- Paulo Torelly -
É inequívoco que há uma enorme desigualdade no mundo e as sociedades são complexas e eivadas de disputas e conflitos. Uma Constituição rígida e analítica com assumido compromisso social em um Estado Democrático de Direito seria uma resposta pretensiosa para superar tal realidade? A opção legitimada pela sociedade brasileira em 1988 e desde então sustentada e confirmada – em diversos e reiterados momentos e não apenas em processos eleitorais – foi a busca do máximo de igualdade e de liberdade para todas e todos nos termos da Constituição. Assim, a superação da ameaça fascista é tarefa contínua de toda a sociedade e de seus integrantes individual e coletivamente e, com ela, segue presente a urgência de uma consciência do alcance e do significado da ordem constitucional republicana, democrática e participativa.
A modernidade lamentavelmente concebeu ditaduras como pretensas soluções de governança, todavia estas não resolveram os graves problemas sociais e econômicos. O autor da Carta aos Brasileiro 1977, em repúdio da ditadura e exaltação do Estado de Direito, GOFFREDO TELLES JR, registrou com acuidade dialética, em sua obra Iniciação na Ciência do Direito, que “A DESORDEM É A ORDEM QUE NÃO QUEREMOS” (TELLES JR., 2001, p. 8), pelo que é plena de significados a assertiva realista de CARL SCHMITT, em seu Teologia política, quando afirma que: “Soberano é quem decide sobre o estado de exceção” (SCHMITT, 2006, p. 7). Trata-se da dimensão cruenta de toda decisão excepcional, que nega o sentido jurídico da norma geral, com o que ao mesmo tempo carece de fundamento jurídico completo e não pode ser uma exceção absoluta (SCHMITT, Ibid.).
A busca de uma dada ordem, para viver em paz e prosperar, tornou clássica a obra de alguns pensadores e inspira os valores republicanos e democráticos. Conciliar liberdade e igualdade e superar a noção autocrática de disciplina e hierarquia é uma tarefa de todo o povo brasileiro que vem sendo concretizada nos marcos da Constituição de 1988. A essência das instituições democráticas – muito antes da publicação da obra-prima de Maquiavel em 1532 (O príncipe) – está nas condições para a superação do medo e na afirmação da vontade de viver de todos indistintamente. Mas a recomendação ética de Kant e seu “imperativo categórico” – “age de tal modo que a tua conduta se torne lei universal” (KANT, 2003, p. 51) – é o que identifica um governante comprometido com a busca do bem comum, eterna lição de TOMÁS DE AQUINO aos governantes (In: Suma Teológica. Segunda Parte, Tratado sobre a lei, Questão 90, art. 2°).
“Quem tem a força tem muitas vezes a razão em assuntos de estado; e o fraco muito dificilmente conseguirá isentar-se de ser culpado no julgamento da maioria das pessoas” (RICHELIEU, 1995, Cap. IX, Seção IV, p. 246). Tais palavras do cardeal RICHELIEU em seu Testamento Político expressam a raison d’état e o sentido autocrático de uma concepção política obsoleta. Com acerto, portanto, Hannah Arendt – judia sobrevivente do nazismo e para muitos a maior filósofa política do séc. XX – fez a necessária distinção entre “violência”, “força”, “autoridade” e “poder” em seu livro Sobre a Violência (ARENDT, 1994, p. 40: “o poder é de fato a essência de todo governo, mas não a violência”), pois a primeira não passa de um meio ou instrumento, que pode ser empregado com ou sem justificativa diante de situações limites, enquanto que as demais expressam a legitimidade dentro da ordem democrática concebida pela soberania popular, titular do poder, com o que freia a violência e pressupõe o reconhecimento e a legitimidade institucional ao também assegurar o direito de legítima defesa e de resistência. O pragmatismo da realidade política não se confunde com o sentido elevado do interesse geral de toda a sociedade, pois a soberania popular e a democracia participativa seguem reivindicando seu legítimo protagonismo.
O mérito republicano da obra-prima de Maquiavel em favor da superação da desordem no final do séc. XV não se confunde com a literalidade de seus conselhos, tomada até mesmo como expressão irônica de uma inteligência arguta diante dos abusos dos governantes. A difusão da informação é papel de todos em uma sociedade aberta e assegura no mínimo uma sanção moral diante de condutas que comprometem o interesse público e o bem comum. O “poder” não é um objeto que se tem ou detém (FOUCAULT, 1999, p. 35), e cedo ou tarde as condutas perversas são superadas pela repulsa social, pois a evolução tecnológica cumpre um papel inédito de difusão da informação e de democratização de uma verdadeira opinião pública, tendo presente, conforme PAULO BONAVIDES lembra, que não se pode “confundir opinião pública com opinião publicada” (BONAVIDES, 2000, p. 460). Um dado de otimismo que nem mesmo o ceticismo de WALTER LIPPMANN impediu o reconhecimento, em seu livro Opinião Pública, de que:
“Quando os homens agem com base no princípio da inteligência, eles saem para descobrir os fatos e obter sua sabedoria. Quando eles a ignoram, vão para dentro de si mesmos e descobrem somente o que há lá. Eles elaboram seus preconceitos ao invés de aumentar seus conhecimentos.” (LIPPMANN, 2008, p. 333)
Muito além da inegável importância de respostas filosóficas em defesa da paz e de uma noção de justiça, a Carta Maior legada por ULYSSES GUIMARÃES e seus pares em 1988 consumou o esforço de superação do caos na busca e afirmação de uma ordem constitucional democrática. É o encontro do Brasil com o resultado de séculos de história das sociedades humanas na superação do arbítrio, o que cobra constante atenção e compromisso social e institucional na sua preservação e, conforme referido em texto antecedente, torna urgente e revigorada a necessidade de uma reflexão e consequente ação em defesa de um Tribunal Constitucional que assegure a vontade do Poder Constituinte originário e mesmo do reformador, quando exercido com a edição de emendas constitucionais que observem os limites implícitos e explícitos constantes na própria Carta Maior. E aqui começa o grande problema, pois não são poucos os paradoxos da justiça e da teoria do conhecimento.
Trata-se da concepção de justiça como valor e como instituição, voltada para a afirmação de um sentido universal do que seja “dar a cada um o que é seu” (ULPIANO, Digesto, Livro I, Título I) segundo uma ideia de igualdade (MONTORO, 1987, v. 1, p. 284), que necessariamente deve atentar para um critério pressuposto, hoje previsto em uma Constituição democrática que define e estabelece compromissos com a justiça distributiva e sua dimensão social, tendo presente, conforme Aristóteles (383-322 a.C.) apontou em seu Ética a Nicômaco, uma “regra de justiça – se as pessoas não forem iguais, elas não terão uma participação igual nas coisas” (ARISTÓTELES, 1996, v. 1., n. 3, 1996, p. 198). Na síntese de EDGAR BODENHEIMER, emérito professor norte-americano de filosofia do direito:
“Uma civilização material e intelectual adiantada será incapaz de assegurar a ‘grata existência’, se não houver também ensinado os homens a equilibrarem os interesses individuais com autolimitações impostas pelo bem dos outros, a respeitarem a dignidade dos seus semelhantes e a traçarem regras adequadas de coexistência, cooperação nos vários planos da vida, inclusive na comunidade internacional” (BODENHEIMER, 1966, p. 236)
Quando o direito permite, obriga ou autoriza uma pessoa, bem como, dentro da melhor publicística, hoje também recomenda condutas mediante incentivos oficiais, a todos vincula, o que deve ser especialmente observado diante de normas constitucionais. Nem mesmo a particularidade de que o direito constitucional, notadamente e em maior medida do que todo o direito, expressa a síntese dialética entre o disposto nos textos jurídico-legais e a realidade, autoriza exceções arbitrárias. Ao contrário, exige mais rigor e cautela, justamente por expressar o que MANUEL GARCIA-PELAYO, primeiro presidente do Tribunal Constitucional da Espanha após a instituição daquela corte com o término da ditadura fascista, aponta como uma tendência fácil – para não dizer leviana – de buscar a “ratio” do conceito de constituição “no en la voluntad de conocimiento, sino en su adecuación instrumental para la controversia con el adversário (GARCIA-PELAYO, 1961, p. 33).
Tais manipulações, por óbvio, são inaceitáveis e, além de corromperem o sentido dos preceitos constitucionais, colocam em risco, tal como os integrantes do STF tardiamente parecem se dar conta, a própria democracia e suas garantias fundamentais. Cumpre, para ficar bem claro, definir o que se entende por arbítrio. Trata-se de preceitos decorrentes da vontade do emissor com a pretensão de representar regras universais. Um entendimento que evidencia o acerto de DANILO ZOLO diante da política ao registrar que “o caráter saliente da decisão política é a sua falta de imparcialidade, é a sua explícita arbitrariedade moral” (ZOLO, 1996, p. 13). Neste sentido SEVERINO BOÉCIO (480-524 d.C.) observou: “dado que todo juízo é um ato daquele que o pronuncia, é preciso que cada um aja de acordo com suas próprias faculdades, e não pela influência de uma causa externa” (BOÉCIO, 1998, p. 145). Este homem de Estado, filósofo e poeta latino do século VI, injustamente acusado e sumariamente condenado por traição em favor de Constantinopla numa Roma governada pelos godos, sofreu com a tortura – ordenada pelo até então tolerante rei Teodorico –, e, antes de morrer, inspirado nas doutrinas de Platão e Aristóteles, escreveu na prisão essa reconhecida obra prima-prima da cultura e do pensamento universal, na qual também observa que: “mesmo entre os seres vivos, o desejo de preservar a vida não parte de uma atividade intencional da alma, mas dos impulsos naturais” (BOÉCIO, 1998, p. 85).
É também necessário, ainda que brevemente, falar sobre o que se entende por legitimidade, com o que será possível entender o papel e as atribuições de cada uma das funções de governo próprias dos poderes executivo, legislativo e judiciário (Constituição, art. 2º). As categorias presentes na sociologia de Max Weber ainda são válidas diante do fundamento de legitimidade consagrado no parágrafo único do art. 1º da Constituição do Brasil: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” A noção de soberania popular afasta qualquer dúvida de que, sem prejuízo do papel inovador da jurisprudência, a instituição de direito novo cabe aos parlamentares eleitos para tal, razão pela qual a validade dos atos do Poder Judiciário é decorrente da legitimidade racional assentada na devida fundamentação no direito posto pelo legislador, o que é diverso dos atos de mera vontade política aceitos como válidos por terem sido emanados de representantes eleitos, pouco importando se por conta do carisma destes, de uma escolha racional dos eleitores ou mesmo da crença na “autoridade do passado” (WEBER, 1999, 57). Trata-se de uma necessária distinção entre um ato de vontade, próprio de um parlamentar ao afirmar “eu quero”, de um ato de conhecimento do direito, próprio de um magistrado, que deve “fundamentar sua sentença e dar à fundamentação uma coerência” (FERRAZ JR, 1994, 262).
O direito não se confunde com a política, o que explicita a importância da obra do legislador, pois, na reflexão de LOPEZ DE OÑATE, “o legislador se vale do arbítrio para eliminar o arbítrio” (OÑATE, 1968, p. 124). Nas palavras de Hermes Lima, professor e Ministro do STF cassado pelo AI-5: “A ordem jurídica assegura a proteção de determinado conjunto de relações sociais e do equilíbrio desse conjunto” (LIMA, 1970, p. 33). Trata-se, com inspiração em Carlos Campos, e apesar das idas e vindas do STF e do Poder Judiciário, da urgência da retomada da dimensão do direito enquanto esfera de segurança e estabilidade institucional, pois ainda é tempo de entender e efetivar a máxima de que: “O direito é o domínio do ‘máximo interesse’ e do ‘mínimo arbítrio’” (CAMPOS, 1995, p. 314). Ao contrário do que sugere Carl Schmitt diante das determinações abstratas do arbítrio e da violência no mundo do ser, a única entidade soberana que se admite na democracia e diante do direito é a CONSTITUIÇÃO!
A ordem constitucional democrática é incompatível com desmandos, e a “razão de Estado” em um regime democrático não deveria ser outra além dos interesses de toda a sociedade em sintonia com a dignidade e os direitos da pessoa humana. A ninguém interessa golpes e contragolpes, razão pela qual o trauma de um impeachment fraudulento, sustentado com a imprescindível omissão do Supremo Tribunal Federal (STF: MS 34193, MS 34371 e MS 34441; impetrante: Dilma Rousseff), ainda será sentido por muito tempo, pelo que cabe apenas ao povo brasileiro a retomada da plenitude do sentido republicano de continuidade da ordem democrática.
O Brasil logo chegará no tempo em que, antes da devida e necessária responsabilização pessoal, a sanção moral – e não o moralismo da crítica seletiva aos corruptos, da manipulação política, do privilégio corporativo e do abuso do poder econômico – terá força suficiente para dobrar governos e mesmo ditadores. O Brasil reúne condições plenas para ser uma referência de inclusão e respeito pela pluralidade (Constituição, art. 1º, V) em uma sociedade “livre, justa e solidária” (Constituição, art. 3º, I). Mas será, como dito, pela vontade consciente de Constituição da sociedade civil, pois é atualíssima a lição do jurista italiano e Deputado Constituinte em 1946/47, signatário do Manifesto Antifascista ainda em 1925, PIERO CALAMANDREI, ao refletir e proclamar no título de uma de suas significativas obras que Lo Stato siamo noi (Op. cit., 2016). Esta é a tarefa de consciência do povo brasileiro, ainda pendente e muito prejudicada – para não dizer sabotada – por segmentos privilegiados pela herança colonial, o que coloca a urgência da sua efetivação para que o texto da Constituição do Brasil passe a ser realidade vivente em uma sociedade verdadeiramente democrática. Como disse o poeta Drummond de Andrade ao falar de Nosso Tempo: “As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei.”
A definição de projetos de nação e da própria identidade nacional não é atributo de quem deve julgar observando as leis e os preceitos constitucionais, pois esta é a obra do Poder Constituinte originário, que, com a superação da ditadura no Brasil, consagrou um texto constitucional inclusivo e de profundo compromisso social e humanitário. Retoma-se, por conseguinte, o tema da urgência e imprescindibilidade de um Tribunal Constitucional para assegurar a efetividade das normas da Constituição do Brasil sem exceções arbitrárias. Mas, para tal desiderato, neste momento há outra urgência maior. O Brasil e seu povo, como decorrência de tantas exceções arbitrárias, hoje carecem de um Governo que respeite e observe a Carta Maior! O próximo dia 30 de outubro de 2022 será um dia decisivo de confirmação plebiscitária da Constituição do Brasil, com o que será possível retomar a plenitude das lutas sociais pela efetividade das normas da Constituição Cidadã de 1988!
PAULO TORELLY é Procurador do Estado do RS, associado do IBAP e Doutor pela Faculdade de Direito da USP.
Paulo Torelly demonstra neste artigo a insuficiência da atual conjuntura política, pois o interesse geral de toda a sociedade não está efetivamente contemplado, nos moldes propostos pela Constituição Federal, por faltar o protagonismo legítimo da democracia participativa, representação real da soberania popular.
O que mais surpreende é que, com a grande contribuição do Ocidente à humanidade no que toca a um parâmetro mais seguro do que a simpatia pessoal ou a crença de que alguns são abençoados e outros malditos para a convivência entre os indivíduos - o constitucionalismo - venha a ser, justamente em nome, menos que das promessas não cumpridas, das esperanças frustradas na superação da barbárie, convertido em alvo de uma desmoralização em face do culto da força pura e simples, em pleno século XXI. O texto de Paulo Torelly retoma, sem dúvida, a brilhante constatação de Georg Jellinek no final do século XIX e início do século XX, do caráter ilusório da crença iluminística do progresso infinito, para…