- Flávia D'Urso -
Não se teve notícia na história política deste país de fatos tão graves como os que a Polícia Federal cuidou de revelar nessas últimas semanas. Trata-se de uma muito organizada orquestração, originária de integrantes de altos cargos das Forças Armadas, no objetivo mais ofensivo a princípios estruturantes do Estado Democrático de Direito: um golpe de Estado em que se planejava, inclusive, a eliminação física do Presidente da República eleito, seu Vice e um Ministro do STF.
Essa conspiração, demonstrada sobejamente por autoria e materialidade em alentado relatório da polícia, vem prevista no Código Penal como abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art.359, L), golpe de Estado (art.359, M), além do delito de organização criminosa (art.2 da lei 12.850/13). O trabalho investigativo, que acabou por indiciar 37 pessoas e destas 25 militares, incluindo Jair Bolsonaro e os Generais Braga Neto e Augusto Heleno, revela uma portentosa organização deste setor da burocracia estatal. Reuniram-se em: 1. Núcleo de Desinformação e Ataques ao Sistema Eleitoral; 2. Núcleo Responsável por Incitar Militares à Aderirem ao Golpe de Estado; 3. Núcleo Jurídico; 4. Núcleo Operacional de Apoio às Ações Golpistas; 5. Núcleo de Inteligência Paralela; 6. Núcleo Operacional para Cumprimento de Medidas Coercitivas (vide), o que incluía um CPG, vale dizer, um Campo de Prisioneiros de Guerra. Havia menção aliás, como apurado pela Polícia Federal, a uma equivalência de Auschwvitz.
Sem considerar as repetidas investidas para uma intervenção militar de Bolsonaro e seu entorno quando exercia um inacreditável mandato presidencial- mantendo-se ileso por anos de qualquer imperiosa medida legal da Procuradoria Geral da República ou iniciativas do Congresso Nacional- os fatos recentemente noticiados escancaram o coroamento de uma sempre almejada ruptura democrática por parte desse grupo de delinquentes.
Remetido o relatório do inquérito ao Chefe do Ministério Público Federal a manifestação é de que a denúncia, se porventura oferecida, ou a proposta do arquivamento das investigações, só será apresentada em 2025.
Ao que se vê, não há pressa e essa demora só pode beneficiar mesmo os golpistas. Golpistas históricos, diga-se.
É leitura obrigatória o livro recém-lançado do jornalista pernambucano Fábio Victor, vencedor do Prêmio Jabuti, Poder camuflado: os militares e a política, do fim da ditadura à aliança com o bolsonarismo, da Companhia das Letras. Ruy Castro o considerou “excepcional” e disparou em sua coluna na FSP:” Os militares também deviam lê-lo, para aprender sobre os militares”.
Em um melhor jornalismo, bastante pesquisado e de muito fôlego, da reabertura democrática ao questionamento das urnas eletrônicas, assunto que mereceu um núcleo próprio no plano criminoso como se viu, Fábio mostra como a “onda fardada”, que marcou o país com a chegada de Bolsonaro ao poder tem raízes profundas, com características próprias, marcadas pela preservação -e ampliação- de seus interesses, por uma profunda recusa em admitir os erros e de se subordinar plenamente ao poder civil.
Desta imperdível leitura se depreende que os militares, desafortunadamente e ressalvadas honrosas exceções, na sombra ou na luz do dia, foram e são os grandes protagonistas da erosão do Estado Democrático deste país. Articulam-se no móvel de um solene corporativismo, alimentando e retroalimentando estruturas de repressão violentas de organização social. A gênese deste segmento é a ditadura bem como o golpismo e a Polícia Federal, desta feita, esquadrinhou em trabalho técnico primoroso a trama terrorista e atentatória contra a ordem legal da nação.
Nesse contexto efetivamente espantoso cabe, de fato, a indagação das razões pelas quais não se vislumbra, até o presente momento, a necessidade de imposições consistentes em restrições de direitos a verdadeiros bandidos e com vigorosa potencialidade ofensiva.
E fundamentos legais para o decreto de prisões preventivas, não tendo sido representada pela autoridade policial e ainda não requerida pelo Ministério Público, há em demasia.
É consabido aos operadores do direito o trato constitucional da excepcionalidade das prisões na mesma medida em que a violenta e inédita tentativa de ruptura democrática não só autoriza como se exige a compreensão de que estamos tratando aqui de uma, senão a maior, distinção de ações delituosas a justificar a necessidade de contenção.
A gravidade concreta de um crime, de acordo com entendimento tranquilo dos nossos Tribunais Superiores, é fundamento para o decreto de prisões preventivas. Isso porque, o modo de execução particularmente revelador de uma periculosidade social justifica o risco que a liberdade de acusados representa para a ordem pública.
A complexidade de um processo criminal desta envergadura, certamente com número elevado de testemunhas, perícias, de gravações e provas documentais demanda a celeridade dos atos e o cerceamento da liberdade no objetivo mesmo previsto no art.312 do Código de Processo Penal que visa garantir a conveniência da instrução criminal, assim como o asseguramento da absolutamente necessária aplicação da lei penal.
E se alguma dúvida havia sobre a possibilidade de que Jair Bolsonaro não pretende se submeter a uma responsabilização criminal dos fatos foi ela dirimida em entrevista recente na Uol quando disse expressamente que se sente perseguido e que buscaria refúgio em embaixada (vide). No processo penal o risco de fuga talvez seja o motivo mais comum que justifique a cautelaridade de uma prisão.
E isso tudo porque é na jurisdição que o Estado busca a realização do direito material por intermédio da instrumentalização de um processo penal justo e, para além disso, será através dela que seus objetivos sociais primordiais são alcançados: o cumprimento deste direito objetivo material, o ordenamento jurídico preservado em sua autoridade e a paz e a ordem na sociedade favorecidas pela imposição da vontade do Estado (DINAMARCO, Cândido Rangel e ots. Teoria Geral do Processo. Malheiros 2010, P. 151) e não de seus usurpadores.
O que esperar então do Procurador Geral da República?
Não foram poucas as vozes que se ergueram à nomeação de Paulo Gonet, especialmente em momento de grande fragilização das instituições, resultado aliás de ações desta mesma trupe, que ancorada na omissão do ex-Procurador Geral Augusto Aras, buscou de maneira regular uma desestabilização.
Na visão do grupo “Coalizão em Defesa da Democracia” (Grupo composto por diversas representações no âmbito de atuações jurídicas e movimentos sociais , como AJD, MST, Transforma MP, ABJD e o Grupo Prerrogativas - vide), seria necessário que o indicado para o cargo de Procurador-Geral da República tivesse tido “um sólido histórico de defesa de direitos humanos, de atuação efetiva na defesa da democracia e atividade coerentemente orientada pelo projeto constitucional ao longo de sua trajetória profissional”
Em documento este grupo registra que nos anos 1990 Gonet atuou nos julgamentos na Comissão de Mortos e Desaparecidos como representante do Ministério Público Federal. À época, ele votou contra o reconhecimento da responsabilidade do Estado em casos de grande repercussão. Também foi contrário a uma mesma responsabilização no caso das mortes do estudante secundarista Edson Luiz, morto em 1968, bem como no caso dos assassinatos de Carlos Marighela e Carlos Lamarca por agentes de governo à serviço da repressão na ditadura (vide) .
Não bastasse, foi apoiador e executor da Operação Lava Jato (vide), como se sabe, o maior escandaloso precedente de lawfare do sistema judicial brasileiro.
O histórico não parece mesmo alvissareiro especialmente ao se correlacionar um perfil ultraconservador a uma estrutura jurídica na qual perpassam as mesmas contradições de uma sociedade marcada pelo neoliberalismo e seus pérfidos tentáculos também no âmbito criminal quando pratica solene e livremente uma seletividade penal.
O Presidente Lula, a despeito dos traidores da Pátria, subiu a rampa e governa, mas a leniência frente a um ataque tão grave a democracia é a garantia de que novas intentonas seguirão e até mais robustecidas.
Flávia D'Urso - Associada regular e integrante do Conselho Consultivo do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública, a autora é Mestre em Direito Processual Penal pela PUC/SP . Doutora no Programa de Filosofia, na Linha de Pesquisa da Filosofia Política da PUC/SP. Defensora Pública do Estado de São Paulo. Foi Diretora da Escola da Defensoria Pública do Estado e Ex- Coordenadora Chefe de Redes Internacionais do IBCCRIM .Coordenou o Serviço de Assistência Judiciária ao Preso do Estado de São Paulo na Procuradoria Geral do Estado. A partir desta data, passa a publicar regularmente na PUB todo o dia 9 de cada mês.
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