-PATRÍCIA BIANCHI-
Dos textos bíblicos, lendas da mitologia grega, à atualidade, vêem-se os retratos de crenças e sentimentos humanos, com lições e mensagens que costumam ter como base, não apenas questões que envolvem humanidades e seres míticos, mas a própria Natureza. Nesse contexto, essa Natureza sempre se mostrou soberana. Aliás, mesmo em tempos modernos, bem ou mal, ela segue. E nós seguimos com nossos propósitos, cada vez mais desvinculados da nossa comunhão com Ela.
O fato é que nós ainda dependemos da Natureza: do seu ar, suas águas, dos frutos do seu solo, e isso se dá desde a remota lembrança da Humanidade. O antigo testamento da Bíblia traz, por exemplo, histórias como aquela de um Egito assolado por dez “pragas”, que teriam sido enviadas em razão da desobediência às Leis de Deus. A história registrada no livro do Êxodo, capítulos 7 a 12, ocorre no século XIII a.C. Nela, o faraó Ramsés II não teria permitido que os hebreus partissem de suas terras, o que teria ensejado uma série de maldições.
As pragas descritas incluíam o relato de uma sucessão de acontecimentos, como águas se tornando sangue. Em seguida, rãs que invadiram o território do Faraó. Depois, insetos (mosquitos e moscas) disseminados entre a população e animais, com o posterior aparecimento de úlceras, com grande mortandade de gado. Chuva de pedra ou granizo. A oitava praga é mencionada como uma nuvem de gafanhotos que teria escurecido o céu. A nona maldição ter-se-ia revelado por três dias de trevas no Egito, e, por fim, a última foi descrita como a morte dos primogênitos dos egípcios, inclusive, o do Faraó.
Ramsés II teria dado a mão à palmatória após a décima praga, provocando o êxodo do povo hebreu, que seguiu pelo deserto a caminho da terra de Canaã, liderados por Moisés que levara para fora do Egito um grupo que sofria perseguições e a escravidão.
Apesar dessa narrativa religiosa, existem alguns estudos científicos que explicam as maldições descritas. Uma delas é a do físico inglês Colin Humphreys, autor do livro Os Milagres do Êxodo, e a outra foi retratada no documentário O Êxodo Decodificado. Humphreys, professor da Universidade de Cambridge, acredita, por exemplo, que uma grande seca teria sido a responsável pela alteração da água do rio Nilo, e isso teria causado a série de eventos. O cientista britânico entende que as pragas do Egito são, na verdade, uma sucessão de fenômenos naturais. Já o documentário O Êxodo Decodificado aponta a erupção de um vulcão na ilha de Santorini como a gênese dos acontecimentos trágicos.[1]
Nesses sentido, o biólogo canadense Siro Trevisanato, que escreveu o livro “As pragas do Egito” explica que uma grande erupção no vulcão Thera, que fazia parte das ilhas Santorini, atualmente parte da Grécia, causou os eventos em seqüência há cerca de 3.500 anos.[2] Conforme Trevisanato, o vermelho do rio se explicaria pela proliferação de algas marinhas, ou pelo aparecimento de rochas, ou poderia ter sido ainda pela erupção do vulcão que teria causado fissuras no rio, onde as aberturas permitiram a entrada de gás nas águas do Nilo, criando uma ferrugem avermelhada na água. A proliferação de rãs se explicaria pelo fato delas terem sido afastadas das margens do Nilo em razão das toxinas das algas; ou porque o gás liberado pela fissura do rio teria reduzido o nível de oxigênio da água. As moscas teriam sido conseqüência natural da ausência dos sapos no rio, seu predador. Sua proliferação teria se dado ainda pela falta de higiene, desencadeada pela escassez de água potável, e em razão de que a seca teria causado a morte de muitos animais, com as carniças dos bichos atraindo os insetos.[3]
O biólogo alemão Stephan Pflugmacher explica que as algas e toxinas podem causar profundas alterações em meios aquáticos naturais. Para ele, a água “sanguínea” do Nilo pode ser explicada por uma proliferação de micro-organismos que tingiram o rio e tornaram a água imprópria para o uso. Segundo Pflugmacher, “Os egípcios estavam absolutamente corretos ao perceber que a água do ‘Nilo vermelho’ não podia ser utilizada. Mas hoje sabemos que ela não era sangue, mas o efeito de algas microscópicas e cianobactérias. Esses micro-organismos se desenvolvem massivamente quando a água é rica em nutrientes e a deixa vermelha.”[4]
Em termos sócio-religiosos, a narrativa bíblica representava uma forte oposição ao politeísmo egípcio que vigorava na época. Contudo, nesse exemplo, importa destacar que estudos apontam que alterações ambientais comprometeram um elemento fundamental para o povo egípcio: as águas do Nilo. O Nilo, principal bacia hidrográfica do continente africano, passa por 10 países até desaguar no mar Mediterrâneo, por meio de sua foz no Egito. Localizado no meio do deserto, as alterações nas águas teriam o condão de provocar grandes catástrofe/pragas para o país.
“As razões científicas têm muita relevância, pois fazem mitos e histórias como esses serem aceitos e, principalmente, explicam com clareza como aconteceram e como podem ser prevenidos."
Apesar da divergência entre religiosos e cientistas, não há como provar, em estrito senso, que foram eventos sobrenaturais ou eventos meramente ambientais. Isso porque tudo isso ocorreu há muito tempo. Mas diversas pesquisas desenvolvidas nas últimas décadas por físicos, biólogos, geólogos, entre outros, sugerem que a seqüência trágica realmente existiu pelo encadeamento de eventos naturais.
Sobre esse ponto, o biólogo Werner Kloas, pesquisador do Instituto Leibniz, na Alemanha, comenta que “As razões científicas têm muita relevância, pois fazem mitos e histórias como esses serem aceitos e, principalmente, explicam com clareza como aconteceram e como podem ser prevenidos."[5] Nesses termos, a falta de explicações de vários eventos que ocorreram no passado os tornaram mitos. Contudo, hoje tais fenômenos são perfeitamente explicáveis pela ciência, que trabalha tanto para o combate, quanto para a prevenção de outras pragas.
Do Antigo Testamento para a Antiguidade Grega, trago à baila Pegasus, uma das figuras mais emblemáticas da mitologia. Segundo a lenda, Poseidon, deus do mar, era apaixonado por Medusa, um monstro com cabelos de serpente, que transformava pessoas em pedras. Mas o deus do mar não podia tocá-la. Num embate, Perseu derrotou Medusa cortando-lhe a cabeça, e uma gota do sangue dela entrou em contato com a água, tudo ao som de um longo e forte trovão. É nesse momento que surge Pegasus, um belo cavalo alado, que emergiu de uma espuma branca sobre a água, como fruto do amor impossível entre Poseidon e Medusa.[6]
Após esse acontecimento, outro ser mitológico, a Quimera, normalmente descrito como um ser com cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente, estava aterrorizando Corinto, antiga polis (cidade-estado) grega. Então Belerofonte - um belo guerreiro, herói valente da mitologia grega - decidiu lutar contra Quimera. Sabendo que não poderia vencê-la sozinho, Belerofonte contou com a ajuda da deusa Atena, Minerva para os Romanos, linda guerreira, considerada a deusa da civilização, da sabedoria, da estratégia em batalha, das artes e da justiça. Atena lhe entregou uma rédea de ouro para que ele domasse Pegasus. Então, com a ajuda do poderoso cavalo alado, Belerofonte conseguiu matar Quimera e salvar Corinto.
No entanto, depois desse episódio, tomado pelo orgulho e pela vaidade, já que por seus feitos era comumente chamado de divino, entre outros elogios, Belerofonte executou seu plano de voar com Pegasus até o Olimpo, morada dos doze deuses do panteão grego, a fim de juntar-se a eles. Ciente disso, Zeus enfureceu-se com o guerreiro, e ordenou que um inseto picasse o cavalo durante o trajeto a Olimpo. Ao ser atacado, Pegasus acabou derrubando Belerofonte.
Reza a lenda que Atena, vendo a queda do herói, fez com que a terra ficasse fofa para evitar a sua morte. Zeus, Deus Supremo da mitologia Grega, por sua vez, permitiu que Pegasus continuasse a subir cada vez mais alto até alcançar as estrelas, transformando-o na constelação de Pegasus. Já o guerreiro e herói Belerofonte, depois de sobreviver à queda, teria passado o resto da sua vida como um mendigo, à procura do seu Cavalo Alado, sem saber que este o observava dos Céus todas as noites.[7]
Voltando a questão para a “praga” da atualidade, a Covid-19, e isso só para lembrar das biológicas, há narrativas que ainda apontam o governo chinês como o responsável pelo desenvolvimento intencional do coronavírus em laboratório. Contra essas especulações, alguns estudos científicos, incluindo um publicado na revista Nature Medicine, (The proximal origin of SARS-CoV-2),[8] em 17 de março de 2020, traz evidências de que aquele vírus surgiu a partir dos processos naturais de evolução dos seres vivos. Na visão dos cientistas, o vírus passou por seleção natural dentro de um hospedeiro animal e, depois, chegou aos seres humanos – já com sua capacidade infecciosa. Foi de forma semelhante que no passado surgiram os surtos de SARS e H1N1, por exemplo. Contudo, apesar das evidências científicas sobre o assunto, as falsas notícias conspiratórias ainda fazem o maior sucesso, sobretudo nas redes sociais.
Curiosamente, ou não, hoje é consenso que alterações na natureza, em última análise, podem causar epidemias e pandemias contemporâneas, além de tragédias por envenenando/poluição das águas, alterações climáticas, secas, inundações etc. Com a interferência humana para fins mercadológicos em larga escala em ambientes selvagens, teria havido a transferência viral para animais domésticos ou humanos, que adaptaram-se por meio de mutação. Assim, a Covid-19 seria, em última análise, fruto de degradação ambiental desordenada promovida pelo homem, já que o abate a animais silvestres, misturando-os a animais domésticos em galpões chineses sem condições sanitárias mínimas, representa hoje o cenário de maior probabilidade de origem do vírus, segundo cientistas.
O meio ambiente é formado por um conjunto de elementos (ecossistemas) que apresentam vínculos ou relações que se desenvolvem, se transformam ao longo dos tempos. O meio ambiente apresenta complexidade no que concerne aos elementos que o compõem, assim como a dependência mútua dos seus elementos para a formação do equilíbrio que sustenta a vida dos seres. Ademais, o ambiente engloba não somente os elementos físicos, mas também elementos culturais, sociais, econômicos etc. Trata-se de um tema complexo, multifacetado.
Vários estudiosos entendem que o próprio sistema atual (capitalista, predatório etc.), propiciaria as condições e regras necessárias à degradação além do ponto em que o equilíbrio ecológico salutar poderia se restabelecer. Mas, nesse cenário, talvez devêssemos levar em conta que não temos a real autonomia que pensamos ter e, por isso, somos, em grande medida, o reflexo condicionado por uma estrutura que assim não se revela, mas que apresenta certa eficiência e benefício para poucos, no mínimo desde a formação dos Estados modernos.
Hoje, além de Quimera e Medusa, a mídia, aliada sobretudo às redes, exerce grandes poderes que interferem em nossa ilusão de autonomia, aqui entendida em seu sentido amplo. Um breve e pífio exemplo ocorreu com a eleição à presidência do país de um até então desconhecido governador de um pequeno estado brasileiro. Sintonizado com aqueles tempos e com a mídia, o referido candidato assumiu um discurso contra os políticos tradicionais, servidores públicos de altos salários, contra a corrupção, propagandeando sua imagem de “caçador de marajás”. Aqui se criava o mito. Não mais via textos bíblicos, tampouco no contexto da mitologia grega. Agora o processo é instantâneo, e pode ou não ser efêmero.
Nessa terra de mitos e eventos sobrenaturais precisamos ter consciência da nossa mortalidade e fragilidade diante da vida, além de assumir alguns cuidados para que os prejuízos ambientais não atinjam proporções de irreversibilidade. Contudo, em vários pontos da história da Humanidade, tivemos a dificuldade de compreender nossa relação com o próprio meio. Hoje, num tempo onde o individual é supervalorizado e o Narciso prevalece e é cultuado, o coletivo definha.
Nesse cenário, estudos apontam que os mais pobres sentem muito mais o impacto das recessões em tempos de crise, como a do atual coronavírus, tanto pela vulnerabilidade social, quanto pela dinâmica do mercado de trabalho. Na avaliação de Marcelo Medeiros, pesquisador vinculado à Universidade de Princeton nos Estados Unidos, o processo de recuperação da crise até agora quase não gera empregos e praticamente só favorece os trabalhadores de renda mais alta. Segundo ele, “Os mais pobres estão sendo deixados para trás.”[9]
Hoje poderíamos somar ao orgulho e vaidade de Belerofonte vários outros atributos aos humanos contemporâneos. Contudo, guardamos uma similitude com o personagem: buscamos a imortalidade, ainda que esta venha num outro tempo e num outro mundo. Essas são diferentes facetas humanas com significados muito parecidos: seja na antiguidade clássica ou na contemporaneidade, perseguimos Pegasus para que possamos ter acesso ao Olimpo, num trajeto perigosíssimo, que a qualquer momento poderá levantar a ira Daquela que sempre existiu, seja no Egito, no Brasil, em Malta ou no Burundi.
[1] Pragas do Egito: explicação bíblica e teorias científicas https://www.dci.com.br/dci-mais/pragas-do-egito/15507/ [2] https://veja.abril.com.br/ciencia/a-verdade-sobre-as-10-pragas-do-egito/ [3] Pragas do Egito: explicação bíblica e teorias científicas https://www.dci.com.br/dci-mais/pragas-do-egito/15507/ [4] https://veja.abril.com.br/ciencia/a-verdade-sobre-as-10-pragas-do-egito/ [5] https://veja.abril.com.br/ciencia/a-verdade-sobre-as-10-pragas-do-egito/ [6] https://santhatela.com.br/conheca-lenda-de-pegasus/ [7] https://santhatela.com.br/conheca-lenda-de-pegasus/ [8] https://www.nature.com/articles/s41591-020-0820-9 [9] http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/590132-renda-do-trabalhador-mais-pobre-segue-em-queda-e-ricos-ja-ganham-mais-que-antes-da-crise
Patrícia Bianchi é Doutora pela UFSC. Pós-doutora pela USP. Conselheira do CONSEMA e CONAMA. Professora de Políticas Públicas Ambientais do Mestrado em Direito do UNISAL.
Ótimo texto de Patricia Bianchi destacando as consequências das relações entre o ser humano vaidoso e a natureza. O homem frequentemente crê que a domina, enquanto a humanidade lhe é intrinsecamente dependente.
Excelente texto que toca, simultaneamente, em vários pontos: 1) o de a narrativa mítica não ser necessariamente (muitas vezes é, mas nem sempre) uma mentira, mas poder referir-se a um dado plausível cuja explicação nos escape (o fogo fátuo existe, mas durante muito tempo se acreditou que era uma cobra de fogo, o boitatá); 2) o problema da subestimação dos desequilíbrios ambientais em relação à própria habitabilidade dos assentamentos humanos; 3) a questão da disputa de narrativas, em especial quando se trata de estabelecer um "inimigo comum" enquanto elemento de aglutinação de seres humanos heterogêneos (risada mefistofélica do nazista Carl Schmitt); 4) construção de verdadeiros heróis míticos, messias que encarnam as esperanças e o desejo de vinganças contra as frustrações…