-IBRAIM ROCHA-
A Confederação Nacional da Agricultura (CNA), ajuizou a ADPF 1056 em que argui, perante o STF, a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei Federal nº 6.739/1979, por suposta violação do regime de separação de poderes, violação do devido processo legal, inviolabilidade do direito de propriedade e do direito de moradia, princípio da proporcionalidade e razoabilidade.
Nada mais inadequado, pois a legislação impugnada é instrumento fundamental para a resolução dos “conflitos fundiários” e “questões agrárias” envolvendo a grilagem de terras públicas, dentro da definição adotada pelo STF ao apreciar a ADI 3433-PA, que são conflitos com profundas raízes históricas, na luta pela terra.
O cancelamento de registros imobiliários, através de pedido administrativo, feito pela pessoa de direito público interessada é a uma forma eficaz de combater o grandioso problema de apropriação indevida de terras públicas no Brasil. O Livro Branco da Grilagem, já no final década de 90, apontava que havia mais de 100 milhões de hectares de área grilada no Brasil, o que impediria a efetividade de combate por meio de centenas de ações judiciais de nulidade de registro de imóveis.
No Estado do Pará, a Corregedoria de Justiça das Comarcas do Interior, do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, bloqueou milhares de matriculas, por meio do Provimento 13/2006, cujos registros foram posteriormente cancelados pela Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça, em 16 de agosto de 2010, sendo que, em todos os casos, a fundamentação jurídica foi a possibilidade de cancelamento administrativo dos registros irregulares, fundada na lei impugnada, pela CNA.
A grilagem de terras fomenta as irregularidades no campo, a exemplo dos despejos irregulares, ameaça e causa assassinatos de trabalhadores rurais e crimes ambientais, como o desmatamento e extração ilegal de madeira.
Para o cabimento de ADPF, exige-se a existência de relevante controvérsia sobre ato normativo federal anterior à Constituição, segundo o princípio da subsidiariedade, o que não é caso, afinal não existem dúvidas de que propriedade, sem origem no desmembramento no patrimônio público é registro nulo, como definido no lapidar acórdão do STF, no RE nº 51.290/GO, em que destacou o Ministro Evandro Lins e Silva sobre a matricula no registro de imóveis: “a transcrição não expurga de vícios o domínio nem a posse pode se objetivar sobre coisas fora de comércio”.
Ademais, o STF já declarou a constitucionalidade da Lei nº 6.739/79, reafirmando a prevalência da origem pública das terras, e nem o registro imobiliário pode afastar, na sua presunção de domínio, ao julgar a Representação de Inconstitucionalidade nº 1.070-8/DF, em 1983, relator Ministro Moreira Alves, reconhecendo a adequação da Lei à Carta Magna então em vigor, sem violação ao direito ao contraditório, sendo legitimada a possibilidade de o Corregedor de Justiça, no desempenho de função de natureza administrativa, declarar inexistente e cancelar a matrícula de imóvel rural vinculado a título nulo de pleno direto, em acordo, inclusive, com as sumulas 316 e 473 do STF.
Neste decisum, o Ministro Moreira Alves, ressaltou que a própria Lei nº 6.739/79, ressalva o mecanismo do particular em impugnar o ato, mediante ação declaratória de nulidade de ato administrativo, prevista no seu art. 3º, pois não se retira o direito de socorrer-se do Poder Judiciário, não devendo prosperar a alegada violação ao princípio da separação de poderes.
O papel do Poder Judiciário, ante a atividade registral é a de fiscalização, exercido com todos os atributos do poder de polícia de que goza o Poder Público. Assim, não faz sentido a Administração fiscalizar, sem ter o poder de desfazimento do ato nulo praticado por agentes investidos na competência para realizar o ato, vez que as atividades notarial e de registro são atividades delegadas pelo Poder Público ao particular, que as exerce de maneira privada, como previsto no art. 236 da CRFB.
O CNJ, no Pedido de Providências nº 0001943-67.2009.2.00.0000, julgado em 2010, reiterou os entendimentos do STF, ao determinar o cancelamento de diversos registros, realizados acima dos limites constitucionais de concessão de terras públicas, reconhecendo assim a idoneidade do procedimento, para administrativamente proceder o cancelamento dos registros nulos, que nunca prescrevem.
Ao particular que teve o registro cancelado, sempre há a possibilidade de se proceder à regularização fundiária das áreas que estejam na posse do particular cumprindo a função social, pois a insegurança jurídica não nasce pelo cancelamento de registros maculados, por evidente desrespeito à Constituição Federal, mas sim da possibilidade destes registros permanecerem produzindo efeitos, de maneira ilusória, como propriedade que não são.
A 1ª Turma do STF, ao apreciar o MS nº 31.681/DF, relator Ministro Luiz Fux, julgado em 2016, denegou, a unanimidade, à segurança em que o particular Antônio Cabral de Abreu pretendia ver declarada a nulidade do ato do CNJ, emitido no PP nº 0001943-67.2009.2.00.000, que determinou o cancelamento de matrículas de imóveis, que feriu os limites constitucionais, mantendo a decisão impugnada.
Este julgamento resgatou expressamente o julgamento da Representação nº 1.070/DF, que reconheceu a constitucionalidade da Lei º 6.739/1979, como aduziu o Ministro Fux:
"A possibilidade de se declarar a nulidade independentemente de ação direta por parte do Poder Público para cancelamento de matrícula nula de pleno direito, aliás, já foi afirmada por esta Corte no julgamento da Representação 1070/DF, Rel. Min. Moreira Alves, em que se questionava a constitucionalidade da Lei 6.739/1979, ocasião em que se ressalvou o acesso ao judiciário"
Isso revela que há caminho em que se preserva o interesse público e o particular. Legítimo o caminho administrativo como a melhor via para a resolução deste grave conflito.
A atualidade e força destes precedentes são tão evidentes que foram citados em diversos outros julgados decididos, monocraticamente pela Ministra Rosa Weber, em situações semelhantes, exatamente porque o art. 205 do Regimento Interno do STF autoriza o julgamento monocrático do MS quando a matéria é objeto de jurisprudência consolidada da Suprema Corte, no MS nº 29.312/DF, MS nº 29.375/DF, MS nº 30.040/DF, MS nº 30.2015/DF, MS nº 30.220/DF, MS nº 30.222/DF, MS nº 30.231/DF, MS nº 31.215/DF, MS nº 32.697/DF e MS nº 33.559/DF.
Os precedentes do STF caracterizam a ausência de subsidiariedade a legitimar a ADPF, face a inequívoca manifestação da Corte sobre a constitucionalidade dos procedimentos da Lei nº 6.739/79, e cuja aplicação se impõe, na forma do art. 489, §1º, inc. VI, do CPC, não havendo distinção do caso em julgamento nem a superação do entendimento.
Por fim, o uso do instrumento está sendo reforçada no Poder Judiciário pela Resolução nº 144, de 25 de abril de 2023 do CNJ, que inclui entre os objetivos do Programa Permanente de Regularização Fundiária, art. 2º, inciso IX, o fortalecimento da governança fundiária responsável da terra, visando a superação dos conflitos fundiários, à promoção da justiça, ao acesso à terra, à proteção ambiental, à publicidade, à segurança jurídica e ao enfrentamento da grilagem de terras públicas.
Logo, a ação da CNA, ao contrário dos objetivos que alega, apenas serve de batalhão de defesa da grilagem e do Latifúndio.
IBRAIM ROCHA é Procurador do Estado do Pará, Doutor em Direito (UFPA) e membro do Conselho Consultivo do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública.
A análise de importante decisão do STF neste texto servirá de suporte em futuras defesas contra a grilagem de terras, tão comuns, infelizmente, no Brasil. Grande contribuição, Ibraim !! Parabéns!!
Importante texto. Grande parte dos males do Brasil está justamente nos grilos de terra e na complacência dos poderes constituídos. Parabéns Ibraim!