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Assédio e Discriminação na Administração Pública: Um Tema Plural


-Renata Fabiana Santos Silva-



O Assédio (Moral e Sexual) e a discriminação, cada vez mais, são objeto de discussão nas organizações públicas. Estes temas não são novos, mas a forma de abordagem e o tratamento destas questões no ambiente corporativo público constituem a grande novidade. A atual preocupação das organizações públicas com a saúde mental dos seus colaboradores, descortinada com a pandemia do COVID-19, também reflete esta nova perspectiva dada ao tema, uma vez que o assédio e a discriminação são fatores que repercutem de forma significativa na saúde física e psíquica do agente público.

 

No Brasil, podemos apontar como principal causa do assédio (em todas as suas formas) e da discriminação, o nosso passado escravagista, patrimonialista e patriarcal. Não podemos esquecer que neste passado, não tão distante, o senhor de engenho não era apenas o dono do trabalho, mas também do corpo e da alma do seu escravo, produzindo um intenso terror físico e psicológico. Este terror era tão intenso que perdurava mesmo após a alforria da pessoa escravizada, já que até 1871 era possível a revogação da alforria por ingratidão. (1)


Para compreender o quanto o nosso passado pesa na compreensão do assédio e da discriminação nos dias atuais, é importante referenciar a pesquisa M.A.P – Mulheres na América Portuguesa, capitaneada pelas Professoras Doutoras Maria Clara Paixão de Souza e Vanessa Martins do Monte, que busca construir um catálogo eletrônico de documentos escritos por mulheres ou sobre mulheres na América Portuguesa. Algumas dessas histórias foram publicadas no Portal G1, sob o título “Voz das Mulheres” (2), traçando um paralelo das dores e angústias das mulheres do Brasil Colônia e da atualidade.

 



Imagem - Pixabay

Uma das histórias do Brasil Colônia é a de Feliciana Coelha, que mesmo após alcançar sua liberdade, foi vendida junto com seus cinco filhos, nascidos de ventre livre. Esta situação, desafortunadamente, ainda pode ser vista nos dias de hoje, em que pessoas ainda são escravizadas. O Ministério do Trabalho e Emprego, no ano de 2023, contabilizou mais de 3,1 mil pessoas submetidas a condições análogas à escravidão, sendo que as atividades econômicas de maior incidência são a produção de carvão vegetal, criação de bovinos para corte, serviços domésticos, cultivo de café e extração e britamento de pedras (3). Como se vê, estes valores escravagistas e patrimonialistas, mesmo após o fim formal da escravidão, ainda são muito presentes em nossa sociedade, o que, de certo modo, permitiu a naturalização de condutas assediadoras e discriminatórias. Além disso, as emoções e sentimentos (medo, horror, submissão) que marcam a escravidão também estão muito presentes nas situações de assédio e discriminação. 


No âmbito da Administração Pública, embora não exista margem para o labor em condições análogas à escravidão, podemos vislumbrar práticas identificadas com os valores do Brasil Colonial que degradam o ser humano e estão fundamentadas na ideia de superioridade, perversidade e misoginia.

 

Não obstante, precisamos recordar que o Estado Brasileiro tem como principal fundamento a dignidade da pessoa humana e possui como objetivos fundamentais: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a redução das desigualdades sociais e regionais; e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. 


Além disso, diversos documentos internacionais estão centralizados na dignidade da pessoa humana, cabendo destacar para o tema aqui examinado a Convenção nº 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre discriminação em matéria de emprego e profissão (1958); a Declaração da OIT sobre os princípios e Direitos Fundamentais do Trabalho (1998); a Convenção Interamericana para a eliminação de todas as formas de discriminação contra as Pessoas portadoras de deficiência (1999); a Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (2015); e a Convenção nº 190 da OIT, sobre a Eliminação da Violência e do Assédio no Mundo do Trabalho (2019).

 

No que toca à Convenção 190 da OIT, cabe registrar que esta norma internacional representa um marco importante no reconhecimento da violência e do assédio no ambiente de trabalho como violações fundamentais de direitos humanos, sendo aplicável a todas as pessoas independentemente da sua situação contratual. Outrossim, esta norma tem um caráter inovador na medida que trata de igualdade e não discriminação juntamente com a segurança e saúde no trabalho. O Brasil iniciou o processo de ratificação da Convenção 190 da OIT em 2023, restando ainda etapas para a sua completa incorporação ao ordenamento jurídico. Sem embargo, a sua principiologia pode e deve ser absorvida na interpretação das normas internas, uma vez que o seu princípio vetor é a dignidade da pessoa humana.

  

Neste contexto normativo, não podemos afastar o dever do Estado Brasileiro de pugnar pela dignidade das pessoas e protegê-las do assédio e da discriminação. A Administração Pública, por sua vez, em suas relações internas e externas, deve ter como norte a dignidade da pessoa humana, bem como buscar a realização dos objetivos fundamentais estampados na Constituição Federal. Ademais, no que toca às Administrações públicas, a Constituição estabelece expressamente no caput do art. 37 a sua submissão aos princípios da legalidade, impessoalidade e moralidade, de maneira que não podem ser permissivas e complacentes com o assédio e a discriminação.

 

Para impingir políticas efetivas e eficazes de prevenção e combate ao assédio e a discriminação, no âmbito das Administrações públicas, é imperioso o reconhecimento do pluralismo.  Não podemos esquecer que a nossa Constituição, já no preâmbulo, dispõe que o Estado Democrático por ela instituído se destina a garantir o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”.  Mas em que consiste este pluralismo?


Segundo ROBLES, considerar o pluralismo como “un valor significa reconocer que la sociedad debe ser plural, que sus miembros tienen que buscar una situación de pluralidad que refleje la diversidad de ideologías, intereses y puntos de vista” (4). BOBBIO, por sua vez, elucida que as sociedades complexas são mais bem organizadas quando adotam sistemas políticos que permitem a expressão dos diversos grupos ou camadas sociais, seja direta ou indiretamente, para a formação da vontade coletiva (5). Portanto, do ponto de vista das Administrações públicas, sobretudo em suas relações internas, o pluralismo precisa ter como diretriz o fomento à diversidade, equidade e inclusão.


Para prevenir e combater o assédio e a discriminação na Administração pública não basta pugnar pela diversidade, é preciso integrá-la a equidade e a inclusão. Por isso TIMÓTEO (2022) salienta que ainda que exista um corpo funcional diverso, a discriminação e a violência simbólica podem estar presentes no ambiente de trabalho, impedido o ideal de inclusão se concretizar (6). Também enuncia a importância da equidade, uma vez que ela “está ligada a promoção de justiça por meio do fornecimento de condições diferenciadas a certos grupos a partir do reconhecimento de barreiras que historicamente tem dificultado a sua participação nos ambientes organizacionais” (7). Portanto, a diversidade, a inclusão e a equidade compõem este tripé que possui o condão de transformar a cultura das organizações públicas, viabilizando ambientes de trabalho saudáveis e livres de hostilidades.

 

No âmbito da Administração Pública, e aqui nos referimos não apenas ao Poder Executivo, podemos vislumbrar muitas iniciativas que estão sendo adotadas para prevenir e punir o assédio e a discriminação. O CNJ, por exemplo, instituiu a Política de Prevenção e Enfrentamento do Assédio Moral, do Assédio Sexual e da Discriminação no Âmbito do Poder Judiciário, através da Resolução nº 351/2020. O Poder Executivo Federal, através da Lei Federal nº  14.540, de 03 de abril de 2023, instituiu o Programa de Prevenção e Enfrentamento ao Assédio Sexual e demais Crimes contra a Dignidade Sexual e à Violência Sexual no âmbito da administração pública, direta e indireta, federal, estadual, distrital e municipal. Cabe ainda citar a Portaria Normativa AGU nº 85, de 24 de fevereiro de 2023, que instituiu o Comitê de Diversidade e Inclusão da Advocacia-Geral da União; a Portaria ENAP nº 310, de 21 de setembro de 2020, que instituiu o Comitê de Gênero, Raça e Diversidade da Escola Nacional de Administração Pública; e a Rede Equidade, que consiste em uma rede de referência nacional na promoção da inclusão da diversidade na Administração pública.


Não obstante, constatamos que em doze estados federados não existe previsão legislativa específica sobre proibição do assédio (moral ou sexual) no contexto da Administração pública estadual (8). Este é um elemento que dificulta a efetiva prevenção e punição destas condutas no âmbito das Administrações públicas estaduais, ocasionando desconhecimento, insegurança jurídica e baixa resolutividade das ocorrências. 


A falta de regulação normativa específica para o assédio e a discriminação não pode significar inação estatal no trato destes temas. Algumas ações podem ser realizadas pelos órgãos das Administrações públicas locais com o objetivo de prevenir e evitar a impunidade. A criação de Comitês de Diversidade, equidade e inclusão no âmbito dos órgãos locais, por exemplo, pode constituir uma ferramenta eficaz na prevenção e combate as condutas assediadoras e discriminatórias (9).

 

As organizações públicas possuem interesse em desenvolver ambientes internos e externos saudáveis, onde o respeito à dignidade do outro não seja apenas um discurso vazio, mas algo materializado no seu cotidiano. Ademais, é certo que as ações realizadas na intimidade da Administração pública reverberam para o externo, propagando uma cultura de não discriminação e combate ao assédio em âmbito público e privado.


Existe, portanto, muito trabalho a ser feito. Seja na apuração e punição das condutas assediadoras e discriminatórias, seja na seara da prevenção, promovendo letramento, orientação e formação. Para que não tenhamos outras histórias envolvendo os valores e emoções do escravagismo, é preciso reconhecer as fragilidades e trabalhar duro na transformação da cultura organizacional em nossas Administrações públicas. Assim, estaremos no caminho para a promoção da dignidade humana no setor público e efetivamente não deixar ninguém para trás. 


Referências


BOBBIO, N. As ideologias e o Poder em Crise. Quarta edição. Brasília: Editora

Universidade de Brasília, 1999.

SILVA, R.F.S. “Diversidade, equidade e inclusão na administração pública: a

importância da institucionalização dos comitês de diversidade no serviço

público”. In: BARROSO, A.P.; SILVA, A.P.F; PINHEIRO, G. (ORGS). DIREITO

NEGROREFERENCIADO III: justiça, insurgência e resistência

ancestral. Salvador: Mente Aberta, 2023, pp. 118-128.

TIMÓTEO, M. D. O. “Estratégias de diversidade, inclusão e equidade de

gênero e raça em órgãos da administração pública federal: Avanços e

desafios”, em Revista do Tribunal de Contas da União, v. 1, nº 150, 2022.


Notas


1 Cfr. MOURA, C. Dicionário da Escravidão Negra no Brasil. São Paulo: Edusp, 2022, p. 24.

2 Vid. PORTAL G1. Voz das Mulheres: Documentos relatam as angústias e as dores das

mulheres do Brasil Colônia, como abuso sexual, violência doméstica, abandono, desigualdade de gênero - heranças vividas até os dias de hoje. Disponível em: https://especiais.g1.globo.com/g1-15-anos/2021/voz-das-mulheres/. Acesso em: 10 de junho de 2024.

3 BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. TRABALHO ANÁLOGO À ESCRAVIDÃO: MTEresgata 3.190 trabalhadores de condições análogas à escravidão em 2023. Disponível em:https://www.gov.br/trabalho-e-emprego/pt-br/noticias-e-conteudo/2024/janeiro/mte-resgata-3-190-trabalhadores-de-condicoes-analogas-a-escravidao-em-2023. Acesso em: 10 de junho de 2024.

4 Cfr. ROBLES, G. Los Derechos fundamentales y la ética en la sociedad actual. Madrid:

Editorial Civitas, 1995, p. 156.

5 Cfr. BOBBIO, N. As ideologias e o Poder em Crise. Quarta edição. Brasília: Editora

Universidade de Brasília, 1999, p. 16.

6 Cfr. TIMÓTEO, M. D. O. “Estratégias de diversidade, inclusão e equidade de gênero e raça

7 Cfr. TIMÓTEO, M. D. O. (2022). Op. cit., p. 151.

8 Vid. REPÚBLICA.ORG. Tipo de legislação e conceituação sobre assédio no âmbito da

9 Sobre os Comitês de Diversidade, equidade e inclusão na Administração Pública, vide: SILVA, R.F.S. “Diversidade, equidade e inclusão na administração pública: a importância da vinstitucionalização dos comitês de diversidade no serviço público”. In: BARROSO, A.P.; SILVA, A.P.F; PINHEIRO, G. (ORGS). DIREITO NEGROREFERENCIADO III: justiça, insurgência eresistência ancestral. Salvador: Mente Aberta, 2023, pp. 118-128. MOURA, C. Dicionário da Escravidão Negra no Brasil. São Paulo: Edusp, 2022. ROBLES, G. Los Derechos fundamentales y la ética en la sociedad actual. Madrid: Editorial Civitas, 1995.


 

Renata Fabiana Santos Silva é Procuradora do Estado da Bahia. Doutora em Direito pela Universidade de Sevilha (Espanha). Mestra em Direito Público pela Universidade de Sevilha (Espanha). Pós-graduada em Fundamentos de Direito Público Global pela Universidade Da Corunha. Membro do IBAP.



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