- GUILHERME PURVIN -
Há quase 25 anos escrevi um artigo sobre direito do trabalho e as pessoas com deficiência. O artigo se iniciava com uma breve digressão acerca da evolução terminológica para a identificação da condição física ou mental da pessoa – pessoa aleijada, criança defeituosa (lembremo-nos do nome original da AACD), deficiente físico ou mental, até chegarmos a “pessoa portadora de deficiência” (expressão consagrada na Constituição de 1988). Na época em que organizei esse livro (“Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência”, S.Paulo : Max Limonad, 1998), acabei me aproximando de diversos grupos voltados à promoção desses direitos – Associação dos Amigos do Autista (AMA), Associação dos Deficientes da Áudio-Visão (ADEFAV), Associação Brasileira dos Portadores da Síndrome da Talidomida (ABPST), dentre outras. E, convivendo com essas bravas lutadoras – quase todas elas mulheres – acabei notando que, por vezes, surgiam ali conflitos que diziam menos respeito à situação material e jurídica das pessoas do que a aspectos linguísticos. Mudar uma denominação era algo como tentar sepultar preconceitos e injustiças históricas. Uma liderança do movimento dos direitos da pessoa com deficiência, com o grau mais elevado de comprometimento pelas sequelas do uso da Talidomida na gravidez por sua mãe, dizia debochadamente a respeito de seus amigos filiados à ABPST: “Nós, aleijados”. E olhava para mim e para os amigos do IBAP que estavam ajudando na organização de livros e eventos ao lado do MP/SP, do MPT-2 e da PGE-SP, como querendo provocar uma reação em nossos olhares.
Há alguns meses, consultei uma pessoa amiga sobre a possibilidade de realizarmos uma live sobre o tema “polícia linguística”. A ideia era examinar o quanto havia de generalização na acusação de pessoas que usam palavras e expressões proscritas em segmentos determinados da sociedade. Minha intenção, ao propor a live sobre “polícia linguística” era de discutirmos acerca das vitórias de Pirro nos diversos segmentos sociais que lutam pela cidadania plena – povos originários, afrodescendentes, movimento LGBTQIA+, pessoas com deficiência etc. – e que, no fim das contas, acabam consistindo em meras substituições vocabulares. Deixa-se de usar o termo “índio” e continua-se a exterminar os povos originários. Condena-se o uso do termo “mulato” e promove-se mais uma chacina nas favelas (digo, nas comunidades), com o fuzilamento preponderantemente de afrodescendentes. A pessoa convidada ouviu atentamente minha proposta e, de forma muito gentil, declinou do convite. Sabia que um evento com tal viés poderia constituir verdadeira armadilha e colocá-la numa situação difícil. Uma coisa era conversar em pequenas rodas de amigos acerca da efetiva carga de preconceito que há numa palavra ou numa expressão e o quanto há de vislumbre de fantasmas que têm origem nos traumas causados por uma sociedade estruturalmente racista, misógina e homofóbica. Outra era levar estas ponderações para um público mais amplo, que poderia a qualquer tempo rotular os debatedores, retirando trechos de um comentário e descontextualizando-os.
Melanie Klein afirmava que “o equilíbrio não significa evitar conflitos. Implica a força para tolerar as emoções dolorosas e poder lidar com elas”. Nesse sentido, a despeito de nunca haver conseguido montar essa live, na qual falaria sobre o desaparecimento do gênero neutro do Latim na língua portuguesa e a etimologia de algumas palavras, relativizando condenações apressadas e a-históricas, gostaria de trazer para os leitores-articulistas da Revista PUB-Diálogos Interdisciplinares a proposta de debate a respeito de temas que fatalmente poderão gerar conflitos e que, por esse motivo, impõem tolerância dialógica, já que inevitavelmente envolverão dores sentidas por quem é vítima das mais variadas espécies de preconceitos desde o nascimento. Quero, assim, compartilhar aqui um post da professora e escritora Laura Erber, colocado em seu mural do Facebook no dia 24 de fevereiro deste ano e que versa exatamente sobre o tema proposto. Este é o texto:
"Uma importante discussão foi levantada pela jornalista Fabiana Moraes no texto que compartilho nos comentários sobre a possibilidade/impossibilidade de uma visão crítica sobre o livro 'Torto Arado' de Itamar Vieira Júnior. Mas antes de prosseguir devo dizer que acho muito complicado o uso de um inbox, hesitei em escrever este comentário por conta disso, não é irrelevante e mereceria uma discussão à parte, mas a jornalista assume o risco desse gesto como uma forma de trazer à tona um debate. Leio aqui o texto de Fabiana Moraes como uma intervenção na discussão sobre sistema editorial e celebração da negritude em clave mercadológica, - questão seguramente relevante e que imagino nos próximos anos será mais e melhor discutida -, mas leio-o também e principalmente como uma reflexão sobre o horizonte da crítica literária. E aqui gostaria de dizer que para mim o mais importante não é a atitude ou reação individual de Itamar Vieira Júnior diante de um twitter sobre seu livro, um twitter que a meu ver nem constituía propriamente uma crítica ao livro, mas antes ao sistema de consagração em que o mesmo está enredado. Se comento aqui o texto é porque o desentendimento a que remete toca um problema que ultrapassa o caso específico e nos coloca diante do problema do estrangulamento do debate crítico qualificado na esfera pública.
"Infelizmente o debate crítico no Brasil tem sido cada vez mais pautado pela dicotomia celebração x desautorização produzindo leituras e contra-leituras reduzidas à lógica do ataque e defesa, isso quando não são de fato contendas pessoais. Esse tipo de cultura crítica induz efetivamente aos afetos amargos e à sensação de que a intervenção crítica que levanta questões seria um tipo de sabotagem calculada ou perversa. Não é um problema deste ou daquele autor, é um problema de uma cultura crítica e do próprio sistema literário que induz a um tipo de competitividade em que a crítica negativa ou problematizante é vista como um fator de destruição da reputação do autor. De fato, há críticos que se comprazem com o gesto de desautorização, alguns até de forma infantil e sádica, mas isso não faz com que toda crítica não adulatória seja automaticamente desabonadora ou mesquinha. O problema é realmente sério e agudo, diz respeito à nossa complexa educação cultural, ao anti-intelectualismo, à caricaturização do crítico como eterno inimigo dos gênios criativos. Mas diz respeito também ao lugar de pouco prestígio da literatura em nossa sociedade, reforçado por mecanismos de consagração que procuram fazer crer na originalidade absoluta e na perfeição, utilizando critérios muitas vezes pré-modernos de avaliação.
"Atuando em diferentes posições nesse jogo, - sou autora mas também crítica e professora universitária -, parece-me fundamental manter no horizonte a possibilidade de uma crítica da literatura produzida por autores e autoras negras que não esteja obrigada apriorísticamente a sustentar um elogio absoluto e/ou reforçar um consenso. Para que isso ocorra, é preciso que se leve a sério a crítica para além de uma função de promoção ou desqualificação instantâneas de produtos culturais. O livro de Itamar Vieira Júnior certamente se sustenta diante de leituras exigentes, o que não significa que seja incriticável. O mesmo vale para a literatura de mulheres e de autoras consideradas ícones ou lideranças feministas, pois se o feminismo se transforma em blindagem e imposição de adesão incondicional, a liberdade do leitor e da leitura ficam comprometidas de antemão e, com elas, a possibilidade do desenvolvimento de outras formas de ler e compreender. Perde-se o dissenso e também a possibilidade abordagens que se guiam por critérios não imediatistas e não voluntaristas. A alternativa à crítica celebratória tem sido a crítica meramente polêmica, igualmente redutora embora com pretensão de transgressão. Entre uma e outra e para além e aquém de ambas há um sem número de gestos e modos de ler criticamente um livro. Mas salvo raríssimas exceções, não há espaço para isso na maior parte dos veículos de grande circulação, mesmo em revistas literárias. E claro, excetuando casos de neurose extrema, todo autor que publica quer ser elogiado, e é verdade que a má fé viceja em diversos espaços de promoção de arte e cultura, mas é preciso diferenciá-la da crítica movida por um olhar comprometido com a própria literatura e uma visão exigente sobre a produção atual. A invalidação moral do gesto crítico resulta inevitavelmente no empobrecimento das perspectivas de leitura e na supervalorização de abordagens superficiais e paternalistas, o que é ruim tanto para os autores quanto para os leitores. Formas saudáveis de compreender, lidar e praticar o discurso crítico precisam ser priorizadas na formação de alunas e alunos de literatura e de artes. É algo mesmo urgente."
Em janeiro de 2021, a Revista Piauí publicou o artigo “Parece revolução, mas é só neoliberalismo – O professor universitário em meio às cruzadas autoritárias de direita e de esquerda”. O autor, acobertado pelo pseudônimo Benamê Kamu Almudras, narrava certas histórias que podem ou não ter acontecido em alguma universidade pública, envolvendo estudantes que não queriam ler textos acadêmicos mas queriam obter boas notas.
Tenho alguma dúvida sobre a veracidade da narrativa do Senhor Benabê, até porque qualquer estudante supostamente envolvido nos episódios que contou poderia imediatamente identificar a situação e desvendar o autor por detrás do pseudônimo. Além disso, a narrativa tem um quê de literatice inverossímil.
Não obstante, algumas passagens do artigo mereceriam um debate sério, em especial o comportamento que ele chama de culturalmente neoliberal de parte dos estudantes, “forma cultural, em que o mercado, a ética individualizante e o espírito do consumismo são erigidos como o modelo cognitivo e normativo da vida social”. Ou seja, a exigência de que a universidade seja “como um supermercado ou um restaurante, onde quem decide o que consome (que textos ler), quanto consome (quantos textos ler), por quanto tempo consome (quantas aulas ter) e como consome (como as aulas devem ser) são os consumidores”.
Incomoda em referido artigo a adoção do pseudônimo, que poderia denotar incapacidade argumentativa do autor (deficiência que não pode ser imputada a Laura Erber). Ou mesmo uma ardilosa acusação contra quem defende pautas identitárias – sugerir que o debate estaria vedado por macartismo. No primeiro caso, o anonimato pecaria pelo orgulho. No segundo, pela vilania.
A despeito disto, há em referido artigo (que mereceu réplica e tréplica) algumas ideias que merecem aprofundamento crítico. Demétrio Toledo, Regimeire Maciel, Maria Carlotto e Flávio Francisco, autores de uma réplica (Piauí 174 – março de 2021) intitulada “UMA VISÃO NEBULOSA E CONSERVADORA - O texto Parece revolução, mas é só neoliberalismo é uma peça preconceituosa” apontam diversos problemas no artigo e inclinam-se a pensar que o artigo é um ardil conservador.
Em sua tréplica, o personagem-colunista da Revista Piauí volta a se defender com “provas” retiradas de perfis misteriosos do Twitter:
“Docentes e discentes de diversos níveis, áreas do conhecimento, identidades étnicas e raciais, gerações e regiões do país – e inclusive de outros países – aplaudiram a descrição acertada de uma realidade que conhecem bem. Um passeio pela internet pode facilmente corroborar o que digo. Mas, como muitos não terão tempo, interesse ou abertura de espírito para tal passeio, facilito seu trabalho dando uns poucos exemplos, retirados sobretudo do Twitter.
O/a jornalista gremista dono/a do perfil @veronalandia afirmou: ‘[O texto] resume meus 6 anos de atuação em comissão de ética. Denúncias falsas, tentativa de coerção de professores, e estudantes se achando no reclame aqui.’ O perfil @Vadilson_Vix, doutorando em química na Universidade Federal do Espírito Santo, comentou: ‘Tive alunos que achavam que eu tinha a obrigação de aprová-los, e não queriam estudar conteúdos complexos. O artigo é uma síntese do que ocorre em sala de aula Brasil afora.’ (EDIÇÃO 175 | ABRIL_2021 – tréplica - PÓS-VERDADE E CARTEIRADAS DE IDENTIDADE - Condenações e condescendências na universidade pública - BENAMÊ KAMU ALMUDRAS)
É preocupante que tenhamos que utilizar textos de imaginários “Benamê Kamu Almudras” para tratar de crítica literária, política ou sociológica. Ou que uma leitora como Fabiana Moraes tenha que buscar o apoio do The Intercept para poder dirigir-se a Itamar Vieira Junior sem ser agredida por haver se afastado do súbito consenso do ano (‘Ter medo de que, Fabiana?’: uma reflexão sobre minha avó, ‘Torto arado’ e uma língua apunhalada).
Podemos perguntar impunemente ou nossas formulações já nos denunciam ideologicamente? Existem indagações "neutras" e infensas a respostas indesejadas pelo enunciante?
Há, em certos segmentos da esquerda, quem defenda o retorno a uma pauta econômica: a luta de classes pura e simplesmente, vez que as pautas identitárias seriam diversionistas e estariam a beneficiar exclusivamente o capital. Entendo que tal postura é, para dizer o mínimo, anacrônica. Nela, não caberia sequer a luta contra as mudanças climáticas e a destruição da biodiversidade (a não ser nos limites de sua interface com a luta contra o capital). Por outro lado, não deixa de ser sintomática a tentativa de transformação automática do governador do Rio Grande do Sul em líder nacional apenas por haver declarado sua opção sexual (1), desconsiderando-se até mesmo o “detalhe” de suas alianças políticas nas eleições de 2018.
É lícito defender a qualidade de "A reforma da natureza", de Monteiro Lobato? Podemos debater a biografia de Rachel de Queiroz e de Jorge Luiz Borges, de Rubem Fonseca e de Vinicius de Moraes, de Roman Polanski ou de Woody Allen e ao mesmo tempo apreciar sua produção artística? Corremos algum risco se destacarmos a importância de Theotonio Vilella, Paulo Brossard, José Paulo Bisol, Dirce Tutu Quadros, Mário Covas, Lula, Fernando Henrique Cardoso, Lélia Abramo e Ulysses Guimarães para a construção da democracia que vigeu de 1998 a 2016 no Brasil? Um afrodescendente latino pode optar por se identificar como escritor brasileiro simplesmente ou está com isso renunciando ao seu "lugar de fala" (cf. Episódio n. 2 de "Narrativas do Antropoceno" - Ecocríticas no Brasil e nos EUA, Racismo e Pós-Colonialismo) ? A utilização de aspas na expressão "lugar de fala" indica uma citação ou denota ironia? E se discorrermos sobre black blocks ou sobre o recente conflito entre militantes do PCO e do PSDB nas manifestações do dia 4 de julho de 2021 na Avenida Paulista? Mais do que tudo isso, essas perguntas podem ser enunciadas impunemente ou já denunciam ideologicamente aquele que as formula? Existem indagações "neutras" e infensas a respostas indesejadas pelo enunciante?
O medo de que a extrema direita se aproprie das críticas em benefício de sua pauta de retrocessos sociais e culturais, aliado ao temor de desagradar o fundamentalismo de alguns aliados na luta pela justiça social, pela igualdade tributária e fim das isenções e imunidades, pelo respeito à ciência, pela democracia, pelo império da lei e punição dos responsáveis por mais de meio milhão de mortos no país estão reduzindo nossa liberdade de expressão. E isso só beneficia os terraplanistas.
Guilherme Purvin é presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública, Procurador do Estado/SP aposentado e escritor, graduado em Letras (USP) e doutor em Direito (USP).
-1- Ou sua orientação sexual. Vai aqui um outro longo debate linguístico que se acha vedado. Um leitor comentou a respeito deste texto: "Guilherme, vc utilizou o termo 'opção sexual' do governador, em vez de "orientação sexual". Em alguns espaços, caprichosamente, isso bastaria para que alguém desqualificasse seu texto, o que seria, evidentemente, um destacado exagero". Não seria demais observar que talvez o prazo de validade da escolha da palavra "orientação" venha em breve se esgotar, pois a justificação para seu uso implica em eliminar integralmente o elemento "livre arbítrio" e converter o indivíduo em mer objeto, criado por circunstâncias alheias à sua vontade. Em última análise, o uso de uma ou outra palavra traz implícitas duas diferentes formas de visão do mundo - a humanidade como agente de seu destino e senhora de suas escolhas ou como paciente das circunstâncias socioambientais.
E não é que, relendo o injustamente esquecido "O horror econômico", de Vivianne Forrester, na tradução de Álvaro Lorencini que a UNESP publicou em 1997, p. 48, já está presente ali a discussão do uso do identitarismo como estratégia de reforço de posições de poder?
"Ausência de racionalidade? Alguns exemplos.
"Isentar de críticas as classes abastadas, mas acusar certos grupos desfavorecidos de serem menos desfavorecidos que outros. Em suma, de ser um pouco menos humilhado".
Concordo integralmente!
O excelente artigo do Guilherme comportaria vários desdobramentos, mas vou focar-me apenas em "A reforma da natureza", justamente porque, do já proscrito ("apaga da fotografia porque era um tremendo dum racista que não merecia ser considerado na literatura nacional", é o que tem sido dito) Monteiro Lobato, seria um texto que pareceria um aríete para o conservadorismo terraplanista.
É importante, antes de mais, esclarecer aos leitores (nos últimos tempos, confessar ter lido Lobato é arriscado) que esta - "A reforma da natureza" - não é uma obra de doutrina ou de propaganda, nem discute questões raciais, é uma história de ficção, em que a Emília resolve, conseguindo não partir em viagem com os demais habitantes do Sítio, realizar uma obra…