- Ricardo Antonio Lucas Camargo -
Quando se fala no “idoso”, tem-se presente o dado de que só existem dois destinos possíveis para o ser humano vivo: ou o denominado “envelhecimento” ou a morte. Além da Ilíada e da Odisseia, atribuiu-se a Homero uma série de Hinos dedicados a cada um dos deuses do Olimpo e, no dedicado a Afrodite – a Vênus dos romanos -, é narrada a história de Titono, irmão de Príamo, o último rei de Troia, e Eos, a Aurora. A deusa em questão levou Titono para os confins da terra e solicitou a Zeus que a ele concedesse o dom da imortalidade, esquecendo, entretanto, de pedir que a sua juventude fosse eternizada. O príncipe troiano, após uma primeira fase de plena felicidade ao lado da deusa, foi sendo acometido pelo envelhecimento, com todas as limitações físicas que o acompanham, até que sua imortal e eternamente jovem companheira veio a encerrá-lo num quarto luxuoso.
Quando tomamos, pois, o lugar do idoso na sociedade – o que vai ter repercussões no tratamento jurídico respectivo, a ponto de variar a própria definição de “idoso” de acordo com as peculiaridades da relação jurídica que se tenha sob consideração, como demonstrou o Professor Césio Sandoval Peixoto na sua tese de doutoramento (A construção de um conceito jurídico de idoso: a necessária adequação à realidade em transformação e aos princípios constitucionais) defendida na Universidade Federa do Rio Grande do Sul em fins de 2019 -, pensa-se em alguém cuja contribuição para a vida em sociedade pode ser tida como já dada ou, conforme as habilidades que tenha desenvolvido, alguém que pode dar uma contribuição de natureza distinta daquela que exigiria um maior vigor físico, normalmente aquela contribuição que, segundo Camões, estaria lastreada no “saber de experiências feito” que qualificava, nos Lusíadas, o Velho do Restelo. A decadência física, no sentido das habilidades exigentes de força e agilidade – o caso do Lidador nonagenário comemorando seu último aniversário em combate com os mouros, narrado por Alexandre Herculano (Histórias heroicas), mesmo com os avanços da medicina, hoje, seria uma raridade -, reclama respostas do direito, e mesmo pensadores ligados ao liberalismo não defendem, no contexto ocidental, que se o deixe ao desamparo. A estrutura de um serviço público para o pagamento de benefícios de natureza previdenciária para o idoso e os seus dependentes, pensada na Alemanha recém-unificada por Bismarck, que, ao enfrentar uma necessidade real, solapou em especial a atuação dos socialistas, é adotada na maior parte dos países do ocidente. Entretanto, as alegadas limitações financeiras da previdência vêm, cada vez mais, fundamentando modificações no próprio conceito de idoso, postergada a idade a partir da qual ao indivíduo passa a não mais ser exigido que, pelo próprio braço, faça o seu viver, como diria Fernando Brant. Recordemos que as reformas da previdência foram, desde a Emenda n. 20, de 1998, realizando maiores restrições a que o indivíduo pudesse habilitar-se à percepção dos benefícios.
No contexto da pandemia, notou-se que o grupo de vulnerabilidade mais evidente são os idosos. Mesmo os adversários do recolhimento, que juram, sob críticas que já compareceram a este veículo (vide Paulo Velten, acessado em 5 jun 2020; Patricia Bianchi, acessado em 20 abr 2020; Carlos Marés, acessado em 1 abr 2020; Marie Madeleine Hutyra, acessado em 27 mar 2020; Guilherme Purvin, acessado em 29 mar 2020; e Ricardo Camargo, acessado em 8 abr 2020) que a economia não se pode submeter a sentimentalismos com a saúde de quem não mostra utilidade para a existência das pessoas superiores, não têm dúvidas de que os idosos não devem ir às ruas, embora já se tenha visto, em um país onde o perigo de uma recaída na extrema-direita é bem mais remoto, um dos que ajudaram a terminar o ciclo salazarista viesse, de repente, a sustentar a proposição fascista da existência de um dever de heroísmo da parte dos idosos, como se o heroísmo não fosse exatamente excepcional, merecendo a justa reprimenda do escritor Valter Hugo Mãe (acessado em 5 abr 2020). Contudo, os riscos a que sujeitos os idosos não são esconjurados pelo fato de permanecerem em casa, embora, claro, sejam minimizados. Recordemos, em primeiro lugar, que, conforme a posição social, as probabilidades de serem eles contagiados serão maiores ou menores. Idosos que convivam com parentes ou outras pessoas que tenham, necessariamente, de estar expostas ao contágio, como guardas de trânsito ou técnicos de enfermagem, correm o risco, ainda que os parentes sejam “assintomáticos”, que não adoeçam.
Abra-se um pequeno parêntesis em relação aos “assintomáticos”: tive a curiosidade de ir ao sítio da OMS para verificar a nova descoberta de que é rara a transmissão da COVID-19 por indivíduos assintomáticos, tida como uma "retratação" em especial pelos negacionistas: seria um pronunciamento da Dra. Maria van Kerkhove, no briefing do dia 8 de junho de 2020 (acessado em 9 jun 2020), e verifiquei que o pronunciamento, de acordo com a transcrição ali constante, nos minutos 32:33 a 34:04, diz que a proporção só pode ser aferida mediante a observação dos assintomáticos, e que a conclusão a que se chegou decorreu de indivíduos que tiveram de ser descobertos e seguidos, até porque também é tênue a diferença entre o assintomático e o sujeito acometido de doenças mais suaves, o que me leva a lembrar que o “assintomático” portador somente é identificado, mesmo, quando alguém na família acaba contraindo o vírus, e, exteriormente, entre o assintomático portador e o não portador não existe nenhuma diferença, de tal sorte que só seria possível, para se chegar a uma identificação mais segura, mediante uma solução que repugna a qualquer democrata que se preze, qual seja, colocar agentes de rastreamento - espionagem - no trajeto diário de cada cidadão.
Por outro lado, retornando ao idoso, não se pode esquecer que existem residências que sequer divisórias, em especial nas favelas, sem contar com a realidade dos moradores de rua (vide João Alfredo Telles Melo, acessado em 15 abr 2020). Estas questões o mercado não tem como resolver, por si próprio, até porque não têm como ser traduzidas em termos de um encontro da oferta com a procura: exigem, por menos que os seguidores da linha Paulo Guedes gostem, uma implementação de políticas públicas em que o Estado efetivamente atue, em caráter positivo, sobretudo na preservação dos direitos postos pelo artigo 230 da Constituição Federal e pela Lei 10.741, de 2003, em especial no artigo 15, § 1º.
Não pretendi, aqui, realizar um estudo exaustivo das percussões da doença no status jurídico do idoso, até porque o tempo não permitiria, e tampouco ofertar soluções, até porque crer que se tem a solução ao alcance da mão é uma atitude intelectualmente temerária. O levantamento dos problemas, para que, a partir das respectivas características, se possam identificar o remédio adequado e os efeitos colaterais com que se está disposto a arcar, tal é a responsabilidade de quem fala em nome do lugar por excelência de produção do conhecimento. A consciência de cada qual e a necessidade de o Estado não se demitir do dever de prestar serviços públicos, ao invés de se tornar mero portador e utilizador do porrete contra os indesejáveis de acordo com a visão das forças políticas que estejam em vantagem, ainda se põem como exigências da realidade.
Ricardo Antonio Lucas Camargo é Professor nos cursos de Graduação e Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Professor Visitante da Università degli Studi di Firenze – ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP.
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