- Guilherme Purvin -
Numa época em que lemos, estarrecidos, a reportagem da Piauí sobre o assédio sexual e moral sofrido por Dani Calabresa, atriz conhecida nacionalmente, assédio este ocorrido dentro das dependências da mais importante rede de comunicação do país, por parte de Marcos Melhem, e da resposta tíbia da empresa à denúncia em âmbito interno; e em que somos informados que o jogador de futebol Robinho, mesmo depois de condenado em segunda instância por estupro coletivo, deverá continuar vivendo tranquilamente no Brasil – longe que está dos efeitos jurisdicionais do Tribunal de Apelação italiano, é espantoso que a 3ª Vara Cível de Florianópolis arvore-se no direito de ordenar que seja "corrigida" a reportagem do site The Intercept Brasil acerca da absolvição do empresário André de Camargo Aranha no processo em que é acusado de estupro de vulnerável contra a influencer Mari Ferrer, por haver utilizado a expressão “estupro culposo”.
Com a devida vênia, corrigidos devem ser os conceitos do Judiciário Catarinense acerca da vigência das liberdades e garantias individuais e coletivas insculpidas no art. 5º da Constituição Federal. Processar uma jornalista por dano moral, em razão da publicação de referida reportagem constitui intimidação abusiva e odiosa.
O episódio ganhou repercussão nacional, não simplesmente porque o acusado tenha sido absolvido, mas por conta dos comentários pejorativos e humilhantes assacados contra a vítima Mari Ferrer, durante o julgamento, e pela tese apresentada pelo promotor e acatada pelo juiz, de que não teria havido dolo (intenção) do acusado ao ter praticado conjunção carnal com a jovem no camarote de um beach club em Jurerê Internacional.
O The Intercept Brasil fez uma análise jornalística adequada da decisão. Se, de acordo com a defesa, não houve dolo do acusado e se, por outro lado, na visão das mulheres o estupro foi evidente, nada mais adequado do que a utilização da expressão “estupro culposo”, para sintetizar, com ironia, o espírito que norteou a defesa.
O uso de uma figura de linguagem para expressar a revolta contra a decisão judicial tomada é inteiramente válido. Uma matéria jornalística não integra os autos de um processo judicial e é verdadeiramente absurdo pretender que palavras sejam riscadas do veículo de comunicação.
Ressalte-se que em nenhum momento o The Intercept Brasil declarou que essa expressão foi registrada literalmente nos autos. Trata-se, portanto, de utilização de uma expressão com finalidade meramente estilística, literária. Proibir o uso literário de um evidente oxímoro, de cunho irônico, numa matéria jornalística, constitui, em termos também literários, mais um “estupro”, “estupro” contra as mulheres brasileiras, perpetrado pelo Leviatã, negação dos direitos e garantias fundamentais, violência que nem ao menos merece o qualificativo de culposa.
A violência simbólica, quando se institucionaliza, pode ser mais perversa do que a própria violência física, principalmente quando dirigida contra pessoas em estado de vulnerabilidade. Violência dolosa, pois busca amordaçar a revolta das mulheres diante deste quadro de asquerosa deterioração dos direitos humanos e de gênero.
É intolerável o rumo tomado nos meios forenses, notadamente em estados de viés claramente conservador, nos últimos tempos. Não pretendo aqui falar da absolvição do réu – ela já grita por si própria. Falo das circunstâncias de que se revestiu o processo judicial e que se radicalizam tragicamente agora, com a agressão à garantia constitucional da liberdade de expressão jornalística.
Ao ser aberta a judicialização da liberdade de imprensa, amordaça-se uma nação e, em particular, a luta das mulheres pela igualdade de direitos. Ademais, fomentam-se atitudes antidemocráticas de agressão aos jornalistas por parte de segmentos misóginos e homofóbicos da população que nos dois últimos anos vêm se sentindo fortemente empoderados pelo governo federal.
Schirlei Alves, de acordo com o site The Intercept Brasil, é repórter em Florianópolis. Estagiou no The Epoch Times, no Canadá, e trabalhou nos principais jornais da Região Sul - Diário Gaúcho, Zero Hora, A Notícia e Diário Catarinense, com participação nas rádios Gaúcha e CBN Diário. Atua principalmente nas áreas de segurança pública e direitos humanos. Ganhou os prêmios ABC de Jornalismo, Unimed e RBS. Foi finalista do prêmio CNI.
É preciso solidarizar-nos enfaticamente com a jornalista Schirlei Alves, que está sendo alvo de sucessivos ataques nas redes sociais. A criação de obstáculos judiciais e intimidações oficiais a jornalistas no exercício pleno do direito de informar e reportar fatos de relevante interesse público, constitui ataque direto à democracia.
Não podemos aceitar que o jornalismo seja amordaçado ou criminalizado, em especial num momento como atual, de recrudescimento da violência contra as mulheres. Todo o apoio e solidariedade a Schirlei Alves e ao The Intercept Brasil, assim como à atriz Dani Calabresa! Não permitamos que nosso país torne-se território livre para uma escória misógina e para a impunidade de tantos Robinhos que grassam a cada canto!
PS - Anexo a este desabafo um poema do amigo Paul Marques Ivan:
Guilherme Purvin é escritor e advogado, editor da Revista PUB - Diálogos Interdisciplinares.
Excelente texto do Prof. Guilherme, apontando precisamente para o dado mais tétrico do tratamento bivalente de um mesmo instituto, conforme o grupo que integrem tanto o acusado quanto a vítima: a condição de vulnerabilidade passa a ser vista como uma verdadeira maldição divina; valorar a esta condição passa a ser visto como um passaporte para a impunidade quando o(a) acusado(a) esteja em algum dos grupos vulneráveis e como uma pieguice perigosa quando o(a) vítima esteja em algum desses grupos, pois, faz-se de conta que ela não existe. É rigorosamente o retorno dos tempos do culto da força inerente ao fascismo, algo que vai muito além do tradicionalismo de um Joseph de Maistre e de um Visconde de Bonald. É o…
"A violência simbólica, quando se institucionaliza, pode ser mais perversa do que a própria violência física, principalmente quando dirigida contra pessoas em estado de vulnerabilidade. Violência dolosa, pois busca amordaçar a revolta das mulheres diante deste quadro de asquerosa deterioração dos direitos humanos e de gênero." Guilherme, minha apreciação por suas palavras exatas.
Experimentamos uma amarga nostalgia da segurança que tinha aquele moleiro humilde ao dizer ao rei que não seria usurpado enquanto houvesse juízes em Berlim. Talvez mais vergonha que nostalgia.
Como tem sido a tônica nesses dias azíagos, Vossas Excrescências colocam-se acima da sociedade e da lei. Asqueroso. Revolta neles!
Artigo que expressa a justa revolta contra parcela do Judiciário que se dobra às estrepolias dos agressores dos direitos humanos, em especial, das mulheres, e pretende censurar a imprensa livre. Parabéns, Guilherme !