-RICARDO ANTONIO LUCAS CAMARGO-*
Uma das grandes perguntas que se têm feito com maior frequência nos últimos tempos é a que se volta à persistência do denominado “pensamento mágico” em nossa época tão marcada pelo desenvolvimento tecnológico.
É interessante a hipótese erguida pelo historiador israelense Yuval Noah Harari, no sentido de que, dentre os hominídeos que habitaram o planeta, somente o autodenominado sapiens foi capaz de sobreviver menos em razão de sua aptidão para comunicar-se ou para fabricar ferramentas, mas para estabelecer, mediante abstrações em que todos cressem ao mesmo tempo, elementos de coesão que ultrapassassem o limite dos que se conhecessem intimamente:
“Os humanos, como os chimpanzés, têm instintos sociais que possibilitaram aos nossos ancestrais construir amizades e hierarquias e caçar ou lutar juntos. No entanto, como os instintos sociais dos chimpanzés, os dos humanos eram adaptados para pequenos grupos íntimos. Quando o grupo ficava grande demais, sua ordem social se desestabilizava, e o bando se dividia. Mesmo se um vale particularmente fértil pudesse alimentar 500 sapiens arcaicos, não havia jeito de tantos estranhos conseguirem viver juntos. Como poderiam concordar sobre quem deveria ser o líder, quem deveria caçar onde, ou quem deveria acasalar com quem?
“Após a Revolução Cognitiva, a fofoca ajudou o Homo sapiens a formar bandos maiores e mais estáveis. Mas até mesmo a fofoca tem seus limites. Pesquisas sociológicas demonstraram que o tamanho máximo ‘natural’ de um grupo unido por fofoca é de cerca de 150 indivíduos. A maioria das pessoas não consegue nem conhecer intimamente nem fofocar efetivamente sobre mais de 150 seres humanos.
[...]
“Como o Homo sapiens conseguiu ultrapassar esse limite crítico, fundando cidades com dezenas de milhares de habitantes e impérios que governam centenas de milhões? O segredo foi provavelmente o surgimento da ficção. Um grande número de estranhos pode cooperar de maneira eficaz se acreditar nos mesmos mitos.
“Toda cooperação humana em grande escala – seja um Estado moderno, uma igreja medieval, uma cidade antiga ou uma tribo arcaica – se baseia em mitos partilhados que só existem na imaginação coletiva das pessoas.
[...]
“As pessoas admitem facilmente que as ‘tribos primitivas’ consolidam sua ordem social acreditando em deuses e espíritos e se reunindo a cada lua cheia para dançar juntos em volta da fogueira. Mas não conseguimos avaliar que nossas instituições modernas funcionam exatamente sobre a mesma base. Considere, por exemplo, o mundo das corporações. Os executivos e advogados modernos são, de fato, feiticeiros poderosos. A principal diferença entre eles e os xamãs tribais é que os advogados modernos contam histórias muito mais estranhas” [2019: 35-6].
Como os indícios por ele trazidos são bem razoáveis e parecem presentes em agrupamentos sociais contemporâneos, e coincidem com o resultado a que cheguei em minhas próprias pesquisas acerca do papel desempenhado pelos “fatos institucionais”, frutos do “discurso”, aceito como provável esta constatação [CAMARGO, 2019:90-1].
Em função dela, da capacidade de construir ficções, foram elaboradas tradições, e nestas, até a Revolução Científica verificada no final da Idade Média no Ocidente, foram estabelecidos não só os sistemas sociais como também sistemas cognitivos, sistemas de “verdade” e “falsidade”, e esses sistemas cognitivos também iriam caracterizar-se, num certo sentido, como manifestações da vontade de poder:
“O espírito de compromisso com a realidade não bastou aos seres humanos. Sempre houve e há a vontade de dominar a realidade para torná-la suportável, seja por meio da ciência e da técnica, seja por meio da magia.
A magia desenvolveu-se na humanidade arcaica enquanto a ciência e a técnica começavam a reconhecer e a manipular as coisas. Caracterizada por alguns como uma 'prática do espírito todo-poderoso', a magia traduz a vontade de domesticação e de controle da natureza e do sobrenatural” [MORIN, 2012:152].
É irrelevante, no caso, se a magia consistirá em algo verdadeiro ou falso, se produzirá reais efeitos ou se estes só existirão na mente de quem acreditar nela: o fato real é que o pensamento mágico nasce da ansiedade do ser humano controlar a natureza, submeter o mundo que o circunda para o seu próprio benefício [CAMARGO, 2019:54].
Vale observar, com Harari, que não se pode confundir uma realidade imaginada, como é o caso das virtudes da magia, com uma mentira, já que quem enuncia esta sabe que não corresponde à realidade o respectivo enunciado:
“Ao contrário da mentira, uma realidade imaginada é algo em que todo mundo acredita e, enquanto essa crença partilhada persiste, a realidade imaginada exerce influência no mundo. O escultor da caverna de Stadel pode ter acreditado sinceramente na existência do espírito guardião do homem-leão. Alguns feiticeiros são charlatães, mas a maioria acredita sinceramente na existência de deuses e demônios. A maioria dos milionários acredita sinceramente na existência do dinheiro e das empresas de sociedade limitada. A maioria dos ativistas dos direitos humanos acredita sinceramente na existência de direitos humanos. Ninguém estava mentindo quando, em 2011, a ONU exigiu que o governo líbio respeitasse os direitos humanos de seus cidadãos, embora a ONU, a Líbia e os direitos humanos sejam todos produtos da nossa fértil imaginação” [2019:40-1].
O papel de Francis Bacon no combate aos ídolos da tribo – que consistiriam em levar o indivíduo a atribuir o caráter de verdade universal a experiências que se verificassem condicionadas por particularidades decorrentes do meio a que pertence -, ídolos da caverna – que consistiriam em levar o sujeito a conferir o caráter de verdade universal ao que seja decorrente de circunstâncias particulares de sua vida -, ídolos do foro – que consistiriam a, pelo uso inadequado da linguagem, levar o sujeito a ter uma noção distorcida da realidade – e os ídolos do teatro – que consistiriam no conjunto de crenças que, em função de serem aceitas há tempos, nunca foram submetidas a teste e, por isto, seriam tidas por verdadeiras, ainda que pudessem ser contrariadas – foi o de substituir proposições com capacidade de convencimento somente a grupos determinados por proposições tendentes ao convencimento universal pela respectiva verificabilidade [1902:20-2].
Com isto, pretendeu-se abrir caminho para que o pensamento científico, aberto à crítica e ao controle social, não prometendo a infalibilidade, mas apresentando resultados concretos, aferíveis em qualquer ponto do planeta, viesse a substituir o pensamento mágico, calcado exclusivamente na tradição, incapaz de convencer a quem quer que fosse que não estivesse imbuído da mesma fé em seus pressupostos [ROCHA, 2021].
Com isto, uma das principais bases das hierarquias feudais se abalaria, já que era com lastro numa tradição que se dizia, por sua “vetustez”, lastreada na natureza das coisas, que haveria aqueles mais queridos por Deus, a cujos melhores seria, inclusive, franqueada a visão do Santo Graal, a Taça contendo o Sangue do Redentor, ante um vulgo que era destinado a servi-los para que pudessem desempenhar sua Divina Missão, ou seja, o combate às Forças do Mal sobre a Terra [CAMARGO, 2021].
Entretanto, a ideia do banimento da “magia” pela ciência, mesmo no Ocidente, não se concretizou, por maiores que fossem os concretos resultados desta e os duvidosos resultados daquela:
"A magia permanece escondida em mil pequenas condutas da vida privada, conservação de fetiches ou de amuletos, de fotos ou de imagens protetoras, ritos de superstição, números e dias fastos e nefastos” [MORIN, 2012: 152].
“A magia primitiva foi recalcada pelas grandes religiões que, contudo, integraram práticas mágicas em seus rituais e cultos. Foi também recalcada pelo mundo laico racionalista, mas permanece no campo e desenvolve-se novamente nas cidades, onde proliferam os videntes, curandeiros, marabus. Ainda hoje, os feiticeiros e curandeiros, herdeiros da magia antiga, procedem atuando sobre o duplo da pessoa que devem salvar ou, ao contrário, levar à perdição, seja através da imagem (foto, desenho), seja através de algo pertencente à pessoa (mecha de cabelo, unha). A magia permanece escondida em mil pequenas condutas da vida privada, conservação de fetiches ou de amuletos, de fotos ou de imagens protetoras, ritos de superstição, números e dias fastos e nefastos” [MORIN, 2012: 152].
De outra parte, o entusiasmo do Ocidente pelo progresso das ciências também veio a dar a seus habitantes uma percepção de superioridade em relação aos demais povos e, em função disto, pode-se dizer que ele veio a conferir um discurso de legitimação às aventuras imperialistas das potências europeias:
“A ciência deu aos impérios uma justificativa ideológica. Os europeus modernos passaram a acreditar que adquirir novo conhecimento era sempre bom. O fato de que os impérios produziam um fluxo constante de novo conhecimento os rotulava como iniciativas progressistas e positivas. Mesmo hoje, a história de ciências como geografia, arqueologia e botânica não pode se furtar a dar crédito aos impérios europeus, pelo menos indiretamente. A história da botânica tem pouco a dizer sobre o sofrimento dos aborígenes australianos, mas geralmente encontra algumas palavras amáveis para James Cook e Joseph Banks” [HARARI, 2019:310].
Assim, não somente uma espécie de saudosismo de um tempo em que as hierarquias eram bem definidas à base do que “é”, “sempre foi”, “sempre deve ser”, como uma espécie de rebelião contra uma consequência hierarquizadora da humanidade decorrente da capitalização do pensamento científico, tais são os paradoxais motores de vários tipos de construção de referenciais cognitivos a este exteriores ou que busquem colocá-lo a seu serviço.
Para a construção desses referenciais, seja em se tratando de verdadeiros impostores, seja em se tratando de quem tem uma crença sincera no que prega – não se vai individualizar cada uma das situações -, é por vezes invocada a vetustez de tradições as mais diferentes, buscando-se, para mostrar a veracidade das proposições, identificar os traços comuns entre as narrativas respectivas.
Partindo-se, aqui, do pressuposto da utilização, por parte dos construtores desses referenciais, de fontes idôneas, uma pergunta se impõe: a existência de pontos comuns entre narrativas de diferentes tradições traduz prova suficiente da veracidade dessas narrativas ou traduz indício de comunicação entre os povos que viviam essas tradições?
Não se pense, aqui, que se está a qualificar, de antemão, o que se apresenta como contribuição ao conhecimento humano fora da ciência ocidental como “superstição” ou “forma inferior de conhecimento”, até porque, em primeiro lugar, muitas das narrativas mitológicas, como mostrou a Profa. Patrícia Bianchi [2021], podem ter-se verificado como fatos históricos, embora sem a roupagem maravilhosa com que a imaginação poética as quis cobrir, em segundo lugar, tem-se presente que muitas das grandes descobertas no Ocidente somente foram possíveis a partir das contribuições trazidas, durante a Idade Média, pelos sábios muçulmanos, já que, então, a Europa cristã era majoritariamente analfabeta, em terceiro lugar, o autor do presente texto prefere trabalhar muito mais com a possibilidade de estar a incidir em um erro passível de correção pelos seus leitores do que com a de ser um infalível oráculo, voz da Divindade na Face da Terra.
O que se pretende, com este texto, é deflagrar as perguntas necessárias a evitar que tenhamos, cada um de nós, de buscar um referencial para ocupar um espaço sobre a Terra, deflagrar as perguntas necessárias a que não se retroceda a um momento em que a maior parte da humanidade não era tida como merecedora de consideração pelo simples fato de estar a existir, sem ter pedido, nenhum de seus integrantes, para vir ao mundo.
Porque o próprio conceito de humanidade se põe em risco, no momento em que se passa a sustentar que uns são mais merecedores, diante da Divindade, de existir do que outros.
BACON, Lord Francis. Novum Organum. New York: P. F. Collier & Son, 1902.
BIANCHI, Patrícia. Pegasus e a pretensão de imortalidade dos narcisos. In: https://www.revista-pub.org/post/21012021, acessado em 11 jan 2021.
CAMARGO, Ricardo Antonio Lucas. Política econômica, ordenamento jurídico e sistema econômico. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2019.
CAMARGO, Ricardo Antonio Lucas. Os profetas do passado e as lições de Weimar. In: https://www.revista-pub.org/post/17012021, acessado em 17 jan 2021.
HARARI, Yuval Noah. Sapiens - uma breve história da humanidade. Trad. Janaína Marcoantonio. Porto Alegre: L & PM, 2019.
MORIN, Edgar. O método - 5 - a humanidade da humanidade: a identidade humana. Porto Alegre: Sulina, 2012.
ROCHA, Ibraim. Colapso ambiental, ciência e democracia. In: https://www.revista-pub.org/post/21012021, acessado em 21 jan 2021.
Ricardo Antonio Lucas Camargo* Professor nos cursos de Graduação e Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Professor Visitante da Università degli Studi di Firenze – ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP.
Agradeço o pronunciamento da Madeleine, ao reforçar o caráter efetivamente artificial das hierarquias, que, no entanto, fora do aspecto puramente funcional, não encontram qualquer tipo de justificativa, a não ser a de atribuir a todo o restante do mundo o mero papel de servir a quem se haja posto no topo dessas mesmas hierarquias. E, como bem pontuou, se não fosse capitalizado um imaginário que passa a não se distinguir da realidade, na mente dos que se encontram destinados à condição de obediência, dificilmente se poderia ver vingar a construção das relações sociais nestes termos. A coesão social, não resta dúvida necessitar de uma comunidade de crenças em fatos que, por vezes, existem somente na imaginação, mas por vezes se…
Belíssimo e bem fundamentado artigo do prof. Ricardo Camargo demonstrando a variedade de justificativas encontradas, expostas por Harari e Morin, para diferenciar os seres humanos em categorias hierarquizadas para atender interesses exclusivos de poucos, o grupo dominante, principalmente no âmbito da narrativa do imaginário vertido em simples crença, não confirmada pela ciência, lamentavelmente apoiada e divulgada por esses mesmos segmentos dominados, que a ela se aquiescem confortados por um determinismo artificialmente criado.
Muito obrigado ao Prof. Guilherme Purvin, porque também, ao comentar a reação dos meios de comunicação a atentados no Primeiro Mundo e às constantes catástrofes no Terceiro como algo que pressupõe a distinção entre quem "merece existir" e quem "deve pedir permissão para existir", rende ensejo também a que eu externe, ligado tanto às considerações dele quanto ao meu texto, o problema da forma com que alguns setores que conseguiram hegemonia ao redor do mundo vêm capitalizando as frustrações daquilo que, nos EUA, recebeu a designação de "white trash", os não integrantes dos grupos que historicamente foram excluídos e, no entanto, se consideram mais maltratados do que os desses grupos quando um destes obtém uma posição de destaque ou, de…
As reflexões trazidas pelo prof. Ricardo Camargo superam em brilhantismo as próprias citações de Harari que lhe serviram de mote. Benedict Anderson, discorrendo de forma sóbria e aprofundada sobre o nascimento de nações, demonstrou com maestria a relevância da construção de um imaginário coletivo necessário à coesão popular num mesmo território.
Infelizmente, a afirmação de que alguns são mais merecedores de existir do que outros sempre foi reiterada ao longo da história da humanidade. Basta, para tanto, meditarmos acerca do foco editorial nos meios de imprensa quando se trata de um atentado terrorista em Paris ou um ataque por serial killer em alguma escola numa cidadezinha estadunidense em confronto com as centenas ou milhares de mortes nos mais de cinquenta…