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Literatura e Enfermidades no Antropoceno

Guilherme José Purvin de Figueiredo

Imagem de Ute Frevert; colorização falsa de Margaret Shear. Malária, causada pelo parasita Plasmodium ao atravessar o citoplasma de uma célula epitelial da fêmea do mosquito, na forma com que penetra no corpo do ser humano e de outros vertebrados. Fonte: Jurnals.plos.org


Há um mês, Rui Guimarães Vianna publicou aqui excelente resenha intitulada "Literatura e Medicina: Bulgakóv e Guimarães Rosa", a respeito do livro “Anotações de um jovem médico”, coletânea de contos do escritor ucraniano. João Guimarães Rosa é mencionado no artigo por conta de sua formação universitária (médico).


Retomo aqui o instigante tema ali, por conta de algumas revisitações e novos olhares sobre alguns livros que li ao longo da vida. Na obra de Machado de Assis, há inúmeras passagens que utilizam referências médicas e nosocomiais para fins literários. Transcrevo, ilustrativamente, duas delas. A primeira, na abertura de Memórias Póstumas de Brás Cubas, os esclarecimentos sobre a morte do protagonista, provavelmente de tuberculose — simbolizando a decadência moral da burguesia:


"Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia do que uma ideia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não creia, e todavia é verdade" (Memórias Póstumas de Brás Cubas, Cap. I).


E, ainda, o cruel penúltimo capítulo de Dom Casmurro, relatando a morte do filho de Capitu e Bentinho (ou Escobar):


"Não houve lepra, mas há febres por todas essas terras humanas, sejam velhas ou novas. Onze meses depois, Ezequiel morreu de uma febre tifoide, e foi enterrado nas imediações de Jerusalém, onde os dois amigos da universidade lhe levantaram um túmulo com esta inscrição, tirada do profeta Ezequiel, em grego: 'Tu eras perfeito nos teus caminhos'. Mandaram-me ambos os textos, grego e latino, o desenho da sepultura, a conta das despesas e o resto do dinheiro que ele levava; pagaria o triplo para não tornar a vê-lo". (Dom Casmurro, Cap. CXLVI).


No campo da poesia, não podemos deixar de mencionar o poema "Pneumotórax", de Manuel Bandeira:


PNEUMOTÓRAX

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.

A vida inteira que podia ter sido e que não foi

Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:

– Diga trinta e três.

– Trinta e três… trinta e três… trinta e três…

– Respire

………………………………………………………….

– O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado

– Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?

– Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.



Guimarães Rosa, Medicina e Literatura


Guimarães Rosa, citado por Rui G. Vianna, surge no cenário editorial com uma coletânea de contos enviada a um concurso realizado em 1938 pela Livraria José Olympio. O livro, Sagarana, hoje parte do canon literário brasileiro, obteve o segundo lugar no concurso. Graciliano Ramos, membro do juri, faz verdadeira mea culpa por não haver votado naquela obra, mas em Maria Perigosa, de Luís Jardim, nome de resto caído no esquecimento da história da literatura brasielira.


Dentre as verdadeiras joias presentes em Sagarana, talvez o conto que mais denuncie a profissão de Rosa seja Sarapalha. A história, ou melhor, a estória é um momento na vida de dois amigos, o primo Ribeiro e o primo Argemiro. Os dois vivem na beira do rio Pará, afluente do São Francisco, na tapera de uma fazenda perdida da civilização. A estrada que a ligava à cidadezinha agora desabitada por conta do surto de malária já não existe, foi tomada pelo mato. Do antigo povoado, os primeiros a irem-se embora foram para o cemitério, "os outros, por aí a fora, por este mundo de Deus. As terras não valiam mais nada. Era pegar a trouxa e ir deixando, depressa, os ranchos, os sítios, as fazendas por fim. Quem quisesse, que tomasse conta."


Os primos, exilados naquele fim de mundo, estão condenados a viver, talvez, ainda mais um ano, sofrendo regulares surtos de febre provocada pela "danada", a maleita. O narrador presta alguns esclarecimentos científicos para os leitores: "O mosquito fêmea não ferroa de-dia; está dormindo com a tromba repleta de maldades; somente as larvas, à flor do charco, comem-se umas às outras, brincando com as dáfnias e com as baratas-d'água (...)".


É ali que vivem os dois, com o cão Jiló, que não sabe quem é seu dono, já que os amigos são inseparáveis, e Ceição, "uma negra, já velha, que capina e cozinha o feijão. Tudo é mato, crescendo sem regra".


A certa altura, os amigos já não se preocupam em tomar quinino (sim, o vegetal do qual é extraída a conhecida cloroquina) para atenuar os efeitos da febre diária. Assim, quem sabe, a morte chegue mais rápido:


"— (...) O doutor deu prazo de um ano... Você lembra?

— Lembro! Doutor apessoado, engraçado... Vivia atrás dos mosquitos, conhecia as raças lá deles, de olhos fechados, só pela toada da cantiga... Disse que não era das frutas e nem da água... Que era o mosquito que punha um bichinho amaldiçoado no sangue da gente... Ninguém não acreditou... Nem no arraial. Eu estive lá, com ele..."


E, alguns parágrafos à frente:


"— Escuta, Primo Ribeiro: se alembra de quando o doutor deu a despedida p'ra o povo do povoado? Foi de manhã cedo, assim como agora... O pessoal estava todo sentado nas portas das casas, batendo o queixo. Ele ajuntou a gente... Estava muito triste. Falou: — "Não adianta tomar remédio, porque o mosquito torna a picar... Todos têm de se mudar daqui... Mas andem depressa, pelo amor de Deus!"... — Foi no tempo da eleição de seu Major Vilhena... Tiroteio com três mortes..."


Evidentemente, todas as informações de caráter médico-sanitário têm uma função literária na obra de ficção. A referência ao delírio da febre terçã serve para fazer com que os dois amigos inseparáveis percam a capacidade de autocensura. Anulado o controle dos segredos íntimos pelo superego, eles trazem à tona todas as lembranças e desejos recalcados:


"— Eu acho até que é bom falar. Quem sabe... Assim, ao menos, não fica roendo, doendo dentro da gente..." — diz o Primo Ribeiro. É nesse momento de febre que temos o retorno do assunto recalcado, proibido nos diálogos dos amigos: a traição e fuga de Luísa, sua mulher.


Nessas janelas febris, o grande medo do Primo Argemiro é perder os freios e revelar o seu grande segredo, que deixo de contar aqui, para incentivar os leitores a (re)lerem este conto.


Literatura e a Pandemia de COVID 19


Não resta qualquer dúvida que algumas obras são fundamentais para o estudo das relações entre Literatura e Enfermidades. É o caso de "Decameron", de Giovani Boccaccio; "Um inimigo do povo", de Henrik Ibsen; ou de "A Montanha Mágica" e "Morte em Veneza", ambas de Thomas Mann. Tive a oportunidade de coordenar, durante o período de confinamento, uma série de encontros virtuais com professores e pesquisadores de Estudos Literários e Culturais, dentre os quais destaco o sétimo, encontro promovido em 01/7/2020, ocasião em que a professora Sandra Guardini Vasconcelos (Letras USP) discorreu sobre o livro "O Diário do Ano da Peste", de Daniel Defoe e o argentino Rafael Colombo, sobre a peça "Um inimigo do povo", de Ibsen. Ou, ainda, o décimo-primeiro encontro, realizado em 29/7/2020, quando ouvimos a professora Doris Cavallari (Letras USP) discorrer sobre "O Decameron", de Giovanni Boccaccio.


No mesmo ano de 2020, a Editora Terra Redonda lançava a coletânea "Contos de Quarentena", reunindo vinte e um autores. Esta obra coletiva constitui um interessante exemplo de como pode a Saúde Pública (ou sua ausência) até mesmo fomentar uma produção literária. A seu respeito, dizem Léo Bueno e Sergio Alli: "Cada história contém um pouco do Covid-19, da pandemia, da quarentena. Nestas páginas, você verá drama, humor, horror e ficção científica como modos de viver o isolamento."


Neste ano (2024), a Editora Zagodone editou outra obra assemelhada, "Tempos pandêmicos: textos selecionados do Blog do Departamento de Psicanálise do Sedes", organizado por Gisela Haddad, Gisele Senne de Moraes e Fernanda Machado Borges.


Superada a fase crítica da pandemia de Coronavírus, no campo dos Estudos Literários, prosseguem diversas iniciativas no desenvolvimento de estudos sobre as relaões entre Literatura e Enfermidades (ou Literatura e Saúde). Nesse sentido, há apenas um ano, os professores Márcio Venício Barbosa, François Weigel e Josilene Pinheiro Mariz organizaram a obra "Literatura e Doença" (EDUFCG, Out.2023), que traz em suas 745 páginas importantíssima contribuição para essa área, com dezenas de artigos subdivididos nas seguintes partes: Doença através dos tempos; O Escritor e a Doença; Escrever a Doença; A doença: crítica e cura. É possível fazer o download gratuitamente desse e-book.


Ampliando o conceito de doença para abranger, não apenas as enfermidades físicas dos seres humanos, mas também as psíquicas, provocadas pelo sistema econômico vigente (empreendedorismo, fim dos direitos trabalhistas e previdenciários, privatização dos serviços médicos, armamentismo), teremos diante de nós quase todas as estantes de livros de nossas livrarias.


E, se pensarmos na redução da diversidade biológica, no agravamento da crise climática e na "normalização" da guerra e do genocídio, não restará nenhum tema a ser tratado na literatura que não esteja relacionado a enfermidades. Não resta dúvida de que não há mais como cogitar da produção de novos contos de fada — e, se pensarmos bem, talvez esse mesmo segmento da literatura nunca tenha sido infenso a enfermidades e ameças, seja por maçãs envenenadas ou por lobos sanguinários.


 

Guilherme José Purvin de Figueiredo, pós-doutorando junto ao Departamento de Geografia da FFLCH USP, é graduado em Letras e Direito. É autor de quatro livros de contos ("Laboratório de Manipulação", "Sambas & Polonaises", "Virando o Ipiranga" e "Paredes Descascadas") e de diversos livros de Direito Ambiental.




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1 comentário


Eduardo Gonçalves
Eduardo Gonçalves
há 11 horas

"não há mais como cogitar da produção de novos contos de fada" parece que não temos mais tempo para pensar, para escrever, para refletir... o conto de fada do momento é o fim da escala 6x1, para quem sabe, alguns consigam dois dias seguidos de folga e escrevam sobre as doenças decorrentes do ambiente de trabalho

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