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CORONAVAC - A CRÔNICA DO HOMEM MUTANTE

Atualizado: 5 de dez. de 2023

-CARMÉLIA ARAGÃO-



Depois de uma noite de sonhos tranquilos, K. acordou transformado em um lindo jacaré soviético. Tomou café da manhã com a esposa, como sempre, comentaram as notícias; voltaram ao quarto, para se certificar de que não estavam esquecendo nada; puseram as máscaras [persistentes tempos de COVID], despediram-se e seguiram em direções opostas.


A caminho da casa da mãe, K. sentiu uma sensação estranha, as pessoas pareciam fugir dele. Dois conhecidos cruzaram a rua ao avistá-lo. Seria reação alérgica à Coronavac? Não, com certeza não. A mulher teria reparado. Aliás, estava muito feliz com aquela conquista da véspera! Até o felicitaram e comentaram, quando divulgou as fotos nas redes, ele nem parecia ser um sexagenário. Posou com a enfermeira, levou cartazes de protesto, compôs o visual com máscara vermelha, camiseta antifascista, boné cubano e, ao final da performance, ergueu o punho cerrado: Viva o SUS!


Ops, K. reparou outro transeunte desviar-se dele. O que estava acontecendo? Olhou ao redor. Verificou as mãos, passou álcool, tocou no rosto. Nada. Tentava manter a calma, já não havia mais mistérios entre o céu e a terra depois que os obtusos concluíram que “era contra tudo isso aí". Mas por que, então, fugiam? No bolso da calça, o minúsculo telefone vibrava. Sorriu. Era o planeta clamando por ele a cada notificação.


K. tinha quase 1,90 m, orgulhava-se, quando um familiar ou companheiro das antigas, postava-se diante dele, admirando sua agilidade ao digitar textos e conversar com militantes 30 ou 40 anos mais novos. Sentia como se seu status de guerrilheiro urbano atualizasse toda vez que sacava aquela microtecnologia. Infiltrava-se em manifestações e voltava para a casa, ileso, triunfante, com vasto material capturado para denunciar as injustiças do mundo. Porém, sabia que toda sua versatilidade, devia-se ao fato dos militantes "tiozinhos", em sua grande maioria, participavam de protestos por pura nostalgia, a distopia os desconectara. Raras detenções. Por isso, quando participava das recepções calorosas de novos membros do movimento, ressaltava, tal qual um enólogo, sua rebelde e ativa existência: "K, 62 anos, safra de 1958".


Pois é, o “tio barbudo” como os antigos [sempre atuais] ídolos da juventude, estava na luta desde os mimeógrafos até drones. Chegando ao condomínio da mãe, encontrou a portaria abandonada. O portão principal destravado, caminhou até hall. Antes de chamar o elevador, resolveu checar as mensagens. Sim, se passava algo muito sério. Em áudio, a filha mais velha, professora como ele, relatava-lhe o perrengue que estava passando na faculdade com a presença de um novo vírus, mais restrito à mente. Era o novo negaciovírus-21, uma variante mais letal do negaciovírus-18. Também transmitido pelo Whatsapp, Facebook, Twitter, qualquer rede social, bastava acreditar na primeira mensagem da “síndica fofoqueira” ou do “vizinho moralista”. O novo negaciovírus-21 apagava da memória dos infectados a imagem dos que foram vacinados ou de quem, pelo menos, afirmasse que a terra era redonda e, no lugar, apareciam monstros.


K. respirou fundo. Companheiros pediam socorro. Caos. Mais outra mensagem da esposa com imagem anexada. Abriu. Era um print da câmera de segurança do prédio onde viviam, ao lado, uma pequena seta vermelha apontava para ele: cuidado, jacaré soviético.

 

Carmélia Aragão é Doutora em Letras pela PUC-RJ e Professora de Leitura (Direito) e Fonética (Fono) no centro universitário Uninta.




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