- Guilherme Purvin -
Alerta: este artigo trata incidentalmente de crianças, mas sua leitura não é recomendável a crianças e adolescentes.
Os democratas (de direita, centro ou esquerda) estão estarrecidos com as declarações dadas em Goiânia, durante culto na Assembleia de Deus Ministério Fama neste final de semana, pela recém-eleita para o cargo de Senadora Sra.Damares Alves, ex-Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos.
Sua fala dizia respeito à mutilação e tortura de crianças na Ilha de Marajó (PA), para fins de pedofilia. Quem tiver estômago, que veja o vídeo abaixo (ainda disponivel no dia de hoje, 12/10/2022):
Diante de tamanho absurdo, juristas e jornalistas chegaram a uma conclusão: se é verdade o que ela disse, terá cometido, em tese, crime de prevaricação, por não haver adotado nenhuma providência administrativa nem ter solicitado a atuação do Ministério Público Federal e da Polícia Federal, mesmo ciente do cometimento de crimes previstos nos artigos 228 e 229 do Código Penal e no 217 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Se é mentira, terá no mínimo plantado uma notícia falsa com a finalidade de causar comoção pública.
Em tempo recorde, o diligente MPF do Pará requisitou informações ao dito Ministério, para que apresentasse no prazo de três dias as provas dos fatos denunciados e explicasse a razão da inércia na tomada das providências cabíveis.
Destaco um primeiro dado que considero importante: a despeito da imprensa a estar chamando de Senadora, essa senhora ainda não foi empossada - portanto, não tem foro privilegiado. Não é mais ministra e ainda não é senadora.
Aí todos chegamos à conclusão de que a mulher deu um tremendo tiro no próprio pé e terá que responder pelo crime ou retratar-se publicamente da mentira.
Penso, porém, que Damares Alves está muito longe de ser ingênua. E aí vem a enorme diferença entre o mundo que vivemos, de observância da Constituição e das leis, e o mundo em que vive a extrema-direita.
Em 2019, encontrava-me em Varsóvia, onde, como se sabe, a direita também se acha no poder. Era dia festivo, de realização das eleições para o Parlamento Europeu e, por toda cidade, ouvia-se o coral da 9ª Sinfonia de Beethoven, hino oficial da Europa. A população andava pelas ruas de pedestres cautelosamente, em meio a um forte contingente de policiais. O que me chamou a atenção, no entanto, foi uma aglomeração ao redor de um stand, repleta de bandeiras cujo significado desconhecia. Apanhei um dos panfletos distribuídos e, com auxílio do tradutor do Google por câmera, entendi que aquele era um grupo da extrema-direita e que a sua bandeira era a luta contra a esquerda porque seus adeptos... adivinhem... praticam pedofilia!
Entendi naquele momento que essa poderosíssima imagem da pedofilia alcança com imensa força o nosso imaginário. Quem de nós, seja de que matiz político for, teria condescendência para com alguém acusado de violência contra crianças e pedofilia? A acusação fica grudada para sempre à pessoa, mesmo que ela venha a ser inocentada em devido processo legal. Basta lembrar do famigerado do caso dos professores da Escola Base, na Aclimação.
Poucos meses antes, no mesmo ano, ocorria uma diligência policial estrepitosa, digna de ser utilizada para a captura de algum perigosíssimo homicida, no interior do Campus da USP no Butantã, no prédio de Letras da FFLCH. Tratava-se de uma megaoperação contra pedofilia, conforme reportagem na Folha de S.Paulo de 28/3/2019. O acusado, um jovem estudante cuja identidade não foi divulgada, foi retirado de uma das salas, sob um esquema de segurança . Em nota divulgada pela assessoria de imprensa da USP, é dito que “policiais civis uniformizados e fortemente armados entraram em salas de aula para buscar um aluno acusado de crime potencialmente grave que choca a comunidade”. A USP questionou a forma como a prisão ocorreu. “Chocou-nos a desproporcionalidade entre os fins e os meios do procedimento policial”. De acordo com a universidade, a chegada dos policiais interrompeu as aulas. “Para quê mobilizar duas dezenas de policiais uniformizados e com uso de metralhadoras para prender o acusado nos prédios da USP?” (...). “Não vamos aceitar calados que a imagem da FFLCH-USP e a autonomia desta instituição sejam violados por ações injustificáveis. O mais do que necessário combate à criminalidade não pode justificar a agressão às instituições universitárias”.
Pelo tom da nota, é perfeitamente possível sentir que a assessoria de imprensa da USP estava pisando em ovos: não podia de forma alguma permitir que se sugerisse conivência com um crime em tese cometido por um aluno e, ao mesmo tempo, tentava manifestar sua irresignação com aquela invasão policial aparatosa em pleno horário de aula. Lembro que, na época, Sérgio Moro era o Ministro da Justiça e Segurança Pública e uma das imagens que queria passar era de intrépido defensor da família e das crianças diante de uma fantasiosa tendência da esquerda à prática consagrada pelos gregos na era de Péricles.
Volto à fala de Damares Alves. Essa senhora não é ingênua e não dá ponto sem nó. É evidente que falava para uma plateia, num lugar onde, supostamente, teria total liberdade de expressão: num culto religioso. Daí a acreditar que ela não sabia que seria filmada e que o seu discurso viralizaria na rede vai uma longa distância.
O que ocorre, em resumo, é que essa bandeira, da luta contra a pedofilia (e é mundialmente conhecida a exploração turismo sexual envolvendo prostituição infantil em certas cidades brasileiras), atinge diretamente o coração das pessoas ditas de bem. E é mesmo para atingir. Com um detalhe: continua atingindo mesmo se houver retratação do caluniador ou absolvição do acusado por inocência.
Então Damares Alves não tem medo de ser processada criminalmente, de perder o mandato antes mesmo de tomar posse? Eu diria que não. E isto porque a extrema-direita se preparou ao longo destes quase quatro anos para o que ocorrer no dia 30 de outubro. Eles não têm nem nunca tiveram medo do Poder Judiciário. Eles são, no verdadeiro sentido da palavra, foras-da-lei. Assim sendo, Damares provavelmente jamais admitirá que mentiu. Ela não esconde de ninguém que seus inimigos são a imprensa livre, o STF e o próprio Congresso Nacional. Ela está tranquila porque toma como certo que estamos às vésperas da implantação de uma ditadura de extrema-direita que a protegerá, com o apoio dos seus seguidores (muitos deles, possivelmente, adeptos do turismo mencionado acima).
O que fazer agora? Não tenho a menor ideia, mas imagino que, se não quisermos ver a definitiva destruição da nação brasileira, será preciso muito mais do que alguns milhares de militantes de camiseta vermelha nos palanques. Será preciso um irrestrito apoio do mercado, das igrejas verdadeiras, de uma imprensa que não se acovarde naturalizando o terror do fascismo.
Ótimo texto.
Lamentável em todo e qualquer sentido. A reação institucional tarda e falha, mais uma vez.
Deus, Pátria, Família...e a certeza de que o discurso conservadoríssimo será tolerado mesmo que, em tese, corresponda a um crime e seja inequivocamente prejudicial às crianças e adolescentes. Parabéns ao Guilherme Purvin.