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A (des)medida do homem

-Gean B. de Moraes-


Mas poderá o homem, quando toda a sua vida está cheia de trabalhos, erguer o olhar e dizer: assim quero eu ser também? (...) É a medida do homem. Cheio de mérito, mas poeticamente, vive o homem sobre esta Terra. (...) Haverá na Terra uma medida?”

Friedrich Hölderlin, em No Ameno Azul, Hinos Tardios, Ed. Assírio & Alvim, 2.000.

Ontem olhei para fora. A lua estava lá longe, mas, também se repetia nos objetos mundanos. Lembrou-me de uma interpretação do poema No Ameno Azul, (ou Azul Sereno), de Hölderlin, que fala das medidas do homem, situadas sempre diante do céu; sendo este a sua referência original. Segundo essa interpretação, o que o poeta cantou é que a cultura material se fez enquanto edificação resultante de quem contemplava o céu e desejava ser o seu igual, embora fosse, quase sempre, sua contrafação.


Ontem olhei para fora e vi a imagem dessa casa, com suas janelas iluminando o entorno. Ou, como diria Merleau-Ponty, foi esse fragmento da cidade que se dirigiu a mim e me trouxe uma lembrança que também é promessa e, por vezes, se afigura enquanto ameaça.


Vi que a lua se repetia na janela. Mas, sob a forma bela de um retornamento decaído, feito por mãos que, talvez, não saibam quais os debates atuais sobre vícios de construção e salubridade da moradia. Talvez não saibam. Talvez não se importem. Trata-se de uma casa, possivelmente, feita por quem foi excluído da produção científica do conhecimento – ela está situada em uma comunidade periférica do Rio de Janeiro – e mesmo sem esse repertório, instaura sentidos, elabora uma nova luz e uma nova obscuridade sobre os gestos no mundo. Se não novas, ao menos outras.


Ilustração: Ibraim Rocha

A correspondência da lua em relação à janela circular, primeiro me encantou assim, no nível zero da inquietude; para, em seguida, fazer a pronúncia do que vou chamar aqui de uma "gramática zen budista", mas em tom de pergunta ansiosa. Com o smartphone, mirei o céu e a janela, ao mesmo tempo em que investia sentido e palavra sobre meu enquadramento. Lembrei-me do que é comumente chamado de a “Janela do Iluminismo”.


E a imagem me inquiriu: Esse quieto ritornelo, quase clandestino – não fosse a frágil atenção evocada pela imagem, no espaço e tempo do chão/céu carioca, e que, daqui a pouco, vou esquecer – pode também ser uma conversa sobre a distância instaurada pelo homem entre a medida científica e a medida poética do fazer ver o mundo? O que perdemos, nessa relação com o planeta, feita com uma pedagogia que sempre contrapõe o sensível em relação ao calculável?


Ao longo da história das formas visuais do saber, o que não pode ser visto, se recolheu no inconsciente¹. E esse foi um modo sofisticado de nos espoliar, já que, naturalmente, não costumamos dar atenção aquilo que se oculta. Ou aquilo que nos obrigam a sonegar, em se tratando dos modos de fazer (des)aparecer em um mundo sobredeterminado pelas relações materiais e seus espectros sociais, encarnados em classe, gênero e origens (norte/sul, brancos, negros, asiáticos, indígenas...)


Eu, pai, professor precarizado, funcionário público, nordestino, brasileiro, estou, agora, (des)aparecendo, enquanto escrevo esse texto e tenho, diante dos meus olhos, uma terceira figura que só pode ser descrita enquanto desdobramento. A fotografia da lua e da janela circular, exercem aquela função mnemônica de informar e fazer conhecer algo que já está ausente. Uma imagem que diz “isso foi” desenleando-se em direção ao “isso tem sido”.


É assim que a lembrança do desejo cantado na poesia de Hölderlin se apresenta para mim, após a captura e enquadramento do satélite secundário do planeta Terra e sua repetição, sob a forma de um objeto construtivo. Uma imagem delimitada. Substância virtual que não é mais nem lua, nem janela. Agora, é fotografia se reproduzindo ao infinito, nas telas dos computadores, dos smartphones, dos tablets...


A fotografia me afeta, ateando, em mim, um tipo de epifania negativa. Reconheço que algo mudou, pois, me parece, que a medida do homem não é mais o azul sereno do céu, versejado por Hölderlin. Hoje, se ainda existe o desejo de habitar poeticamente a Terra, ele parece ser atravessado pela luz azul dos monitores, pelas sequências de ações encadeadas por algoritmos. Essa luz azul do mundo está transformando toda a mobilidade desejante, toda vontade construtiva. E eu aqui, nessa noite do mundo, me pergunto se ainda temos desejo de habitar poeticamente, mesmo não olhando o céu como faz a voz do poema de Hölderlin.


Pois, certamente, os olhos dos transeuntes estão agora diante dos visores, dos para-brisas e das telas dos celulares. Do mesmo modo, os que estão em seus lares, curvam suas cabeças. Como disse Lipovetsky, há uma estetização crescente moldando os corpos e os espaços em eles que se situam. E toda imagem consumida, na era do capitalismo artista, ambiciona o projeto do Cinema: afetar os corpos, não importa o tamanho das telas e dos enquadramentos. Žižek concorda com essa afirmação, acrescentando que os efeitos tencionados são sempre perversos: "O cinema é a principal arte da perversão. Ele não te dá o que você deseja. Ele diz o que você tem que desejar." E não é isso que a vitrine do shopping, o Instagram, o Tik Tok, o Tinder e o Big Brother fazem? Sendo assim, Žižek parece ter razão ao dizer que a questão colocada pela imagem não é se o meu desejo foi satisfeito ou não e, sim, a natureza desse desejo.


Na gênese da fotografia, segundo Geoffrey Batchen, há uma desconstrução desejante nos experimentos que enquadram e descrevem, com luz, toda forma visível, incluindo a figura humana. Com esse gesto, chegamos até aqui, nessa medida da imagem efêmera. Ela nos situa no mundo e nos faz arder, enquanto somos decompostos em direção a uma virtualidade, a uma imaterialidade. E queremos ser iguais a essa imagem, embora sejamos, quase sempre, sua dissimulação, na infinita reprodutibilidade de um desejo que, paradoxalmente, de tanto ser igual, se transforma, terrivelmente. Primeiro como tragédia, depois como farsa.


¹Vale a pena a leitura de A Imagem Sobrevivente, de Georges Didi-Huberman (Ed. Contraponto). Nessa obra, o autor recorre a Freud, para afirmar que a potência da Imagem está em sua dupla interrupção. Ela funciona como sintoma (interrupção no saber) e conhecimento (interrupção no caos). Inspirado no pai da Psicanálise, DidiHuberman afirma que o sintoma, na imagem, funciona como uma manifestação do inconsciente. Em se tratando do conhecimento, enquanto interrupção no caos, o autor baseia-se no conceito de montagem de Walter Benjamin, para pensar em temporalidades e narrativas que ponham, lado a lado, o Real e o inconsciente, contrapondo-os.

 

Gean B. de Moraes é contista, educador, historiador da Arte e estudante de Letras.


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