-MAXIMILIANO KUCERA NETO-
A arte existe para incomodar. Quando uma obra não nos deixa inquietos, não mexe com os sentidos ou muda a percepção, é por que não é significativo, ou é apenas mais do mesmo, como um filme de 007. Agora, se provoca asco, traz desconforto ou aquela dúvida – o quê que é isso? –, mesmo machucando o bom gosto, ali pode haver combustível para nos transportar para lugares onde não havíamos estado antes. Quem não tropeçar na linguagem, ao menos nas dez primeiras páginas, de Grande Sertão: Veredas, nem deveria ler o resto. Depois de muito ler, ouvir e ver, o que atrai é o que pode ser novo, e é próprio da virtude da arte jamais esgotar a capacidade de inovar.
Esta inquietação é inevitável em Bacurau (2019), filme escrito e dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, coprodução franco-brasileira que tem recebido críticas que cobrem o espectro do maravilhoso ao horroroso. Ame ou odeie, pois a indiferença não é opção, mas também possível os dois extremos ao mesmo tempo. Ao menos não dormi durante a sessão, para mim um forte indício de interesse. Portanto, como hoje é o dia da Pátria, justo seja feita a homenagem, sem a deselegância de spoilers, abordando uma obra ambientada na porção norte do país. Apesar de apenas implícito, norte e sul teriam se divorciado no futuro, mas é claro tratar-se de mera licença poética.
Repleto de referências cinéfilas para deliciar os críticos, irritar o espectador comum e assumir o kitsch como estética, inclusive na fotografia, Bacurau carrega pesadamente as alusões sociais, políticas e históricas; meu mundo minha aldeia. Verdadeira salada de gêneros, passeia pelo drama, pelo faroeste, pelo terror classe B e pela ficção científica, esta última contextualizada com sintetizadores, drones e referência de que os fatos ocorrem “daqui a alguns anos”, quando convivem harmoniosamente a miséria e a tecnologia dos tablets, smartphones e telas planas. Dessa plasticidade sombria se extrai uma alegoria cruel e atual da pátria adjetivada como amada pelo slogan criado para identificar um governo cuja tônica é o ódio, assim radicalmente contraditória, mas caoticamente coesa em seus múltiplos estados e gentes.
Não por acaso é em Pernambuco o lugar desta Macondo sem água, apesar de filmado no Rio Grande do Norte. Nas vinte e poucas casas do vilarejo há uma igreja que nunca esteve fechada, mas serve de depósito de tralhas, um museu que é o orgulho da população, um posto de saúde que provê vacinas e soro antiofídico contrabandeados, a escola com a melhor biblioteca da região, além do prostíbulo, do bar, da praça, enfim, aquilo que se encontra em lugares muito pequenos, com gente simples. O trivial termina quando os personagens vão assomando a cena, pois o lugar pode ser pequeno e até sumir dos mapas, mas a alma é forte e intensa.
O povo de Bacurau é aquele que o Brasil da máscara despida em 2018 quer negar, ou eliminar, e que se sabe abandonado pelo Estado. Para sobreviver, resta-lhe, obrigatoriamente e a contragosto, se organizar horizontalmente num sistema solidário e autônomo. Desprotegido, a crueldade se torna uma nova companheira. A luta pela água é constante. A polícia não existe. Os medicamentos, só tarja preta – aliviam a dor, mas lesam. A comida acessível tem validade vencida. O artigo de suprimento mais constante são ataúdes, que não param de chegar. A necropolítica, à la Witzel, não foi esquecida.
Quem atua pelo coletivo é cada sujeito, dentro das suas possibilidades. E os bandidos, são, sim, de estimação. Aliás, bandidos para outros fora da comunidade, pois para ela são os heróis. O mais agressivo e selvagem, Lunga, é uma figura andrógina, que defende a água e a comunidade. As figuras centrais se alinham no lado que a pátria amada quer sob o chão: homossexuais, transexuais, gays, lésbicas, pobres, crianças de rua, indígenas, negros, alcoólatras, artistas populares, sem esquecer os professores. Até a médica, interpretada com excelência por Sonia Braga, é alcoólatra e lésbica.
Nada, em Bacurau, é conciliável. É vida ou morte, poder ou submissão, perder ou ganhar. A concertação parece ter ficado no passado nesta ficção distópica de um futuro que está ali, na porta.
No entanto, o povo de Bacurau nutre um sincero sentimento cívico por sua terra. O espaço social urbano é ordenado e cuidado, compartilhado e denso de convivência. As falas públicas não dispensam microfone e alto-falantes, o que as torna solenes, mas sem exibicionismo. A comunicação é um instrumento valorizado nos atos públicos. Os forasteiros são convidados ao museu, que é a atração turística e joia do lugar.
A trilha sonora surpreende, coerentemente, por ser ou muito boa ou muito ruim, neste último caso pelo uso excessivo de sintetizadores. Como mão à luva, Réquiem Para Matraga, de Geraldo Vandré, do filme A hora e a vez de Augusto Matraga: “Vim aqui só pra dizer / Ninguém há de me calar / Se alguém tem que morrer / Que seja pra melhorar / Tanta vida pra viver / Tanta vida a se acabar / Com tanto pra se fazer / Com tanto pra se salvar / Você que não me entendeu / Não perde por esperar.”
Um aspecto muito instigante de Bacurau é a superação de um dos fetiches da sociedade brasileira pós-moderna (ou seria pré-caverna?) e acolhido pelos operadores do Direito como a quintessência em matéria de civilização, a conciliação. Nada, em Bacurau, é conciliável. É vida ou morte, poder ou submissão, perder ou ganhar. A concertação parece ter ficado no passado nesta ficção distópica de um futuro que está ali, na porta.
Isso torna mais compreensível uma das objeções que ouvi ao filme, a de que ele induziria à luta armada. Como sempre, a ficção não é páreo para a realidade. Neste mesmo sentido, a objeção quanto à densidade das imagens violentas. Muitos, hoje, não sabem tratar-se de uma referência histórica à fotografia mais icônica da violência social produzida pela sociedade brasileira do séc. XX, de autoria anônima, com as cabeças arrancadas de Lampião, Maria Bonita e dos principais integrantes de seu bando, que fizeram turnê de exposição intimidatória por diversas cidades nordestinas.
Enfim, ainda bem que é só uma obra artística.
MAXIMILIANO KUCERA NETO é formado em Letras e Direito e Procurador do Estado do Rio Grande do Sul. Escreve todo dia 7 de cada mês.
Max, Maravilhoso o artigo com essa excelente resenha do filme.
Tens razão em quase tudo que dizes, sobretudo na inquietação que o filme que faz à assistência.
Impossível não sair dele Com a “nordestinidade” fortalecida ( ou emponderada, como dito por aí), porque quem “nasce em Bacurau é gente “.
Um grande abraço