-RUI VIANNA-
Há algo de inconciliável entre o exercício da medicina e a paixão pela literatura? Soaria estranho o questionamento, não tivéssemos em mente a (merecidamente) cultuada figura de João Guimarães Rosa, inicialmente médico formado na Faculdade de Medicina de Minas Gerais, nos longínquos idos de 1925. Abandonada a medicina, após alguns anos de clínica, abraçou a carreira de diplomata e desenvolveu sua sempre presente paixão pela literatura. Para sorte nossa e do mundo.
Literatura que também raptou o autor de “O Mestre e a margarida”, o ucraniano Mikhail Bulgákov à medicina, que exerceu por vários anos, e de forma altamente meritória, conforma atestam seus biógrafos. O paralelo não parece fazer muito sentido, mas desnecessário dizermos que tratamos aqui de personagens excepcionais no mundo das letras. E a quem devemos obras de inestimável valor.
Em “Anotações de um jovem médico”, coletânea de contos do ucraniano (Editora 34 – 2020 – 1ª edição – 215pg. – tradução de Érika Batista), mergulhamos no mundo do jovem médico enviado a uma pequena cidade da província (Nikolskóie), distante de Moscou uma eternidade, sem recursos e constantemente submetida às condições inclementes de clima.
Em nota de rodapé (p. 07) Marietta Tchudakova, presidente da Fundação Bulgakóv, relata que “...o médico ucraniano E. B. Bukreiev, que se formou com o escritor na universidade, lhe disse numa entrevista que a carreira literária de Bulgákov foi, para seus colegas de classe, “uma completa surpresa... Ele não revelava nenhuma aptidão especial...” Mas que elas lá estavam, íntegras e latentes, é inegável.
Ao que consta, o personagem central dos vários contos, o doutor Bomgard, é sem dúvida um alter ego de Bulgákov. E seus relatos, ao longo de sete contos e duas novelas curtas, excedem em muito a forma de um simples diário. Inegável a faísca do grande autor já em sua primeira obra, dotadas de dramaticidade, humor, riqueza de construção nos personagens e um domínio da trama impressionante.
É possível se especular acerca do envolvimento pessoal que o exercício da medicina cobra dos profissionais comprometidos com sua missão, e o quanto isso ajudaria na criação de personagens e desenvolvimento de narrativas, visto nas Primeiras Estórias de Guimarães Rosa, como, num breve exemplo, no conto Famigerado, onde o personagem central procura o Doutor para que ele explique o sentido da palavra “famigerado”. A construção narrativa, a descrição dos personagens e a tensão contida no texto são feitos com maestria e concisão, mergulhando o leitor de cabeça na estória, com suspense e humor. Magistral e inesquecível.
Bulgákov realiza em seu Anotações o exercício da medicina na forma literária, fina, às vezes crua e cruel, relatando vicissitudes e angústias do jovem isolado do convívio do grande centro, além da dura realidade das pequenas comunidades em que serve.
Mas excede em muito a simples narrativa de fatos. Seus personagens trazem o trágico do povo , a alegria e as contradições da sociedade russa. E a novela morfina descreve, corajosamente, o envolvimento que o próprio autor enfrentou com as drogas, coisa considerada usual entre membros da classe médica, mas não menos trágica e assustadora. Uma descrição sem filtros de uma relação destruidora com a morfina, que termina de forma desastrosa.
Assim como as coincidências vistas entre esses dois personagens magníficos da literatura mundial, ainda digna de nota a profunda identificação com os regionalismos existentes entre eles. Guimarães Rosa é, sem dúvida, um criador inimitável do regionalismo das Gerais, seja na linguagem como em seus personagens, na elaboração de neologismos que encontra pouco paralelo na literatura comparada no resto do mundo.
Bulgákov foi, neste mesmo sentido, um profundo compositor da alma russa, traduzindo suas delicadas nuances e contradições, além de um narrador privilegiado de mudanças sociais produzidas na sociedade pela Revolução de 1917 e ainda pela Primeira Grande Guerra. E um mestre inegável em um cenário literário repleto de grandes escritores. Um dado biográfico intereesante sobre ele é que serviu durante o conflito mundial como médico voluntário.
Talvez por isso mesmo, o autor enfrentou severa censura na Rússia comunista, sendo que Anotações e os contos que o compõem foram publicados na imprensa russa na década de 1920, mas só vieram a ser publicados em livro na década de 1960. após a morte de Stalin, quando o autor veio a ser reintroduzido ao panteão da literatura russa.
Rui Vianna é advogado aposentado e associado do IBAP.
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