-JULIO CESAR DE SÁ ROCHA-
Fui apresentado na semana passada a Syed Hussein Alatas. Alatas foi um acadêmico da Malásia, sociólogo, fundador de instituições de ciências sociais e ativista político (17.09.1928 – 23.01.2007). Alatas escreveu entre outros livros, a obra “o mito do preguiçoso nativo” em 1977 (The mith of native lazy, London: Frank Cass). Sua vida acadêmica pode ser descrita como marcante, incluindo a chefia do Departamento de Estudos Malaios na Universidade Nacional de Cingapura de 1967 a 1988. Foi vice-chanceler da Universidade da Malásia em 1988, antes de se tornar professor do Centro de Estudos na Universiti Kebangsaan na Malásia, em 1995.
Mais tarde, foi para o Departamento de antropologia e Sociologia, em 1997, antes de se tornar diretor pesquisador do Instituto Malaio em 1999. Alatas refletiu de forma crítica e reflexiva a situação dos países ex-colonizados, questionando o porquê de colonizadores ocidentais considerarem durante séculos os nativos do Sudeste Asiático como preguiçosos.
Sua pesquisa apresentou estudo da imagem dos malaios, filipinos e javaneses do século XVI ao século XX e a função da ideologia colonial, acabando por explicitar o mito do preguiçoso nativo. No livro, ele citou exemplos de "desqualificação" dos nativos e sua história. Por exemplo, um cientista alemão sugeriu que os filipinos fizeram seus remos de bambu para que pudessem descansar mais frequentemente. Alatas criticou tais crenças como fantasias vulgares e inverdades refinadas, explicitando a lógica ideológica de dominação colonial com criação de estereótipos desenvolvidos para favorecer seus interesses econômicos e políticos.
As concepções do The mith of native lazy poderiam muito bem servir ao caso brasileiro e o preconceito sistemático do colonizador contra os povos indígenas no Brasil. Basta lembrar das razões da “guerra justa”, da “conversão”, “escravização”, “exportação”, “aldeamentos” e, posteriormente, do próprio “modelo estatal integracionista e assimilacionista”. Aliás, o preconceito contra indígenas é uma realidade ainda presente na atualidade.
É usual verificar expressões de desprezo, desqualificação e discursos depreciativos contra indígenas no meio político e nas mídias sociais. Em 2009, o relator especial da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Racismo, Discriminação, Xenofobia e Intolerância, Doudou Diéne, chegou a afirmar que o racismo ainda é profundo no Brasil, que índios e jovens negros são vítimas frequentes da violência e que, ainda assim, setores governamentais não estão dispostos a acabar com o preconceito racial.
O racismo é um tipo de preconceito étnico-racial, uma ideia pré-concebida e pejorativa a respeito de uma etnia ou grupo social. Aliás, até hoje o Brasil não conseguiu enfrentar o racismo, nem tão pouco conseguiu assumir-se como uma nação pluriétnica e multicultural, mesmo tendo conhecimento que existem mais de 305 povos distintos que habitam seu território e mais de 274 línguas, o que corresponde aproximadamente a 0,47% da população total do país que vivem não somente em terras indígenas, mas também em áreas urbanas.
Os indígenas que vivem em áreas urbanas somam 36% do total da população indígena (IBGE, 2010). Contudo, é preciso não esquecer do histórico de massacre e genocídio sofrido pelos indígenas ou mesmo a resistência e morte dos povos indígenas na ditadura civil- militar no Brasil.
Os povos indígenas são os mais afetados pela violência do campo no Brasil como observa o relatório Conflitos no Campo Brasil, da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Enfim, no passado, imagens construídas por frentes colonizadoras reforçaram o forte preconceito e discriminação contra populações originárias, principalmente diante da recusa dos povos indígenas em ocupar a posição de escravizados ou subalternizados.
Atualmente, o racismo contra indígenas é sistemático e estrutural, somado à generalizada desinformação sobre a questão indígena pela sociedade brasileira. Dado que merece registro é sub-representação indígena na vida política nacional, sendo que somente depois de mais de 518 anos de história foi eleita a primeira deputada federal indígena no Brasil, a combativa ativista e advogada Joenia Wapichana (REDE, Roraima). Em suma, a lógica da dominação ainda permanece presente: fazer do outro menor para operar a opressão e o extermínio.
Impedir a demarcação estatal das terras indígenas faz parte desta ofensiva contra os povos originários não obstante a Constituição de 1988 reconheça “aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”, cabendo ao Estado garantir “o pleno exercício dos direitos culturais”, protegendo “as manifestações das culturas populares, indígenas” e outras.
JULIO CESAR DE SÁ ROCHA, Professor da Faculdade de Direito da UFBA. Escreve todo dia 13 de cada mês.