liderou ataques brutais a aldeias indígenas e reduções jesuíticas, escravizando e matando milhares de nativos, principalmente os Guaranis.
Além desses, outros topônimos em São Paulo evocam figuras assustadoras. A Avenida General Olímpio da Silveira carrega o nome de um oficial envolvido em repressões políticas durante a ditadura. A Avenida Presidente Castelo Branco homenageia outro militar responsável por atos de censura e perseguição. E, no Bom Retiro, pasmem, há uma Rua Dr. Cesare Lombroso, em homenagem a um estudioso de criminologia que se tornou mundialmente conhecido por suas teorias racistas e eugenistas.
Limito-me aqui a citar topônimos, para não adentrar na discussão sobre esculturas que reverenciam figuras dessa espécie, como é o caso do monumento às bandeiras, de Victor Brecheret, no Ibirapuera, e a estátua do Borba Gato, em Santo Amaro. É que, neste caso, lidamos com um assunto mais delicado, que envolve questões voltadas ao patrimônio artístico e cultural. Neste caso, um bom início de reflexão seria a partir da experiência da Prefeitura de Bristol. Também recomendo a leitura do estudo de Juliana Torres intitulado "A Guerra Socioambiental do Borba Gato na São Paulo de 2021", publicado no livro "Estudos de Direito Ambiental", que organizei em memória do jurista José Eduardo Ramos Rodrigues (São Paulo : Terra Redonda, 2023).
Gostaria muito que São Paulo fosse lembrado pela música de Rita Lee e Adoniran Barbosa, pela poesia de Oswald de Andrade, pela pintura de Tarsila do Amaral. No entanto, a cidade e o Estado continuam a carregar topônimos que reverenciam genocidas, como se a violência e a imposição colonial fossem marcas permanentes da história paulista.
No ano passado, os pesquisadores Giselle Beiguelman (USP) e Andrey Koens (UNESP) desenvolveram o projeto "Ditamapa", que identificou nada menos do que 538 locais públicos no Brasil que ainda levam o nome de ditadores. Só em homenagem ao gaúcho Arthur da Costa e Silva, o general do AI-5, foram identificados 184 logradouros. Não sei se serve bem de consolo, mas nem todos estão em São Paulo.
Está mais do que na hora de exigir a mudança de topônimos de criminosos e ressignificar os espaços que habitamos. Porque dignidade humana deveria ser inegociável. Lembrando Erasmo de Roterdam, sei que os tempos são de elogio da loucura, mas seria tão bom se o povo de São Paulo, em homenagem à dura poesia concreta de suas esquinas e aos novos baianos que só não passeiam em sua garoa por medo da queda dos fios da Enel ou de algum avião, se tornasse um pólo cultural de preservação dos valores dos direitos humanos.
Guilherme Purvin, pós-doutorando junto ao Departamento de Geografia da USP graduou-se em Direito e Letras e obteve o grau de Mestre e Doutor em Direito, sempre pela USP. Escritor, é membro fundador da Academia Latino-Americana de Direito Ambiental - ALADA, onde ocupa a Cadeira n.1 - Vladimir Garcia Magalhães.
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